5 - DO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL E DO DIRECIONAMENTO CONFERIDO PELOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Observado acima o entendimento doutrinário mais adequado a ser conferido às operações de industrialização por encomenda, deve-se destacar, ainda que brevemente, o entendimento jurisprudencial proferido pelos órgãos administrativos e judiciários do Brasil, levando em consideração o caráter moderno do tema e a exposição do contribuinte a mais de um ente tributário.
Como já é de se esperar, o enquadramento conferido pelos órgãos administrativos, em todas as esferas, é eivado por ilegalidades flagrantes que isolam o contribuinte num cenário de insegurança jurídica, uma vez que tais decisões visam apenas à satisfação financeira dos sujeitos ativos, sem considerar aspectos legais e sem dirimir o conflito de competência, situando o contribuinte num contexto de ilegalidade indesejado.
Iniciemos pela análise da atuação administrativa dos Municípios. Como visto, a cobrança do ISS não é devido às operações de industrialização por encomenda. Contudo, o argumento utilizado pelas autoridades fiscais é particularmente simplório – cobra-se o ISS em razão de o serviço estar listado na Lei Complementar nº 116, sem avaliar as características da prestação, nem observar o contexto constitucional quando versa sobre os campos de incidência tributária. Vejamos, a título ilustrativo, auto de infração exarado e confirmado pela 4ª Câmara Julgadora do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo:
"ISS - ITEM 14.05 - IRRELEVÂNCIA DA DESTINAÇÃO DO PRODUTO – SERVIÇO PREVISTO NA LISTA - TRIBUTO DEVIDO - ALEGAÇÃO DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - OBRIGAÇÕES ACESSÓRIAS PREVISTAS EM LEI E DECORRENTES DE FATOS DISTINTOS."[27]
Assim, sem qualquer análise aprofundada na matéria, autua-se o contribuinte e exigem-se, muitas vezes concomitantemente, tributos (IPI e ISS) relativos a uma mesma operação. Neste sentido, é de se criticar o posicionamento da Receita Federal. Ocorre que a União, apesar de ser a parte legítima para cobrar o IPI, não estabelece limites e controles para cobrança do ISS, ignorando a situação e deixando o contribuinte em situação precária. Vejamos solução de consulta proferida pela RFB em 2012:
"EMENTA: RENOVAÇÃO. RECONDICIONAMENTO. CILINDROS USADOS. INDUSTRIALIZAÇÃO. ENCOMENDA DE TERCEIROS. A operação de revestimento de cilindros usados (revestimento com novos componentes elastoméricos), sob encomenda de terceiros estabelecidos com o comércio de tais produtos, caracteriza-se industrialização na modalidade de renovação ou recondicionamento. O estabelecimento que realizar a operação é considerado estabelecimento industrial, contribuinte do IPI e sujeito a todas as obrigações principal e acessórias do imposto. A incidência do ISS naquela operação caracterizada como industrialização é inteiramente irrelevante para determinar a incidência, ou não, do IPI."[28]
Cabe, aqui, uma crítica ao sistema de cobrança de tributos por meio dos diversos entes políticos. A inexistência de um processo uniformizado entre a União, os Estados, o Distrito Federal, e os Municípios, sujeita o contribuinte a várias cobranças atreladas a um mesmo fato gerador, ocasionando bitributação, perdas financeiras com defesas e uma inegável insegurança jurídica. Ademais, quando se recorre às instâncias administrativas para se ter o reconhecimento de seu direito, o Contribuinte tem como retorno apenas a conclusão sobre a legalidade da cobrança do tributo, independentemente de outro ente público estar cobrando o tributo diverso sobre o mesmo fato gerador. A postura adotada pelos entes, focando apenas na arrecadação sem nenhuma análise holística, é inaceitável.
Tal procedimento é comum entre os órgãos administrativos e precisa ser imediatamente rechaçado. Fazem-se necessárias mudanças nas legislações infraconstitucionais, uma vez que as atuais pecam por omissão e obscuridade, dando margem à bitributação. Além da necessidade de atuação dos legisladores, o contribuinte precisa ser amparado pelo Judiciário, de modo a estabelecer limites claros e inequívocos acerca da extensão da incidência do IPI e do ISS. Aqui, entra-se na análise da jurisprudência judicial relacionada a este assunto, uma vez que, depois de muito tempo desamparado, o Supremo Tribunal Federal resolveu se manifestar e traçar corretamente limites à atuação tributária dos diversos entes políticos.
A decisão pioneira foi proferida ainda em 2011, em sede de medida cautelar à ADI nº 4.389, cujo relator foi o eminente ministro Joaquim Barbosa, em processo que trata acerca da cobrança do ISS (enquadrado pelo Fisco Municipal no item 13.05 da LC 116/2003) em uma operação de industrialização por encomenda de embalagens destinadas à integração ao produto final, a ser retornado ao estabelecimento encomendante para posterior industrialização e comercialização.
O julgamento, o primeiro relativo a este assunto julgado no STF, deu-se por unanimidade, decidindo da seguinte forma:
"CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONFLITO ENTRE IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA E IMPOSTO SOBRE OPERAÇÃO DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO E DE TRANSPORTE INTERMUNICIPAL E INTERESTADUAL. PRODUÇÃO DE EMBALAGENS SOB ENCOMENDA PARA POSTERIOR INDUSTRIALIZAÇÃO (SERVIÇOS GRÁFICOS). AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE AJUIZADA PARA DAR INTERPRETAÇÃO CONFORME AO O ART. 1º, CAPUT E § 2º, DA LEI COMPLEMENTAR 116/2003 E O SUBITEM 13.05 DA LISTA DE SERVIÇOS ANEXA. FIXAÇÃO DA INCIDÊNCIA DO ICMS E NÃO DO ISS. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Até o julgamento final e com eficácia apenas para o futuro (ex nunc), concede-se medida cautelar para interpretar o art. 1º, caput e § 2º, da Lei Complementar 116/2003 e o subitem 13.05 da lista de serviços anexa, para reconhecer que o ISS não incide sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em processo subseqüente de industrialização ou de circulação de mercadoria. Presentes os requisitos constitucionais e legais, incidirá o ICMS."[29]
Assim, mesmo com a insistência dos Municípios em tributar as operações de industrialização por encomenda pelo ISS, o Supremo Tribunal Federal avaliou corretamente os argumentos trazidos pelo contribuinte e afastou essa ilegalidade perpetrada, criando precedentes para sustentar o límpido direito dos industrializantes por encomenda de sofrer a incidência de apenas um tributo ao executar etapa intermediária da cadeia produtiva.
Apesar de esse acórdão ter sido o marco inicial para reconhecimento dos argumentos do contribuinte, e apesar de outras decisões terem assegurado o direito do contribuinte [30], curial mencionar o Recurso Extraordinário nº 882.461, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, em que o contribuinte se insurge contra cobrança de ISS vinculada a operações de industrialização por encomenda de corte e recorte de bobinas de aço (beneficiamento), enquadrada no item 14.05 da lista anexa da LC 116/2003 pelo Prefeitura de Contagem/MG.
Neste caso, de relatoria do Ministro Luiz Fux, houve a determinação de repercussão geral, referenciando, inclusive, o julgamento incidental proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.389. Assim, espera-se que a Corte Suprema acate os argumentos do contribuinte e afaste a ilegal cobrança do ISS - entendimento esse compartilhado pelo Ministério Público Federal no bojo daquele processo, em parecer assinado pelo Procurador Geral da República Rodrigo Janot.
Assim sendo, observa-se que o Supremo Tribunal Federal vem se posicionando de maneira irreparável nas discussões acerca da tributação aplicável às operações de industrialização por encomenda, aplicando os mesmos argumentos levantados neste trabalho. Em razão desse posicionamento recente, observa-se uma mudança de entendimento em outra corte recursal brasileira, o Superior Tribunal de Justiça.
Anteriormente a mencionadas decisões proferidas pelo STF, o Superior Tribunal de Justiça se posicionava sempre pela incidência do ISS, desconsiderando a base constitucional existente e todos os argumentos apresentados pelos contribuintes. Apenas a título ilustrativo, citam-se aqui os Recursos Especiais de nº 1.092.206/SP, de relatoria do falecido Ministro Teori Zavascki, que opinou pela incidência do ISS em processo de industrialização por encomenda de embalagens (item 13.05 da Lei Complementar nº 116/2003), e de nº 888.852/ES, sob assinatura do Ministro Luiz Fux, em que foi proferido acórdão que entendeu pela incidência do tributo municipal em uma operação de beneficiamento feita por conta e ordem de terceiro (item 14.05). O argumento utilizado em ambos os casos foi o simples fato de esses itens estarem elencados na lista anexa à Lei Complementar 116/2003. Não se avaliou, em momento nenhum, as regras de competência tributária previstas na Constituição Federal, nem o fato das operações ora discutidas estarem incluídas em fase intermediária do processo produtivo.
Entretanto, apesar desse entendimento já ter sido consolidado no STJ por meio de vários julgados, percebe-se uma reanálise dos fatos e uma lenta mudança no posicionamento após as decisões inovadoras recentemente proferidas pelo STF. Neste sentido, cumpre destacarmos o voto proferido ao Recurso Especial nº 1.310.728/SP:
"TRIBUTÁRIO. ICMS E ISS. SERVIÇOS DE COMPOSIÇÃO GRÁFICA. SÚMULA 156 DO STJ. ADEQUAÇÃO AO ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4389-MC.
1. A Primeira Seção do STJ, em 11.3.2009, no julgamento do REsp 1.092.206/SP, de relatoria do Min. Teori Albino Zavascki, submetido ao rito dos recursos repetitivos nos termos do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ, consolidou entendimento segundo o qual "as operações de composição gráfica, como no caso de impressos personalizados e sob encomenda, são de natureza mista, sendo que os serviços a elas agregados estão incluídos na Lista Anexa ao Decreto-Lei 406/68 (item 77) e à LC 116/03 (item 13.05).Consequentemente, tais operações estão sujeitas à incidência de ISSQN (e não de ICMS), Confirma-se o entendimento da Súmula 156/STJ: "A prestação de serviço de composição gráfica, personalizada e sob encomenda, ainda que envolva fornecimento de mercadorias, está sujeita, apenas, ao ISS".
2. Contudo, em 13.4.2011 o Pleno do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Medida Cautelar na ADI 4389, Rel. Min. Joaquim Barbosa, reconheceu que não incide ISS sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em processo subsequente de industrialização ou de circulação de mercadoria.
3. Ante a possibilidade de julgamento imediato dos feitos que versem sobre a mesma controvérsia decidida pelo Plenário do STF em juízo precário, é necessária a readequação do entendimento desta Corte ao que ficou consolidado pelo STF no julgamento da ADI 4389-MC." (...)[31]
Assim, recai ao contribuinte industrializador por encomenda a esperança, após anos de desamparo e insegurança jurídica perpetrados pelos Fiscos Municipal e Federal, que o texto constitucional seja finalmente respeitado e que haja, de pronto, afastamento de qualquer hipótese de incidência do ISS, em razão dos inúmeros argumentos aplicáveis. Este processo educativo é lento e exige participação ativa do Poder Judiciário. Atualmente, após manifestação das cortes superiores em prol do sujeito passivo, tem-se revertido a interpretação dos Municípios, estimulada unicamente de propósitos financeiros.
Neste sentido, relevante que o Recurso Extraordinário nº 882.461 seja votado de forma urgente, concluindo pela impossibilidade de incidência do ISS sobre operações de industrialização por encomenda relacionadas com serviços de beneficiamento, seguindo o entendimento vanguardista conferido no ADI nº 4.389, de modo a expandir tal entendimento a todas as instâncias judiciais e, reflexivamente, às instâncias administrativas, cuminando no afastamento da exigência do ISS a toda e qualquer operação enquadrável como industrialização por encomenda.