1 - INTRODUÇÃO
O processo de industrialização por encomenda surgiu a partir da segmentação das etapas industriais, concretizando os ensinamentos do fordismo, conjunto de conceitos estabelecidos e difundidos durante a 2ª Revolução Industrial. Com o fito de reduzir os custos atrelados à produção industrial, a industrialização por encomenda é aplicada pelos estabelecimentos industriais que, segmentando as etapas produtivas, repassam determinada fase do processo a um terceiro, dotado de know-how específico, visando principalmente à racionalização do processo produtivo, à ampliação da produção e à redução do tempo despendido, de modo a elevar o lucro e enfrentar a forte concorrência mercadológica com melhores preços.
Em razão da complexidade desta operação e a obscuridade da legislação infraconstitucional brasileira, apesar da Carta Maga traçar as competências tributárias de maneira clara, criou-se um conflito de competência entre o ISS e o IPI (e, consequentemente, o ICMS), ocasionando uma bitributação por entes distintos da Administração Pública – Federal, Estadual e Municipal – e trazendo impactos significativos aos contribuintes, uma vez que são atingidos por inequívoca e ilegal bitributação vinculada a um mesmo fato gerador.
Buscando sanar tal ilegalidade, este estudo se debruça sobre as nuances atreladas às obrigações de dare e facere, bem como esmiúça as regras-matrizes de incidência tributária dos tributos em questão, de modo a fundamentar o entendimento acerca da melhor interpretação a ser dada para subsunção do fato – realizar industrialização por encomenda – à norma tributária.
Ainda na tentativa de elucidação deste conflito de competência, buscar-se-á analisar a jurisprudência hodierna existente sobre a matéria, enfocando nos recentes julgados emanados pelo Supremo Tribunal Federal acerca do tratamento tributário a ser conferido às operações de industrialização por encomenda – mesmo que tal orientação não esteja sendo majoritariamente seguida por outras cortes judiciais e, especialmente, por auditores e tribunais administrativos.
Tendo dito tudo isto, este estudo se iniciará com uma breve introdução aos conceitos fundamentais do direito tributário, que servirão de base para uma análise mais aprofundada a respeito das regras-matrizes tanto do ISS quanto do IPI. Posteriormente, será analisado o instituto da industrialização por encomenda, em suas inúmeras particularidades e gama de serviços possivelmente executados pelo industrializador, estudando-se, consequentemente, o melhor enquadramento na norma tributária. Após, realizar-se-á uma análise jurisprudencial sobre o assunto, considerando o entendimento consolidado no STJ, os julgados recentes proferidos pelo STF e as arbitrariedades e ilegalidades praticadas pelo entes da Administração Pública, em todas as esferas, quando da interpretação e cobrança dos respectivos tributos.
2 - CONFLITO DE COMPETÊNCIA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA E A SOLUÇÃO CONSTITUCIONAL
Neste primeiro momento, convém trazer sucintos comentários acerca dos conflitos de competência existentes em matéria tributária, expondo a realidade experimentada pelos sujeitos passivos da obrigação tributária em razão da obscuridade praticada pelo legislador durante a delimitação de certas hipóteses de incidência das diversas espécies tributárias. Assim, poderá ser observado que, apesar da Constituição Federal de 1988 estipular de forma segregada a extensão da competência de cada ente federado, a realidade é que estes mesmos sujeitos ativos buscam expandir o máximo possível as hipóteses de incidência dos respectivos tributos, possibilitando assim uma maior arrecadação.
Inicialmente, encontra-se assentado na doutrina moderna que o texto constitucional, especialmente em matéria tributária, deve ter interpretação exaustiva, de modo a afastar por completo quaisquer conflitos interpretativos e, consequentemente, a bitributação vinculada a um mesmo fato gerador. Assim sendo, é pacificado na doutrina que os conflitos de competência nascem por conclusões hermenêuticas equivocadas do intérprete, muitas vezes ocasionadas por redações infelizes e incompletas editadas pelos legisladores infraconstitucionais.
Insta aqui delinear as palavras magistralmente proferidas pelo Professor Roque Antonio Carrazza[1] a respeito dos conflitos de competência:
"(...) os conflitos de competência em matéria tributária não existem nem podem existir. A rígida divisão de competências tributárias, levada a efeito pela Lei das Leis, afastou-as. Com efeito, se o fato ‘A’ só pode ser tributado pela pessoa política ‘X’, não há de haver conflitos entre ela e as pessoas políticas ‘W’, ‘Y’, ‘Z’, etc.
Em verdade, o impropriamente denominado ‘conflito de competência’ é provocado: I – por uma lei tributária inconstitucional; II – por uma pretensão administrativa ilegal (ou inconstitucional) da pessoa tributante; e III – por uma insurgência do apontado sujeito passivo, que vai ao Judiciário demonstrar que: a) a lei que criou, in abstracto, o tributo é inconstitucional; b) o fato por ele praticado não é imponível; e c) o fato por ele praticado subsumiu-se à hipótese de incidência de tributo que, nos termos da Constituição, pertence a pessoa diversa daquela que dele o quer exigir."
Assim sendo, resta claro que os conflitos de competência em questão sequer deveriam existir, caso as regras constitucionais fossem devidamente avaliadas pelo hermeneuta, ao passo que o texto constitucional traz delimitações suficientes para definir as hipóteses de incidência dos tributos e a competência conferida a cada uma das pessoas políticas. Logo, chega-se à conclusão que as hipóteses de incidência previstas pelo Constituição Federal não se confundem nem se sobrepõem, afastando assim os conflitos de competência e evitando a incidência de mais de um tributo sobre um mesmo fato gerador.
Na estrutura proposta para o sistema constitucional brasileiro, a Constituição Federal localiza-se no topo da pirâmide legal, delimitando as competências tributárias e conferindo a cada ente federado a autonomia de constituir e exigir do sujeito passivo o recolhimento do tributo de sua competência[2], de modo que a Administração Pública possua, em todas as esferas, receitas suficientes para atender os objetivos e as necessidades da sociedade – pelo menos assim deveria ser.
Entretanto, como o texto constitucional traz as regras tributárias de forma ampla – como deve ser, sob pena de termos uma Constituição Federal deveras engessada – o legislador constituinte conferiu poderes especiais ao legislador infraconstitucionais para estabelecer normas em matéria tributária. Para isto, o texto constitucional concedeu à Lei Complementar, no bojo do artigo 146, o poder de estabelecer normas gerais em matéria tributária, assim como dispor sobre conflitos de competência configuradas nos três níveis federais: União, os Estados (e o Distrito Federal) e os Municípios.
Impende destacar que o poder conferido pela Constituição Federal à Lei Complementar para solucionar conflitos de competência é apenas abstrato, uma vez que tais conflitos sequer existem em sede constitucional – considerando que a Carta Magna traçou de maneira suficiente a extensão e os limites das hipóteses de incidência. Neste esteio, mister transcrever mais uma vez a lição do ilustre Roque Carrazza[3]:
"Não são, positivamente, estes ‘conflitos’ que a lei complementar tributária, prevista no art. 146 da CF, fará desaparecer. O que ela pode fazer, eventualmente, é reforçar o perfil constitucional de cada tributo, para que, se possível, não surjam. (...)
Como o ‘conflito’ ao qual alude o art. 146 da CF é potencial, abstrato e hipotético, a lei complementar que vai dispor sobre ele deve limitar-se a reforçar o arquétipo genérico (a norma-padrão de incidência) dos tributos que, eventualmente, podem ensejar um dos três fenônemos há pouco referidos. A experiência revelou, por exemplo, que podem, na prática, surgir ‘conflitos’ entre o ISS e o ICMS. A lei complementar, de que ora cogitamos, tentará evitá-los, ‘declarando’, com maior riqueza de detalhes a Constituição Federal, na parte em que ela cuida destes impostos."
Fica claro, portanto, que o papel da Lei Complementar é regulamentar e traçar minuciosamente os campos de incidência dos tributos, evitando assim conflitos de competência e afrontas ao direito do contribuinte, este devidamente alicerçado por todos os princípios contidos no Direito Tributário – especialmente o da legalidade. Entretanto, deve-se salientar que tais regras infraconstitucionais devem guardar guarida com os ditames da Carta Magna, impedindo que as pessoas políticas invadam as competências das demais figuras tributárias.
Assim sendo, conclui de maneira irretocável o ilustre Aliomar Baleeiro:
"A lei complementar não cria limitações que já não existam na Constituição, não restringe, nem dilata o campo por ela delimitado. Completa e esclarece as disposições relativas à limitação, facilitando sua execução de acordo com os fins que inspiraram o legislador constituinte. Mas a lei complementar de normas gerais também não institui o tributo, nem lhe fixa a alíquota, função exclusiva e privativa, insubstituível, da pessoa competente para criá-lo nos termos da Constituição.[4]"
Para corroborar com tal entendimento, propaga sabiamente Paulo de Barros Carvalho:
"Diante da complexidade desse imposto (referindo-se ao ISS) e visando a evitar eventuais conflitos de competência, o constituinte houve por bem eleger a lei complementar como veículo introdutor de normas jurídicas tributárias definidoras de quais sejam os serviços de qualquer natureza, susceptíveis de tributação pelos Municípios. (...) Eis caso típico do papel de ajuste reservado à legislação complementar para garantir a harmonia que o sistema requer.
Essa tarefa, no entanto, assim como quaisquer outras reservadas à lei complementar, há de ser analisada no contexto constitucional. Não podemos esquecer que a lei complementar configura mecanismo de ajuste que assegura o funcionamento do sistema, prevenindo conflitos de competência. Logo, ao dispor sobre quaisquer dos assuntos a que se refere o art. 146 da Constituição, e, mais especificamente, o art. 156, III, desse Diploma normativo, o legislador infraconstitucional deve ater-se à tarefa de elucidar e reforçar os comandos veiculados pelo constituinte. É-lhe terminantemente vedado extrapolar tal função, inovando e prescrevendo condutas diversas daquelas referidas pelo Texto Magno.
Tal ordem de esclarecimentos assume relevância não apenas perante a atividade do legislador, mas também do intérprete: limita a atuação do primeiro e orienta a do segundo. Por isso, o exame de qualquer texto de lei complementar em matéria tributária há de ser efetuado de acordo com as regras constitucionais de competência.[5]"
Neste esteio, percebe-se que apesar do direito conferido pela Constituição ao legislador infraconstitucional de editar normas gerais de matéria tributária através de leis complementares, tal autonomia estará vinculada às regras e ditames previstos no texto constitucional, ficando esse campo de atuação limitado e restringido pelos preceitos constitucionais vigentes. Assim, não poderá expandir a regra matriz de incidência tributária para além da previsão constitucional, devendo se adequar à norma constitucional aplicável.
Tal hierarquização decorre, como dito anteriormente, da estrutura legislativa da Federação Brasileira, não restando dúvidas acerca da superioridade hierárquica da Constituição Federal em relação às demais figuras legislativas. Deste modo, a Carta Magna age como balizadora e orientadora das demais regras tributárias – e o faz, ao estabelecer a competência de cada ente, bem como definir a regra matriz de incidência para cada espécie de tributo.
Relativizar a competência da Constituição Federal para delimitar o campo de incidência dos tributos e admitir a capacidade das Leis Complementares de definir hipóteses de incidência de forma ampla, além dos limites previstos pela Carta Magna, é uma afronta não somente à segurança jurídica do sistema constitucional brasileiro como também ao pacto federativo, uma vez que flexibilizaria certos comandos contidos na Constituição Brasileira (tida como rígida pela maioria da doutrina) e daria um poder demasiado às legislações infraconstitucionais.
Não se vai aqui tecer maiores comentários acerca da autonomia administrativa, financeira e legislativa da União, dos Estados e Distrito Federal, e dos Municípios, uma vez que não é o objeto deste trabalho, mas é inequivocamente necessário, para o real e correto funcionamento da máquina tributária, que sejam colocados freios e medidas a tais funções, sob pena de tornar o sistema fiscal brasileira caótico. Aqui, dizer que os entes federados tem total autonomia, o que é uma verdade constitucional – artigo 18 – não significa dizer que estes mesmos entes tem competência para instituir tributos sobre qualquer natureza. E o freio, neste caso, é a própria a Constituição Federal.
Interessante pontuar, todavia, que em respeito à autonomia das competências tributárias conferidas aos Municípios, Estados, Distrito Federal e União, não poderá a Lei Complementar restringir o campo de atuação destes entes, sob pena de interferência no poder de tributar conferido pela Constituição Federal – atuam portanto, ao bosquejar as normais gerais em matéria tributária, de maneira regulatória, e não supressora. Curial concluir, pois, que as Leis Complementares, assim como não podem expandir, também não poderão limitar as competências tributárias conferidas pela Constituição aos entes políticos – todavia, utilizando-se da capacidade de dispor sobre conflitos de competência, deve evitar que as competências tributárias de determinado ente político sejam usurpadas e invadidas por outro, nos termos delineados na Carta Magna.[6]
Ocorre, entretanto, que o legislador infraconstitucional, dotado deste poder de instituir e regulamentar as normas gerais do Direito por meio de Lei Complementar, nos termos do art. 146 da Constituição Federal, labora muitas vezes em desídia, conforme será demonstrado durante este trabalho, fazendo surgir temerários conflitos de competência sobre algumas hipóteses de incidência tributária, o que causa enormes danos ao contribuinte e uma inevitável insegurança jurídica ao sistema tributário brasileiro, ficando o sujeito passivo exposto ao apetite de mais de um ente federado dotado do competência em exigir o recolhimento de cada um dos respectivos tributos.
Cabe citar, a título meramente ilustrativo, inúmeros exemplos de atos jurídicos que estão situados em uma zona cinzenta, dando margem a diversas interpretações e, consequentemente, à aplicação de dois ou mais tributos vinculado a um mesmo fato gerador. A um, deve-se mencionar o caso da fabricação de medicamentos manipulados, em que o Fisco Estadual entende se tratar de um circulação de mercadoria tributada pelo ICMS, e o Fisco Municipal entende pela incidência do ISS; a dois, cabe citar os serviços desempenhados por provedores de acesso à internet, situados entre a incidência do ICMS-Comunicação e do ISS. Há inclusive casos que o conflito reside não sobre o tributo a ser cobrado, mas sobre o ente federado responsável pela cobrança e recolhimento do tributo – como exemplos, podemos citar o caso do ICMS-Importação, em que reside a dúvida se o imposto tem que ser recolhido em favor do estado em que a mercadoria é desembaraçada ou perante o domicílio do destinatário final da mercadoria; ou ainda nos casos de prestação de serviços intermunicipais, em que as prefeituras se atracam para auferir a receita tributária, muitas vezes cobrando o contribuinte em duplicidade.
Debruçar-nos-emos no presente trabalho sobre um conflito de competência específico, aquele vinculado às operações de industrialização por encomenda, instituto este bastante comum nas cadeias produtivas no Brasil e que, em razão da divergência causada por interpretações distintas das regras infraconstitucionais, somado à ganância dos entes políticos em exigir, concomitantemente, tributos distintos sobre um mesmo fato gerador, tem causado enorme vulnerabilidade aos contribuintes e onerado sobremaneira o processo produtivo de itens industrializados por conta e ordem de terceiros.
Antes de iniciarmos, contudo, a análise detalhada deste instituto, imprescindível tecer comentários e conceituar de maneira cabal as obrigações de dar (dare) e fazer (facere), uma vez que guardam estreita conexão com a conclusão proposta a respeito da tributação incidente sobre as operações de industrialização por encomenda.