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O problema da cientificidade do Direito Comparado diante de uma noção de ciência baseada em valores.

O estudo comparatista como discurso ético-político

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Agenda 07/08/2005 às 00:00

6. Considerações conclusivas

            Eis o que, resumidamente, pode-se concluir da exposição acima:

            6.1. A noção de círculo hermenêutico bem demonstra que o comparatista não pode ser visto como um ser neutro, que não sofre interferência de fatores sociais, políticos, culturais;

            6.2. O pesquisador é humano e, como tal, dotado de uma pré-compreensão dos fenômenos, que vai guiar sua visão de mundo e filtrar a "realidade" no ato de conhecer. Desta pré-compreensão o sujeito não pode fugir, pois é condição de possibilidade da própria compreensão;

            6.3. Nessa linha de raciocínio, o conceito de ciência não pode mais ser o mesmo herdado do Iluminismo. O saber científico se vê às voltas com noções claramente valorativas como simplicidade e coerência na escolha entre teorias científicas;

            6.4. Isto, se não acaba, diminui a distância entre a ciência e a ética, entre o fato e o valor. A visão de fato como algo objetivo e de valor como algo subjetivo é questionada tanto pelo círculo hermenêutico, quanto pela presença de problemas valorativos nas ciências;

            6.5. Seguindo a mesma trilha, tem-se que não se pode deixar de levar em conta o caráter valorativo do direito comparado, especialmente quanto ao estudo cuja finalidade é a recepção legislativa. Esta, envolvendo a passagem de um instituto jurídico de um sistema para outro, demanda pesquisas multidisciplinares, o que vem a abalar a noção de autonomia do direito comparado;

            6.6. A tentativa de tornar o direito comparado um saber científico deve levar em consideração esta nova visão da ciência e situar o saber comparatista como conhecimento de enfoque ético e político, ainda mais na recepção legislativa, sob pena de o estudo não ser suficientemente abrangente;

            6.7. Ao contrário do que se poderia pensar, tal atitude gnosiológica não significa um relativismo ético ou científico, pelo que se deve ter em mente que os valores são socialmente institucionalizados, não sendo descartada a constatação do que é melhor ou pior em matéria de ética ou ciência;

            6.8. O que tal visão proporciona é uma postura mais tolerante no direito comparado, o que pode vir a ser muito útil nas discussões em recepção legislativa ou constitucional, já que trata de temas afetos à sociedade como um todo e que, portanto, demandam discussões políticas em um ambiente mais democrático.


7. Bibliografia

            ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. São Paulo: Saraiva, 2002.

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            PACHECO Mariana Pimentel Fischer. Subjetividade, Ética e complexidade no direito. A segurança que vem da admissão da insegurança: uma crítica à pressuposição de onipotência que subjaz as razoes jurídicas. 2004. Dissertação (Mestrado em Direito – Filosofia, Teoria e Sociologia do Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

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            PEREIRA, Caio Mario da Silva. "Direito Comparado e seu Estudo". Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Nova Fase, Belo Horizonte, 1955.

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            RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa: Dom Quixote, 1988.

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            STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

            VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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            ZOHAR, Danah. O Ser Quântico – Uma visão revolucionária da natureza humana e da consciência baseada na nova física. São Paulo: Best Seller, 1990.


Notas

            01

Deve-se destacar a posição de Ivo Dantas que, ao tratar do tema, esclarece que está fazendo epistemologia, entendida como teoria do conhecimento científico, em contraposição à gnosiologia, entendida como teoria do conhecimento em geral, o que já demonstra sua predisposição a considerar o direito comparado como uma ciência, dentro dos critérios estabelecidos pelo autor. DANTAS, Ivo. Direito Constitucional Comparado: introdução, teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 04.

            02

DANTAS, Ivo. "Direito comparado como ciência". Revista de Informação Legislativa, n. 34. Brasília: Senado Federal, 1997, p. 236.

            03

DANTAS, Ivo. "Direito comparado como ciência". Revista de Informação Legislativa, n. 34. Brasília: Senado Federal, 1997, p. 240.

            04

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 186 e ss;

            05

BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. São Paulo: Brasiliense, 1996.

            06

RABENHORST, Eduardo Ramalho. A normatividade dos fatos. João Pessoa: Vieira Livros, 2003, p. 52.

            07

MORIN, Edgar: Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. P. 225; PACHECO Mariana Pimentel Fischer. Subjetividade, Ética e complexidade no direito. A segurança que vem da admissão da insegurança: uma crítica à pressuposição de onipotência que subjaz as razoes jurídicas. 2004. Dissertação (Mestrado em Direito – Filosofia, Teoria e Sociologia do Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

            08

ZOHAR, Danah: O Ser Quântico – Uma visão revolucionária da natureza humana e da consciência baseada na nova física. São Paulo: Best Seller, 1990. P. 21-25.

            09

RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 267.

            10

Dasein é traduzido para o português também como "pre-sença". Ver GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Petrópolis: Vozes, 2002 e HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: parte I. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000. Ver também STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 186. Em Manfredo Oliveira tem-se a tradução por eis-aí-ser.

            11

VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 115.

            12

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 354.

            13

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 209.

            14

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: parte I. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000, p. 207.

            15

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 228.

            16

BIZZOCCHI, Aldo. "Cognição: como pensamos o mundo". Ciência Hoje, v. 30, n. 175. Rio de Janeiro: SBPC, 2001, p. 34.

            17

ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 30.

            18

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. XI.

            19

BIZZOCCHI, Aldo. "Cognição: como pensamos o mundo". Ciência Hoje, v. 30, n. 175. Rio de Janeiro: SBPC, 2001, p. 34.

            20

RABENHORST, Eduardo Ramalho. A normatividade dos fatos. João Pessoa: Vieira Livros, 2003, p. 22.

            21

RABENHORST, Eduardo Ramalho. A normatividade dos fatos. João Pessoa: Vieira Livros, 2003, p. 24.

            22

RABENHORST, Eduardo Ramalho. A normatividade dos fatos. João Pessoa: Vieira Livros, 2003, p. 65.

            23

RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 252.

            24

KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago, 1970, p. 120.

            25

RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 252.

            26

RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 256.

            27

KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago, 1970, p. 331 e ss.

            28

RABENHORST, Eduardo Ramalho. A normatividade dos fatos. João Pessoa: Vieira Livros, 2003, p. 51.

            29

PUTNAM, Hilary. Realismo de rosto humano. Lisboa: Piaget, 1999, p. 212.

            30

RABENHORST, Eduardo Ramalho. A normatividade dos fatos. João Pessoa: Vieira Livros, 2003, p. 54; PUTNAM, Hilary. Realismo de rosto humano. Lisboa: Piaget, 1999, p. 212.

            31

RABENHORST, Eduardo Ramalho. A normatividade dos fatos. João Pessoa: Vieira Livros, 2003, p. 54.

            32

RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 256.

            33

RABENHORST, Eduardo Ramalho. A normatividade dos fatos. João Pessoa: Vieira Livros, 2003, p. 54.

            34

RABENHORST, Eduardo Ramalho. A normatividade dos fatos. João Pessoa: Vieira Livros, 2003, p. 54.

            35

PUTNAM, Hilary. Realismo de rosto humano. Lisboa: Piaget, 1999, p. 214.

            36

RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 266.

            37

PEREIRA, Caio Mario da Silva. "Direito Comparado e seu Estudo". Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Nova Fase, Belo Horizonte, 1955, p. 42.

            38

DANTAS, Ivo. Direito Constitucional Comparado: introdução, teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 61 e 62.

            39

O pragmatismo, como uma filosofia da ação, pretende acabar com a distinção entre conhecer coisas e usá-las. Assim, apresenta-se contra a tese de que as coisas tenham uma essência a ser descoberta pelo homem e de que, portanto, seria função do conhecimento buscar essa essência. "Sin embargo, para hacer plausible esa afirmación, los pragmatistas tienen que atacar la idea de que conocer X es estar relacionado con algo intrínseco a X, mientras que usar X es estar em uma relación accidental, extrínseca a X." RORTY, Richard. Esperanza o Conocimiento? Una introducción al pragmatismo. Buenos Aires: Fundo de Cultura Econômica, 2001, p. 47.

            40

MERRYMAN, John Henry. "Modernización de la ciencia juridica comparada". Boletin Mexicano de Derecho Comparado. Nueva Serie. N. 46, México, 1983, p. 70.

            41

RORTY, Richard. Esperanza o Conocimiento? Una introducción al pragmatismo. Buenos Aires: Fundo de Cultura Econômica, 2001, p. 47.

            42

DANTAS, Ivo. Direito Constitucional Comparado: introdução, teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 66.

            43

DANTAS, Ivo. Direito Constitucional Comparado: introdução, teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 62.

            44

DANTAS, Ivo. "A recepção legislativa e os sistemas constitucionais". Revista de Informação Legislativa. N. 158. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 08.

            45

É, no entanto de se destacar o exemplo da duplicate e da triplicate, instrumentos de comprovação e circulação de crédito nascidos no Brasil.

            46

PEREIRA, Caio Mario da Silva. "Direito comparado: ciência autônoma". Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Nova Fase, Belo Horizonte, 1952, p. 39.

            47

DE CRUZ, Peter. Comparative law in a changing world. Cavendish Publishing, 1995, p. 05.

            48

PEREIRA, Caio Mario da Silva. "Direito comparado: ciência autônoma". Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Nova Fase, Belo Horizonte, 1952, p. 37.

            49

PEREIRA, Caio Mario da Silva. "Direito comparado: ciência autônoma". Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Nova Fase, Belo Horizonte, 1952, p. 42.

            50

YAZBEK, Otávio. "Considerações sobre a circulação e transferência dos modelos jurídicos". GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 553.

            51

DANTAS, Ivo. "A recepção legislativa e os sistemas constitucionais". Revista de Informação Legislativa. N. 158. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 08.

            52

DANTAS, Ivo. "Direito comparado como ciência". Revista de Informação Legislativa, n. 34. Brasília: Senado Federal, 1997, p. 235-236.

            53

SOUTO, Cláudio. Da inexistência científico-conceitual do direito comparado. Recife, 1956, P. 104.

            54

Visão diferente pode ser vista em DANTAS, Ivo. "Direito comparado como ciência". Revista de Informação Legislativa, n. 34. Brasília: Senado Federal, 1997, p. 238-239.

            55

DANTAS, Ivo. "A recepção legislativa e os sistemas constitucionais". Revista de Informação Legislativa. N. 158. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 08.

            56

PUTNAM, Hilary. Realismo de rosto humano. Lisboa: Piaget, 1999, p. 214.

            57

RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 267.
Sobre o autor
Adrualdo de Lima Catão

Mestre e doutorando em Filosofia e Teoria do Direito pela UFPE, Especialista em Direito Processual pelo CESMAC/AL, Professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Alagoas - UFAL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CATÃO, Adrualdo Lima. O problema da cientificidade do Direito Comparado diante de uma noção de ciência baseada em valores.: O estudo comparatista como discurso ético-político. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 764, 7 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7120. Acesso em: 24 dez. 2024.

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