Da responsabilidade civil e penal do médico
A recusa do tratamento pelo paciente é um tema muito importante para os profissionais da área da saúde, que lida com essas questões de forma frequente e rotineira. E portanto, notamos que essa tratativa é bastante obscura para os envolvidos nessa relação, os médicos.
Muitos médicos ficam na dúvida quando chega algum caso no hospital de paciente Testemunha de Jeová, acerca da consequência gerada pelo seu ato no exercício profissional da medicina. A sua formação profissional e os seus conhecimentos sobre a medicina leva ao dever de agir e em consequência confronta com o direito à liberdade do paciente.
A responsabilidade civil do médico é subjetiva, enquanto profissional liberal. Portanto deve ser feita apuração da culpa do médico juntamente com os seguintes elementos: negligência, imprudência e imperícia. Assim dispõe o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor: § 4º: A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa. (BRASIL, 1990).
Como a obrigação do médico é considerada de meio, ou seja, concernentes de atividades para manter a saúde do indivíduo, cabe a vítima mais do que demonstrar o dano, mas provar que o dano gerado ocorreu por culpa por parte do médico.
O médico deve respeitar a vontade do paciente quando o mesmo se recusa a receber o tratamento de transfusão, mesmo que isso venha levar a óbito o paciente. Se o médico informar ao paciente os riscos da recusa ao tratamento da transfusão, e mesmo assim o paciente se opor pela não realização, o médico estará portanto agindo conforme dispõe o ordenamento jurídico brasileiro, e portanto não poderá ser responsabilizado civil ou criminalmente pela morte que pode vir a acontecer.
Segue posicionamento defendido pelo promotor de Justiça em Guaporé (RS), Cláudio da Silva Leiria:
Evidentemente, se um paciente, de forma livre e consciente, recusa transfusão de sangue mesmo ciente dos riscos iminentes a sua vida decorrentes dessa conduta, não será caso de aplicação do disposto no artigo 46 do Código de Ética Médica, mas sim do artigo 48 do mesmo Diploma Legal, que veda ao médico exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar. (LEIRIA, 2018, grifo nosso).
Vemos portanto que quando o médico respeita a religião do paciente e não realiza a transfusão, ao mesmo mesmo não poderá cair nenhuma responsabilização.
De outro lado, temos a realização da transfusão de sangue mesmo contra a vontade dos seguidores Testemunha de Jeová, nesses casos o médico também não poderá ser responsabilizado, pois agiu conforme determina o Código de Ética Médica, especialmente em consonância com o seguinte artigo: “É vedado ao médico: Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2010). Ou seja, em caso de iminente perigo de vida, o médico poderá sim realizar os atos adequados à manutenção da vida, independentemente de não haver consentimento do paciente ou de seu representante.
O médico ainda possui amparo quanto a realização de intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente no Código Penal. E que tal conduta adotada pelo médico não configura constrangimento ilegal do paciente. O profissional, portanto poderá se abster do consentimento do paciente ou responsável, se o paciente se encontra em estado de risco de vida.
Está disposto no Código Penal em seu artigo 146, que não se configura constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.
Não há unanimidade sobre esse assunto na jurisprudência, não é incomum vermos decisões judiciais que concordam com a transfusão realizada em paciente Testemunha de Jeová mesmo contra a sua vontade em caso de iminente risco de vida. E também não é incomum vermos a não realização do procedimento em virtude da convicção religiosa adotada pelo indivíduo. Não se pode esperar dos médicos uma atitude singular e pacífica, se nem mesmo os tribunais possuem entendimento pacificado sobre esse tema.
CONCLUSÃO
A evolução da humanidade vem contribuindo de forma muito significativa na área do Direito, em que a interpretação humana se faz muito presente na vida dos magistrados no exercício de suas funções. Ao magistrado cabe aplicar a lei geral nos casos concretos, utilizando portanto a sua interpretação para decidir da forma mais justa possível.
Os direitos fundamentais possuem previsão no texto constitucional, mas o problema enfrentado com a previsão de tais garantias, é a falta de limitação desses direitos. Em nossa Constituição Federal no “caput” do artigo 5º trata da inviolabilidade do direito à vida, que é estendido aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Brasil. No desdobramento do artigo 5º, mais especificamente no inciso VI, está previsto a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença. O que se percebe com essas tipificações é que não existe nenhuma limitação, restrição do direito, nem mesmo em casos excepcionais, o que dificulta a função do magistrado quando se depara com a colisão de dois direitos fundamentais importantes para os seres humanos.
O direito à vida e à liberdade são considerados como direitos fundamentais de primeira geração. E eles causam muita divergência de opiniões quanto ao papel de importância entre si, gerando muito conflito pelo choque entre os dois direitos. Quando o paciente Testemunha de Jeová prefere dispor de sua vida do que realizar um tratamento que envolva transfusão de sangue , essa escolha gera uma vasta discussão.
É extremamente complicado termos um direito fundamental que pode simplesmente extinguir um bem tão importante para a espécie humana, que é a vida. A vida é pressuposto para o alcance de todos os direitos, então, não faz sentido acabar com esse direito por uma decisão interior do indivíduo.
De outro lado, questões religiosas são consideradas sagradas e importantíssimas para os seguidores da religião Testemunha de Jeová, e qualquer forma de afronta à esse direito é considerado de extrema consequência psíquica e moral para os seus seguidores. Suas consequências não podem ser vistas, mas sim sentidas por aqueles que possuem suas convicções religiosas.
As transfusões de sangue são abominadas pelos pacientes Testemunhas de Jeová, fundamentada pelos seus seguidores que o Antigo Testamento como o Novo Testamento os ordenam a abster de sangue. Acompanhando esse posicionamento adotado pelos Testemunhas de Jeová muitas críticas surgem quanto à realização da transfusão de sangue, em que tal procedimento pode facilitar a transmissão de doenças pelo sangue e causar diferentes reações imunológicas no corpo humano.
Percebemos com as decisões proferidas pelos tribunais que não se tem um certo equilíbrio sobre o tema. Na primeira decisão tratada no trabalho notamos que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou o direito à vida como superior em comparação com o direito à liberdade religiosa.
Notamos certo avanço dos tribunais que determinam que havendo tratamento alternativo à transfusão de sangue, este deve ser utilizado. Portanto deve-se tentar todas outras formas de tratamento que não seja a realização da transfusão. É garantido tratamento alternativo por meio do SUS até fora do domicílio do paciente.
Para aqueles que defendem a prevalência da liberdade religiosa é uma situação bem complicada. A decisão já comentada e proferida pelo TJRS dispõe que não cabe ao Poder Judiciário determinar a realização de tratamento médico, cirúrgico ou hospitalar. Ou seja, não será decidido pelo Poder Judiciário acerca da realização ou não de tratamento. Cabe ao médico no seu exercício profissional executar as medidas que melhor lhe parecer no dado caso. Mas a pergunta que não quer calar, é como um médico que não professa a religião Testemunha de Jeová saberá como equilibrar o conflito desses direitos? Provavelmente ele pensará em salvar a vida do paciente em primeiro lugar, mesmo sem saber a gravidade e o nível de importância da religião para os seus seguidores.
Já para os defensores do direito à vida, a atitude do médico em tentar e conseguir com sucesso proteger a vida daquele indivíduo Testemunha de Jeová será vista como uma atitude gloriosa e honrosa.
Encontramos posicionamentos controversos acerca da aplicação e execução das atividades que cercam os direitos fundamentais. A vida possui garantia constitucional conforme já tratado anteriormente, mas ela pode ser mitigada na situação do artigo 15 do Código Civil, em que ninguém poderá ser submetido com risco de vida a tratamento médico ou cirúrgico.
Já na previsão do artigo 146, inciso I, §3º, não configura ato ilícito a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seus familiares. Nesse caso nota-se que esse artigo fere a liberdade religiosa de consciência e de crença, ainda mais o direito à intimidade e privacidade.
Devido a ambiguidade na lei cabe ao magistrado decidir da melhor forma cabível analisando o caso em concreto. Como não há uma única solução para o problema enfrentado cabe ao magistrado julgar o caso em questão analisando as pretensões dos pacientes, na defesa primordial da dignidade da pessoa humana.
Vemos que os operadores do direito com o apoio de princípios que utilizados da forma correta proporcionam a concretização da justiça e da pacificação social. O legislador constitucional não se preocupou ou nem cogitou em pensar na solução da colisão entre direitos e princípios fundamentais.
É perceptível o excelente trabalho exercido pelo Poder Judiciário ao solucionar e resolver tais conflitos com leis que tratam de forma obscura e de forma parcial tal tema. A doutrina e a jurisprudência complementaram a legislação constitucional e infraconstitucional para o funcionamento do sistema jurídico.
O médico no exercício da medicina tem a função de proteger e preservar vidas e, portanto fica à critério dele respeitar a vontade do paciente (respeitando a sua convicção religiosa) ou realizar o procedimento mesmo contra a vontade do paciente e dos familiares (respeitando o direito à vida do paciente).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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