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As ações coletivas e o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário

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Agenda 19/08/2005 às 00:00

3. A tripartição dos poderes e o juiz como legislador positivo

A par dessa nova mentalidade, exigida do magistrado, a adequada tutela coletiva – em relação ao Poder Público – impõe revisar a noção clássica da tripartição dos poderes do Estado, bem como o dogma – concebido pela jurisprudência nacional – de impedir-se ao Judiciário agir como "legislador positivo", ou seja, criando determinações concretas, de modo a suprir a omissão legislativa.

Sabe-se que é freqüente o argumento – contrário ao controle judicial das políticas públicas – de que o Poder Judiciário, ao investigar tais atividades das demais funções do Estado (Legislativo e Executivo), estaria intrometendo-se indevidamente em atividades destes outros "Poderes", violando a separação dos poderes, imposta pela Constituição da República. [24] Na jurisprudência, também, não são raros os casos em que o Judiciário se nega a atuar em determinados casos, precisamente por invocar esta separação de funções – e a conseqüente proibição em atuar na condição de legislador positivo – como limite à sua ação. [25] Há, mesmo, súmula do Supremo Tribunal Federal espelhando esse entendimento (Súmula n. 339: "não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia").

Sem sombra de dúvida, a limitação em questão representa severa condicionante à atuação jurisdicional no trato de políticas públicas. Ao se aplicar desavisadamente esta orientação, jamais poderá o Poder Judiciário impor prestação positiva ao Estado – já que, sempre, haverá intromissão em atividade do Executivo (ou, até mesmo, do Legislativo), servindo o magistrado como legislador positivo.

Na realidade, a questão posta revela ideário já vencido há muito tempo. Considerar a idéia de "separação de poderes" como imposição de rígida divisão de atribuições entre o Judiciário, o Executivo e o Legislativo é algo que não tem mais pertinência em nenhum país do mundo (aí incluído o Brasil). Na verdade, o argumento, atualmente, assume antes caráter retórico do que concreto, já que diversas são as situações reais que desmentem a aplicação dessa teoria rígida no sistema nacional.

Com efeito, a aplicação da teoria da "separação de poderes" implicaria a aceitação da idéia de que a legislação somente é atribuída ao Legislativo, de que a administração somente compete ao Executivo e de que a aplicação do direito ao caso concreto (por terceiro imparcial) é providência exclusivamente reservada ao Judiciário. Ora, as medidas provisórias, a autonomia administrativa do Legislativo e do Judiciário (arts. 51, IV, 52, XIII e 99, da CR) e as sentenças normativas da Justiça do Trabalho, respectivamente, são demonstração do equívoco dessa premissa. Aliás, admitida de forma irrestrita a "separação de poderes", sequer seria admitido o controle jurisdicional do Estado (mesmo que sob a suposição de violação da legalidade). De fato, como diz Riccardo Guastini, "no modelo de separação de poderes, os juízes não podem controlar a legalidade dos atos do executivo, nem anular ou privá-los de eficácia (o controle da legalidade sobre atos da administração é atribuído aos órgãos internos da própria Administração). Ao contrário, no modelo do balanceamento de poderes, os atos do executivo são sujeitos a controle jurisdicional de legalidade, e os atos administrativos ilegais podem ser anulados (ou, ao menos, desaplicados) pelo juiz". [26]

Ora, é evidente que todos estes excessos não têm cabimento no direito brasileiro. É, também, óbvio, portanto, que o sistema adotado no Brasil não é o da "separação de poderes", mas sim o do "balanceamento dos poderes". [27] Ou seja, o direito nacional não concebe a vedação de o Judiciário controlar atividades de outros "poderes" – seja negando força a estas atividades (controle negativo), seja impondo condutas (controle positivo). Ao contrário, no Brasil, o Judiciário tem sim a prerrogativa de interferir na atividade do Executivo e do Legislativo, para controlar a atuação destes na sua conformidade com o Direito – aí incluídos os princípios e diretrizes constitucionais. [28]

Dessa forma, sempre que a atividade dos outros "poderes" se mostre ilegal ou contrária às diretrizes principiológicas da Lei Maior, impõe-se a atuação do Poder Judiciário, coibindo esta ilegalidade e apontando o caminho correto da atividade do Estado, seja vedando certa conduta, seja ainda impondo-a, quando verificada a omissão. Note-se, com efeito, que essa prática é corriqueira no cotidiano forense. Inúmeras são as ações (mesmo apresentadas perante os tribunais superiores) em que se pretende prestação positiva do Estado ou, ao menos o controle de sua atividade. Normalmente, sequer se atenta que tais demandas desconsideram a idéia de "separação dos poderes" (e mesmo a consectária proibição da atuação do magistrado como "legislador positivo"). Apenas em determinadas questões – em que a conveniência política aponta para solução em que convenha não interferir na atuação estatal – é que se invoca as teorias acima descritas, totalmente superadas pela história, como óbice para a atuação jurisdicional.

Por outro lado, essa intervenção nos demais "poderes" – que é, na atualidade, uma constante – vem paulatinamente assumindo contornos em que se torna difícil diferençar a atividade jurisdicional da função legiferante. A noção de que a lei é ato abstrato e genérico, enquanto a decisão judicial é concreta e específica, vem cedendo, a cada momento, à realidade em que sentenças assumem, também, caráter genérico e abstrato. [29] A atuação do Judiciário frente às demandas coletivas é a maior prova disso. O caráter geral da decisão judicial, a condenação genérica preconizada pela lei (art. 95, da Lei n. 8.078/90) e a indeterminação dos sujeitos a serem atingidos pela sentença são prova de que este ato se assemelha em muito à lei. Em conseqüência disso, como pondera Rodolfo Mancuso, "essa gradativa expansão da eficácia das decisões judiciais se amolda, pois, à atenuação do rígido esquema de separação entre os poderes, á medida que mais e mais as decisões judiciais tendem a se libertar do confinamento nos autos em que foram proferidas para projetar reflexos ao exterior, em face de outros jurisdicionados, e principalmente perante os demais Poderes do Estado, numa força coercitiva mais ou menos ampla, que sob esse aspecto vai aproximando os produtos legislativo e judiciário". [30]

Disso tudo ressalta, mais uma vez, a necessidade de conscientização aos magistrados do papel político por eles desempenhado, bem como a imposição de se revisar os pressupostos e dogmas em que opera o Judiciário nacional. Obstáculos como os acima apontados são, antes, mero argumento (de fundamento inexistente) para evitar o julgamento, do que propriamente limitação à função jurisdicional. Limitações aparentes como esta são convenientemente empregadas em certas situações – como impedimento à atuação judicial – e afastadas em outras, o que certamente não se pode admitir. Não se está, aqui, frente a efetiva fronteira na atuação jurisdicional, sendo imperioso repensar este problema específico.


4. Controle de discricionariedade

É corrente falar-se na impossibilidade de o Poder Judiciário controlar o "mérito" do ato administrativo, dizendo-se com isso que não compete ao magistrado apreciar a conveniência e oportunidade daquela espécie de ato.

Realmente, existe – e deve existir, pela precisa maneira distinta de legitimação da função exercida pela função administrativa e pela função jurisdicional do Estado – limite para o controle do ato público pelo Judiciário. Não é conveniente (nem tocaria à função reservada ao Poder Judiciário) que o magistrado se substitua ao administrador, regendo a forma pela qual o Estado deve ser gerido. Não foi para desempenhar este papel que o juiz foi galgado a esta posição, nem se espera deste agente a compreensão da lógica que preside a atividade desenvolvida pelo Poder Executivo. Há, portanto, sem dúvida, uma porção do ato administrativo insindicável pelo magistrado, dentro do qual, realmente, não há legítima interferência judicial.

No passado, aludiu-se – havendo referência expressa nas Constituições de 1934 e de 1937 a esta figura – aos chamados atos políticos, que seriam insuscetíveis de controle pelo Poder Judiciário. Tais seriam os atos que, por sua conotação primordialmente política, estariam afetos exclusivamente aos critérios político, de governo, o que suprimiria do Poder Judiciário a possibilidade de seu controle. A categoria (e especialmente a conseqüência decorrente), porém, foi objeto de crítica geral pela doutrina, que salientava a artificialidade da criação e, especialmente, da decorrente insindicabilidade destes atos pelos magistrados. A propósito, contundentes foram as palavras de Rui Barbosa que, ao contrapor a questão política à questão jurídica, concluiu que "contraposto a este se estende, com divisas claras e sensíveis, o terreno da justiça, assinalado exatamente pela característica oposta de que questões de sua alçada, em vez de obedecerem à apreciação de conveniências, mais ou menos gerais, entendem com a aplicação do direito legal aos casos particulares, de ordem individual ou coletiva. Onde quer que surja um problema jurídico desta natureza, embora não seja estreme de elementos políticos, desde que exclusivamente político não é, tem de receber a solução legal do poder constituído para dar efeito às garantias constitucionais e com elas valer a toda individualidade, natural ou moral, lesada no seu direito". [31]

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Com efeito, supor que o ato político – por representar, em seu âmago, decisão de cunho político a respeito de certa questão – não pode submeter-se ao crivo judicial é desconsiderar que mesmo nesta eleição política de opções, pode o administrador agir de forma ilegal, violando o pressuposto mais essencial de seu agir. Neste caso, obviamente, ainda que político, o ato passa a ser ilegítimo, não havendo razão para excluir seu exame pelo órgão jurisdicional. [32]

O mesmo raciocínio valerá, obviamente, para o ato administrativo discricionário. Como se sabe, o ato discricionário é aquele em que há porção do ato entregue ao juízo de conveniência e oportunidade do administrador. Mais precisamente, na clara lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, "atos ‘discricionários’, pelo contrário, seriam os que a Administração pratica com certa margem de liberdade de avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade formulados por ela mesma, ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles". [33] Logicamente, não se deve ver discricionariedade em qualquer ato administrativo cuja disciplina legal esteja permeada de tratamento por conceitos vagos. O chamado "mérito administrativo" não se confunde com a interpretação a ser dada a determinado conceito fluido (em si só), nem se estende para abranger qualquer aspecto do ato administrativo. De fato, como demonstra a doutrina, é equivocada a noção que vê a legalidade vinculada apenas ao aspecto formal e de competência do ato administrativo; [34] em verdade, o campo da legalidade vai bem além, abrangendo todos os elementos do ato administrativo, ao menos em sua relação com preceitos específicos de lei ou com princípios constitucionais.

A presença desta margem de "liberdade" legal, [35] obviamente, implica aceitar que a escolha da opção cabe ao administrador, não havendo espaço para a sobreposição desta escolha por outra, do mesmo porte, realizada pelo magistrado. Daí, todavia, a imaginar-se que o ato administrativo (dito discricionário) não pode ser apreciado pelo Poder Judiciário, vai uma grande distância. Na realidade, embora se deva reconhecer limite para a atividade judicial no exame do ato discricionário, isto não implica dizer que haverá liberdade para o agir do administrador, que poderá adotar a solução que melhor lhe convenha.

De fato, o espaço de discricionariedade dado pela lei ao administrador apenas pode ser visto como espaço para, diante do caso concreto, eleger ele a solução mais adequada. Se a discricionariedade tem o papel de amoldar a exigência da lei à realidade do caso concreto, é evidente que sua existência somente se justifica na medida em que o administrador possa, diante das circunstâncias concretas, adotar a solução mais perfeita e correta para a realização da intenção da lei. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, "assim, a discricionariedade existe, por definição, única e tão-somente para proporcionar em cada caso a escolha da providência ótima, isto é, daquela que realize superiormente o interesse público almejado pela lei aplicanda. Não se trata, portanto, de uma liberdade para a Administração decidir a seu talante, mas para decidir-se de modo que torne possível o alcance perfeito do desiderato normativo". [36]

Deste modo, falar em discricionariedade não significa entregar uma margem, irrestrita e insindicável, de liberdade plena ao administrador, que pode utilizar dela como desejar. [37] Na verdade, a lei não outorga este poder ao administrador para que este adote a providência que entender adequada segundo seus interesses, seus critérios ou suas preferências. Ao contrário, este "espaço de manobra" é entregue no exclusivo interesse público, para permitir que, diante do caso concreto, o administrador possa adotar a melhor providência possível.

Sendo assim, fica claro que, quando a opção do administrador for, claramente, ruim, diante do caso concreto, por se distanciar, evidentemente, daquelas possíveis opções "melhores" que a hipótese específica recomendaria, cabível será o controle judicial da medida. [38] O mesmo se dirá se a Administração Pública, a pretexto de fazer valer sua discricionariedade, agir em confronto com normas regulamentares previamente fixadas [39] ou, a fortiori, contra os princípios constitucionais que regem o seu agir (a exemplo da moralidade, da impessoalidade e da eficiência), [40] ou ainda em abuso de direito. [41]


5. Reserva do possível

Outro obstáculo comumente apontado para inibir o Poder Judiciário de controlar políticas públicas é a chamada "reserva de cofres públicos" ou "reserva do possível" (Vorbehalt des Möglichen). O óbice é posto, em especial, no concernente a ações positivas do Estado, como limitador à atuação do órgão estatal.

Como se afirma, não há maneira para impor-se ao Poder Público a obrigação de atuar em determinado sentido, porque pode haver restrições de ordem material e, especialmente, orçamentárias que impeçam este agir. Considerando que o orçamento é limitado – e que cabe ao poder discricionário do Estado a escolha da prioridade dos investimentos – não poderia o Poder Judiciário substituir-se aos legítimos administradores, para ditar a forma como o dinheiro público deve ser prioritariamente gasto. Desse modo, os direitos (todos eles) estariam condicionados, em sua realização pelo Poder Público, às capacidades financeiras do Estado, o que tornaria esta realização insindicável pelo Poder Judiciário. [42]

A idéia da reserva do possível surge com Peter Häberle, na década de 70, tendo sido acolhida pela Corte Constitucional alemã. É sempre lembrada, no particular, a decisão do caso numerus clausus, a respeito do direito de acesso às vagas em universidades alemãs ("numerus-clausus Entscheidung", BverfGE n. 33, 303 (333)), em que aquele tribunal considerou que as prestações que o cidadão pode exigir do Estado estão condicionadas aos limites do razoável. [43] Desde então, entende a Corte Constitucional Federal alemã que os direitos sociais de prestação positiva somente são exigíveis do Estado segundo os limites da possibilidade, ou seja, "daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade", correspondente, ao menos, ao "direito mínimo de existência" – evidente concreção do princípio da dignidade da pessoa humana. [44]

A reserva do possível, inquestionavelmente, constitui limite à atuação judicial. De fato, pouco resolve o magistrado impor ao Estado determinada prestação fática, quando este puder escudar-se com a afirmativa de carecer de recursos materiais para cumprir a determinação judicial. Estar-se-ia diante de decisão fadada à frustração, já que não seria realizada, nem se podendo cogitar de técnicas para impor a prestação.

Por outro lado, também não se pode esquecer a situação em que, ao cumprir a decisão do magistrado – de realizar certa prestação fática – estará o Estado deixando a descoberto outros interesses identicamente relevantes (ou, às vezes, mais importantes ainda). Tal é o que ocorre, por exemplo, quando o magistrado impõe ao Estado a determinação de realizar em certa pessoa uma cirurgia urgente (desrespeitando a fila existente para aquele tipo de procedimento médico). Logicamente, a determinação, se cumprida, acarretará prejuízo para outros tantos interesses idênticos, que serão preteridos em prol daquele vindicado judicialmente. [45]

Não obstante tais considerações, embora se reconheça a importância da cláusula de reserva do possível como limitador à atuação jurisdicional na implementação de políticas públicas, deve-se notar que este elemento não pode ser considerado como obstáculo absoluto. Realmente, embora o Poder Judiciário não tenha a autoridade de impor ao Estado determinada prestação quando este não disponha dos meios materiais para a consecução daquela conduta, daí não resulta a insindicabilidade geral dos atos de governo, sob o simples argumento da ausência de disponibilidade financeira para tanto.

Assim deve ser porque, conquanto os limites orçamentários possam constituir elemento de preocupação na imposição de políticas públicas ao Estado, tais políticas, muitas vezes, realizam garantias fundamentais, a cuja concretização se comprometeu o próprio Estado em seu estatuto constitucional. Diante disso, considerando que tais políticas muitas vezes revelam a efetivação de garantias previstas na Constituição da República, como direitos fundamentais, a falta de disponibilidade de caixa – ou, o que é mais usual, o uso dos recursos públicos para outro fim – não pode tornar "letra morta" a determinação constitucional, nem permite anular a vinculatividade dos preceitos consagradores de direitos fundamentais para o Poder Público (seja ele o Executivo, seja o Legislativo, seja mesmo o Judiciário). [46]

Na realidade, impende lembrar que os direitos fundamentais admitem concreção gradual, de forma que podem ser implementados paulatinamente, segundo as possibilidades de cada Estado. Esta implementação gradual, todavia, não pode autorizar que, sob o pretexto da indisponibilidade financeira do Estado, possa este furtar-se de realizar o mínimo cabível, dentro da exigência razoável que suas condições autorizariam. Com efeito, como demonstra Canotilho, "a gradualidade está associada, por vezes, à ‘ditadura dos cofres vazios’ entendendo-se que ela significa a realização dos direitos sociais em conformidade com o equilíbrio económico-financeiro do Estado. Se esta idéia de processo gradualístico-concretizador dificilmente pode ser contestado, já assim não acontece com a sugestção avançada por alguns autores sobre a completa discricionariedade do legislador orçamental quanto à actuação socialmente densificadora do Estado. A tese da insindicabilidade das ‘concretizações legislativas’ ou da ‘criação de direitos derivados a prestação’ pelo legislador assenta no postulado de que as políticas de realização de direitos sociais assentam em critérios exclusivos de oportunidade técnico-financeira". [47]

Na realidade, o limite do possível constitui uma barreira concreta para a realização de prestações pelo Estado. Quando, porém, estas prestações assumem caráter constitucional – de direitos fundamentais (de cunho social) – elas, porque admitem implementação gradual, podem ser satisfeitas em vários níveis.

Mais que isso, por se tratarem de direitos fundamentais, representam opções vinculativas do constituinte para o legislador infra-constitucional. Desse modo, estes interesses somente podem ser restritos – ainda que por conta da reserva do possível – na medida em que esta restrição atende a outro interesse também fundamental. Trata-se, em essência, da aplicação da ponderação de princípios. [48] De toda forma, e também por conta da aplicação desse critério, sempre será necessário preservar o núcleo essencial dos direitos fundamentais em questão, já que isso constitui uma das premissas da proporcionalidade. Assim, mesmo diante da "reserva do possível", jamais será admissível que o Estado abandone simplesmente um interesse fundamental. Sempre será exigível – ainda diante da reserva do possível – a preservação de um mínimo vital (direito fundamental mínimo), [49] correspondente ao mínimo razoavelmente exigível para a satisfação de uma vida digna.

Com efeito, ainda que se considere que mesmo estes direitos mínimos possuem reflexo financeiro para o Estado (especialmente quando são muitos os que exigem a sua satisfação), isto não é suficiente para negar existência (e força vinculante) para tais direitos fundamentais. [50] Se estes postulados foram fixados pelo constituinte, como garantias fundamentais, o critério financeiro do Estado deve assumir importância secundária, sob pena de fazer vã a intenção jus-fundamental. Não fosse assim, como explica Alexy, em tempos de crise econômica seria perfeitamente justificável o aniquilamento de direitos fundamentais, justamente sob o pressuposto de que os interesses financeiros do Estado deveriam ser postos em primeiro lugar, o que, obviamente, não é verdade. [51]

Sempre, pois, será possível o controle judicial das políticas públicas – mesmo diante da reserva do possível – quando se tratar de garantir direitos fundamentais mínimos. Idêntica posição se pode exigir do Poder Judiciário, à toda evidência, quando o argumento da "reserva do possível" não encontrar respaldo concreto, ou seja, quando o Estado dele se valha apenas para deixar de garantir interesse relevante. Verificada a ausência de qualquer limitação financeira, ou a aplicação de recursos públicos em finalidade evidentemente menos importante do que aquela a ser protegida, cumpre afastar o limite ora estudado, sendo imponível a prestação para o Estado.

Por derradeiro, importa lembrar que a tese acima defendida já foi explicitamente aplicada pelo Supremo Tribunal Federal. Ao decidir a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45-9/DF (DJU 04.05.04, p. 12), [52] ainda que em decisão monocrática, o relator, Ministro Celso de Mello, ponderou que, muito embora não caiba ao Poder Judiciário a implementação regular de políticas públicas, excepcionalmente este papel lhe é conferido "se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático". Existindo este papel do Poder Judiciário, prossegue o Ministro, há que se considerar, na determinação da implementação da política pública, a "reserva do possível", mas apenas na estrita medida em que esta reserva se mostre, efetivamente, existente. Ainda que reconheça a necessária vinculação da implementação dos direitos sociais aos limites financeiros do Estado, ressalta a decisão que isto não implica a liberdade plena do Estado em, a seu talante, concretizar ou não a norma garantidora do direito fundamental. A "reserva do possível" não poderá, portanto, ser invocada sem qualquer critério, somente com o intuito de exonerar o Poder Público de cumprir com sua função constitucional de implementar os direitos fundamentais. Como ressalta o Min. Celso de Mello, "Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade".

Diante de todos estes argumentos, conclui a decisão no sentido de que "Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado".

Precisamente esta é a idéia que rege a aplicação do princípio em questão. Não obstante possa ele configurar elemento de limitação à atividade jurisdicional, este limite não é absoluto, cabendo ao Poder Judiciário não apenas investigar a razoabilidade da indisponibilidade financeira alegada pelo Poder Público, como ainda apurar – se for o caso – a outra destinação dada ao recurso público, bem assim a garantia do "mínimo essencial" pelo Estado.

Logicamente, está-se aqui diante de conceitos vagos, a serem preenchidos diante do caso concreto. Todavia, tais elementos ao certo poderão servir de norte na atuação judicial do controle de políticas públicas, não tendo cabimento, enfim, invocar a cláusula da "reserva do possível" como elemento que inviabilize, por completo, a investigação judicial das práticas públicas.

Sobre o autor
Sergio Cruz Arenhart

procurador da República em Curitiba (PR), professor da UFPR e da UTP, mestre e doutor em Direito pela UFPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARENHART, Sergio Cruz. As ações coletivas e o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 777, 19 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7177. Acesso em: 20 dez. 2024.

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