O texto foi escrito há algumas semanas. Deveria ter publicado, como prenúncio. Em todo caso, o realismo político acabou por confirmar minha análise, o que penso e pensava. Então, está ótimo para hoje também (veritá efetualle). No Manifesto do Partido Comunista, de 1848, Karl Marx usou uma chave-mestra para entrar na modernidade. Diz assim: “todo o sagrado será profanado”. Sagradas eram as tradições, as religiões, as escrituras da sociabilidade pré-capitalista, e que, em seguida, foram profanadas pelo capital.
O Mito do Fausto, recontado por dezenas de autores em épocas distintas – até num conto de Machado de Assis –, ilustra bem o sentido. Aliás, o Fausto (não só o de Goethe) e o Manifesto são chaves de ingresso na modernidade. Como chave para ver nosso mundo, faria somente um ajuste: “todo mito se esfacela na dura realidade”. Inclusive o Mito do Fausto, da acumulação primitiva, que se arruinou na crise 1929. Em 2018, debulhamos o Mito da Cordialidade. Em 2019, a miséria social está cobrando os eleitores.
A realidade em que construímos uma mitologia política pré-moderna exigirá algumas linhas. Talvez sejam mais retóricas do que poderia requerer uma sociologia demonstrativa; porém, esta retórica deve falar mais claramente, diretamente, do que números sociais ou imaginários mitológicos. Em primeiro lugar, destruímos a modernidade, alegando-se defeitos de origem – como se a construção social fosse algo único e imutável –, para afirmar a necessidade de se construir outro modelo.
Assim, afronta-se a Constituição, a civilidade, o mínimo pacto de convivência, qualquer noção de regularidade, racionalidade e de legalidade, como se fosse uma forte evidência da democracia. Na prática, destruímos a democracia sob o argumento de querer defendê-la. Destruímos a Constituição para depois provar que não prestava, advogamos uma volta aos costumes e à “ciência” do século XVIII, para defender nossa entrada na chamada pós-modernidade. Se a ciência (sólida) não traz respostas, voltemos aos mitos.
E vendemos isto ao mundo como se fora a maior contribuição brasileira à Humanidade. Pois, se chegamos (regredimos) ao ponto de anular preceitos e princípios consagrados do Direito Ocidental – como a ampla defesa, a imposição de um direito ético – foi com o apelido de modernidade. Para colocar o país nos trilhos dessa modernidade, talvez surja algum cinismo, dirão que é necessário dar um passo atrás: da ciência ao clemente Deus, da realidade ao mito, da Constituição ao conchavo tornado legal.
Neste caso, esquecesse que um passo atrás só pode ir para traz mesmo, ou seja, para mais longe de onde gostaríamos e deveríamos estar. É fácil constatar que não se vai à frente, andando para trás. O cínico ainda poderá dizer que antes andávamos para os lados, em círculos. Por um lapso de retórica, digamos que o cínico tenha razão, que só andávamos para os lados. Pois bem, ainda que assim o fosse, nesse andar para os lados, não chegávamos nem perto de descartar o óbvio, a realidade prosaica, a constatação empírica e científica dos fatos, e o bom senso.
Isto é, se por acaso andávamos para os lados, andamos sim para o lado de dentro (em profundidade) da democratização dos serviços e das políticas públicas, andamos para dentro das garantias constitucionais democráticas, andamos para dentro da inclusão social, de acordo com as forças centrípetas, de atração para dentro do espaço público.
Até que, um dia, nos colocaram a andar para o lado de fora do globalismo, da cultura política moderna, para fora do direito e do “fazer-se política” com decência, enfim, para fora do constitucionalismo democrático e da cultura ocidental. No popular, jogamos o bebê com a água do banho. Foi nesse andar de lado, mas para fora, isto é, sob a ação da força centrífuga, que nos legaram forças autoritárias, rançosas e fascistas. E aqui o cínico não acompanha, exatamente porque é onde queria nos colocar para esconder suas lástimas, perversidades e perversões (psicológicas inclusive). Em uma fórmula, quando andamos de lado – para fora – encontramos a tangente da democracia. E tangenciamos rumo ao fascismo.
Numa fórmula matemática equivale a aplicar Einstein (E=MC2) à lógica financista do capital predatório (DMD’) e o resultado é o capitalismo mais selvagem do mundo. Relativizamos direitos e explodimos exponencialmente a crescente da taxa de mais-valia. Brumadinho/MG é um exemplo concreto (e líquido e certo). Foi mais ou menos assim que construímos esse “outro” modelo que tantos milhões de nacionais apoiaram. Entretanto, é preciso dizer que este “novo” modelo, que anda em círculos tangenciais até que caia para trás, foi batizado nos anos 70 de Capitalismo Esquizofrênico (em alusão real ao distúrbio mental) e de cesarismo, nos anos 30, e de fascismo após 1919.
Então, o que tem de novo?
De novo surgiu o tamanho da ignorância popular e sistêmica, e que aqui, finalizando, designamos de analfabetismo disfuncional, porque é carregado de disfunções, atavismos, ignorâncias e incompetências absurdas e improdutivas à vida social e ao próprio capital. Afinal, na lição do ensino médio, o escravismo é improdutivo – porque não gera renda e consumo.
Enfim, não demos um passo para trás, demos um salto mortal. E tudo isto é a argamassa de nossa forma de governo “atualizada” e determinada como IDIOCRACIA. O que seria somado a outra expressão que já se difundiu: “O símbolo do país não é um tucano, mas sim um ornitorrinco de dois bicos”.