JUDICIÁRIO CORPORATIVISTA
No Brasil, a forma como alguns magistrados vieram a receber auxílio-moradia dilata a percepção de injustiça social e atinge a imagem de lisura e moralidade do Poder Judiciário.
A título de comparação, os servidores públicos amparados pelo artigo 60-B, da Lei nº 8.112/1990, têm direito ao auxílio-moradia caso atendam determinados requisitos. Entre estes, três chamam atenção:
- O servidor ou seu cônjuge ou companheiro não seja ou tenha sido proprietário, promitente comprador, cessionário ou promitente cessionário de imóvel no Município aonde for exercer o cargo, incluída a hipótese de lote edificado sem averbação de construção, nos doze meses que antecederem a sua nomeação;
- nenhuma outra pessoa que resida com o servidor receba auxílio-moradia; e
- o deslocamento não tenha sido por força de alteração de lotação ou nomeação para cargo efetivo.
Como se nota, se o servidor possuir residência na localidade de trabalho, não fará jus ao direito. Mas no caso de ter direito, deve prestar declaração, sob as penas da lei, quanto ao cumprimento dos requisitos. Do contrário, além de devolver os valores recebidos, o servidor sujeitar-se-á a sanções civis, penais e administrativas decorrentes da falta.
No que tange a magistrados, antes algumas considerações. O valor do auxílio-moradia para os 18 mil magistrados brasileiros é de R$ 4.377,73 mensais, enquanto a renda média do trabalhador brasileiro gravita em torno de R$ 2.100,00.
O subsídio dos juízes é fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI, da Constituição Federal (CF):
X - a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices;
XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsidio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos.
Com efeito, as únicas exceções ao pagamento em “parcela única” seriam “parcelas de caráter indenizatório previstas em lei” (art. 37, §11, da CF). Parcelas indenizatórias objetivam recuperar gastos que o agente público teve em função do trabalho. Nessa direção, o auxílio-alimentação, as diárias, quando se é obrigado a viajar para trabalhar em caráter eventual ou transitório, ou o auxílio-moradia, nas hipóteses legais, que devem caracterizar compensação para gastos com moradia resultantes do exercício da função.
A Lei Complementar n.º 35, de 14 de março de 1979, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, apresenta em seu artigo 65, inciso II, que, além dos vencimentos, poderá ser outorgada aos magistrados, entre outras vantagens, ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à sua disposição. Mas não é difícil entender que esse direito é para quem realmente precisa. Juízes, contudo, retiveram o valor do auxílio-moradia com outro propósito. O ex-Juiz Sérgio Moro, quando ainda exercia a profissão de magistrado, defendeu o auxílio-moradia como forma de compensar a falta de reajuste salarial aos juízes federais:
O auxílio-moradia é pago indistintamente a todos os magistrados e, embora discutível, compensa a falta de reajuste dos vencimentos desde 1º de janeiro de 2015 e que, pela lei, deveriam ser anualmente reajustados. (CARVALHO, 2018)
Verifica-se, dessa forma, o claro desvio de finalidade no modo de recebimento do benefício. Note-se que, o expediente imoral denigre a reputação do Poder Judiciário.
Esta ação ilegal foi coroada em setembro de 2014. Todos os juízes federais passaram a ter direito ao auxílio moradia, sendo o benefício regulado por meio de liminar expedida pelo ministro Luiz Fux, do STF, por entender que os juízes federais tinham direito ao benefício, devido o caráter indenizatório, compatível com o regime do subsídio, previsto pela Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN), de 1979, excluindo apenas aqueles que tivessem residência oficial. Fux foi o responsável por aceitar o pedido de extensão e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), então presidido por Ricardo Lewandowski, publicou a Resolução nº 199/2014, que regulamentou a decisão.
Note-se que, originalmente, cada tribunal de justiça decidia acerca da concessão do benefício.
Em 2018, após acordo entre as cúpulas dos poderes Executivo e Judiciário, uma contrapartida foi oferecida por este: a concessão generalizada há quatro anos, estendida de maneira indiscriminada, chegaria ao fim, caso houvesse aumento para os ministros do Supremo. A medida foi aceita: reajuste de 16,38% foi sancionado em 26 de novembro de 2018. Isto no momento em que o país passa por dramática situação econômica. Além disso, a contrapartida não é suficiente para conter as despesas oriundas do efeito cascata.
No dia 18 de dezembro de 2018, o Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução nº 274/2018 aprovou o auxílio. O benefício a ser concedido a juízes poderá chegar a até R$ 4.377,73 e só para atuantes fora da comarca de origem, que não tenham casa própria no novo local, nem residência oficial à disposição.
Segundo levantamento preliminar do CNJ, cerca de 1% dos juízes brasileiros poderia receber o benefício, ou seja, cerca de 180 juízes - mas nem todos no valor máximo permitido.
Fato é que o pagamento do auxílio-moradia pelo Estado visou desde sempre solucionar uma necessidade legítima, mas acabou se transformando em privilégio de classe.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Poder Judiciário possui natureza singular: desata os nós dos conflitos, diante do caso concreto, utilizando-se das leis como ferramenta.
É garantidor de coesão social, na medida em que direciona a solução das contendas de um plano individual e desordenado para o plano impessoal das instituições jurídicas, tornando equânimes as pautas dos descontentes.
A natureza de que dispõe por força constitucional é amparada por uma série de garantias disponibilizadas aos magistrados, como visto anteriormente. Contudo, nem sempre isto impede que desordens ocorram em seu seio. Infelizmente, uma minoria ainda macula a respeitabilidade deste Poder, mas não a ponto de colocá-lo a prova, pois a maioria da sociedade confia nele.
Esta confiança significa que mesmo havendo problemas, todas as organizações judiciárias que compõem o Poder Judiciário podem avançar rumo à melhoria contínua. Para que isto ocorra, é fundamental ter como foco a satisfação do ser humano, o verdadeiro cliente. Não se pode olvidar, porém, que é peça chave para este ponto o desenvolvimento e emponderamento (empowerment) dos servidores, a não aceitação de erros, a constância de propósitos, a garantia de qualidade e a gerência de todas as fases dos processos.
Não fosse o descontentamento, a crítica construtiva e a confiança no potencial humano, não existiriam sistemas como o Processo Judicial eletrônico (PJe), cujo primor possibilita a prática dos atos processuais, assim como o acompanhamento de processos, independentemente deles tramitarem em qualquer das instâncias do Poder Judiciário e o sistema de gestão de processos e documentos eletrônicos, impulsionador da eficiência administrativa: Sistema Eletrônico de Informações (SEI), que praticamente suplanta o paradigma do papel como suporte físico para documentos institucionais e favorece o compartilhamento de dados em tempo real.
A crítica às disfunções é primordial. Colocar sobre elas a luz do acerto permite aclarar os meandros de situações danosas que almejam sabotar a sociedade, real demandante. O excesso de processos, a falta de servidores, a demora das soluções, o acesso falho às instancias por parte do cidadão, decisões desencontradas, entre outros, merecem observação constante, pois o que se busca é disseminar a consciência de qualidade, ou seja, a excelência na prestação jurisdicional.
Ademais, a eliminação dos altos salários, muitas vezes inaceitavelmente acima do teto constitucional e a aposentadoria por salário integral como pena máxima para a punição de juízes que cometem crimes no exercício do cargo não podem ser deixados de lado.
O corporativismo, sistema que beneficia elites e grupos organizados, de forma injusta, que desestabiliza decisivamente as estruturas vitais de uma sociedade, em todos os seus aspectos, na medida em que somente uma parcela lucra em detrimento do todo, também, merece plena atenção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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