Instaurado um Inquérito Policial Militar (IPM), ou lavrado um Auto de Prisão em Flagrante (APF), após a ocorrência de um crime militar, não raro, passa ao largo da percepção da Polícia Judiciária Militar (PJM) a qualificação doutrinária ou legal do delito cometido.
Sucede que a ausência de uma análise prévia pela PJM da qualificação do crime praticado pode ensejar, em alguns casos, uma ação ou omissão equivocada, resultando em relaxamento de uma prisão em flagrante ou, em outra vereda, na inobservância de procedimento relevante referente à colheita de prova.
O estudo da qualificação do crime é realizado nas primeiras lições de direito penal; e, sob nossa ótica, os doutrinadores que melhor sistematizaram e detalharam esse tema foram Nelson Hungria e Damásio de Jesus.
Em razão das inúmeras nomenclaturas alusivas às classificações doutrinárias de crimes, ocupar-nos-emos daquelas que, além de repercutirem com maior incidência em alguns importantes temas de direito, são mais suscetíveis de acontecerem por ocasião das atividades da PJM.
Nesse sentido, é importante assinalar as principais intercorrências passíveis de sobrevir, durante as investigações, em virtude da não compreensão e observância da qualificação doutrinária do crime em institutos jurídicos, como a prisão em flagrante, a coautoria, a prescrição, a legítima defesa e a prova processual penal militar.
No que diz respeito à lavratura do APF, não se pode olvidar que o estado de flagrância é caracterizado em virtude do momento da prática da conduta delituosa. Assim, o agente estará em flagrante delito quando: estiver cometendo o delito; acabar de cometê-lo; for perseguido logo após o fato delituoso em situação que faça acreditar ser ele o seu autor; for encontrado, logo depois, com instrumentos, objetos ou materiais que façam presumir a sua participação no fato delituoso.
Após estipular as hipóteses de flagrante delito, o legislador acrescentou que, nas infrações permanentes, considera-se o agente em flagrante enquanto não cessar a permanência. Assim, contemplou a figura do crime permanente, o qual se caracteriza quando a conduta criminosa se prolonga no tempo de acordo com a vontade do infrator, ou seja, este estará sempre cometendo o delito (primeira hipótese do art. 244, a, do CPPM). É o caso do agente que mantém droga ilícita em sua posse ou do sujeito que, no crime de receptação, oculta o material furtado pelo tempo que lhe convém.
Enquanto a conduta no crime permanente se protrai no tempo, a ação delituosa no crime instantâneo se esgota no instante em que esta é praticada, tal como ocorre na grande maioria dos crimes v.g., homicídio, lesão corporal, furto, roubo e outros.
A questão nodal, e que nos parece não ser bem compreendida pela PJM, ocorre em relação à diferenciação existente entre o crime instantâneo e o crime permanente. O delito que suscita mais equívoco neste aspecto é o crime de abandono de posto, o qual quase sempre é interpretado como sendo um crime permanente. Assim sendo, o militar que se afasta, sem autorização superior, do seu posto ou lugar de serviço é invariavelmente preso em flagrante quando se apresenta em sua OM, depois de longo lapso temporal decorrido, a partir do momento em que deixou desguarnecido seu posto ou local de serviço.
Vale sublinhar que o crime em tela é instantâneo e se perfaz no exato momento do abandono do posto. Dessa forma, a prisão em flagrante só se legitima nesse delito se ocorrer dentro das conjecturas demarcadas pelo art. 244. do Código de Processo Penal Militar. Fora das mencionadas hipóteses, fica afastada a flagrância do crime, tornando ilegal a prisão em flagrante. Nesses casos, um IPM deve ser instaurado.
Ressalte-se que o efeito temporário ou o efeito permanente decorrente de uma conduta criminosa não transmuda um crime instantâneo em crime permanente. De fato, no caso do abandono de posto o local fica temporariamente desguarnecido, até que a administração militar proceda à recomposição do posto de serviço por outro militar, após ciência do ocorrido. O mesmo raciocínio se opera em relação ao crime de homicídio que, embora seja um crime instantâneo, possui um efeito permanente (morte).
Note-se que o crime permanente também tem relevância na prescrição e na legítima defesa. No primeiro instituto, é importante lembrar que a contagem inicial para a aludida causa de extinção da punibilidade tem início no dia em que cessa a conduta delituosa do agente infrator. No que se refere à excludente de crime em menção, aquele que age moderadamente contra alguém que esteja praticando um crime permanente, como o sequestro, estará em legítima defesa, em virtude da agressão injusta contínua à qual fica submetida a vítima.
Outra definição de crime feita pela doutrina que se pode refletir na lavratura do APF envolve o crime de mão própria. Crime de mão própria ou de atuação pessoal é aquele que só pode ser cometido pelo sujeito em pessoa. São exemplos os tipos penais de falso testemunho, deserção e abandono de posto. Como ilustração trago à colação uma situação ocorrida em uma OM no Rio de Janeiro em que, quase de forma simultânea, houve o abandono de posto por oito militares escalados em serviço de segurança, por motivos diversos. Na ocasião, houve a lavratura de um único APF, o qual resultou na prisão dos oito militares infratores1.
O equívoco cometido no procedimento acima referido deveu-se ao fato de não ter sido observado que o crime de abandono de posto, ademais de ser um crime instantâneo, é um crime de mão própria, não admitindo, portanto, coautoria. Nesses casos, o correto seria a lavratura de um APF para cada militar que se ausentou, sem licença, do seu local ou posto de serviço, desde que presentes as condições caracterizadoras do flagrante. Do contrário, um IPM deveria ser instaurado para cada infração penal militar cometida.
Ainda com reverberação no APF, temos, quanto ao resultado, as seguintes subdivisões de crime: o delito de mera conduta, cuja ação não apresenta nenhum resultado naturalístico; o delito formal, cuja consumação ocorre sem a produção do resultado, embora seja este previsto no tipo penal; e, por fim, o crime material, delito de ação e resultado, cuja consumação só se opera com a produção do evento.
Aqui, mais uma vez, a dificuldade reside em diferenciar o crime formal do crime material. Tomemos como exemplo o delito de concussão, o qual consiste em o agente público exigir vantagem indevida, em razão da sua função. Esse delito é formal e se consuma com o ato da exigência injusta.
Desse modo, se um militar, em razão de sua função, exigir vantagem indevida a outro militar, estipulando o prazo de 48 horas para entrega do dito proveito ilegal, o flagrante lavrado no dia demarcado para o recebimento será ilegal, pois o crime se consumou no momento em que houve a exigência ilegal e não na ocasião da entrega do bem exigido que, no caso em comento, ocorreu fora das hipóteses de tempo elencadas no já mencionado art. 244. do CPPM.
Na seara das provas, o conhecimento do conceito doutrinário de alguns crimes constitui-se em fator preponderante para a investigação e para a instrução criminal. Nessas circunstâncias, vale destacar o crime de perigo, uma vez que, em certa medida, apresenta incidência durante os exercícios e treinamentos militares.
A característica marcante dos crimes de perigo é a não exigência da efetiva produção de um dano e, assim sendo, se consumam tão só com a possibilidade de dano ao bem jurídico protegido. Dividem-se em perigo abstrato e perigo concreto. No primeiro, o perigo ocorre no momento da conduta típica e é presumido pela lei. Cuida-se de presunção absoluta, a qual independe de prova. Em outro diapasão, contudo, figura o crime de perigo concreto. Neste, torna-se imprescindível a investigação e a comprovação, em regra, pela prova pericial, de que o perigo, resultante do comportamento delituoso praticado, trouxe efetivo perigo de dano ou lesão a determinado bem jurídico.
Para melhor compreensão, vale citar dois episódios que tramitaram na Justiça Militar da União do Rio de Janeiro e que retrataram o crime de perigo concreto.
No primeiro fato, houve uma denúncia pelo Ministério Público na qual a narrativa apontou a prática de maus-tratos por parte de um comandante de OM contra subordinados durante acampamento militar2. O tipo penal de maus-tratos possui a seguinte redação no Código Penal Militar:
Art. 213. Expor a perigo a vida ou saúde, em lugar sujeito à administração militar ou no exercício de função militar, de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para o fim de educação, instrução, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalhos excessivos ou inadequados, quer abusando de meios de correção ou disciplina:
Cuida-se de crime de perigo concreto e assim sendo afigura-se imprescindível a comprovação de que a conduta praticada pelo autor do fato, em tese, delituoso, expôs a perigo militar sob sua autoridade em instrução por ocasião de instrução militar.
Não foi, contudo, no caso vertente, realizada perícia, por ocasião do IPM, a fim de que restasse demonstrado o perigo resultante da irregular conduta praticada pelo oficial comandante de OM. Tal omissão redundou inevitavelmente na absolvição do réu, uma vez que um crime de perigo concreto só se perfaz com a demonstração do perigo.
O segundo episódio versou sobre um treinamento militar com utilização de fumígeno, durante a transposição de militares pelo interior de um túnel de gás, sem a devida utilização dos equipamentos de segurança3. O fato culminou com a morte de um aluno militar. A conduta praticada tipificou o delito do art. 270, parágrafo único, do CPM, consistente na exposição a perigo de vida com a utilização de gás tóxico ou asfixiante. Trata-se, de igual forma, de crime de perigo comum e concreto. Neste caso, todavia, perícia levada a efeito no transcorrer do IPM demonstrou que as condutas dos instrutores, os quais ignoraram as normas de segurança previstas, colocaram em perigo a vida e a saúde dos instruendos.
Outro fator que merece observação para o êxito da apuração criminal diz respeito à ocorrência de diversos crimes cujas evidências recaem sobre o mesmo autor. Nessas hipóteses faz-se necessário perscrutar se os crimes praticados são ou não conexos, a fim de concentrar as investigações, mediante a instauração de um só IPM, no caso de conexidade entre os crimes ou em inquéritos policiais militares diversos, se os crimes forem independentes.
Não se constata, contudo, a referida prática pela PJM. É comum a instauração de um único IPM para apurar vários fatos criminosos sem liames entre si, ocorridos em curto lapso temporal, cujos indícios apontam para um só autor. Tal proceder, além de dificultar as investigações pelo encarregado de inquérito, por abarcar diversos episódios autônomos, inviabiliza a formulação de uma denúncia pelo Ministério Público Militar.
Afinal, o que são crimes conexos? São aqueles crimes que apresentam nexo entre si, como ocorrem nos seguintes exemplos: o agente pratica uma infração para ocultar outro delito; ou quando o sujeito, após furto cometido, incendeia uma casa para apagar vestígio; ou, ainda, quando o agente, depois de um roubo, mata a única testemunha para ficar impune. Assim, nos casos em que haja conexão entre ações, em tese, criminosas, a apuração deve ser realizada em um só IPM.
Vale observar ademais que a apuração de vários crimes não conexos em um único IPM, costumeiramente, implica uma balbúrdia processual, com grandes chances de ocorrer prescrição do crime de menor gravidade, especialmente em razão da demora no cumprimento das variadas diligências a serem produzidas. Nessas hipóteses é conveniente que os autos retornem à origem, mediante promoção do MPM, a fim de que cada fato-crime seja investigado por IPM próprio.
Por fim, é importante ressaltar que as questões supracitadas não se confundem com o crime continuado, o qual, consoante definição legal (art. 80. do CPM), ocorre quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie (dois ou mais roubos ou dois ou mais furtos) que, pelas condições de tempo, lugar ou maneira de execução, devem ser considerados como continuação do primeiro. Pontue-se, contudo, que o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que a regra para o reconhecimento do crime continuado não é aplicada quando o tempo decorrido entre os crimes praticados exceder o prazo de 30 dias4.
Desse modo, podemos, em linhas finais, afirmar, notadamente com base nos casos concretos apresentados, que é de suma importância a Polícia Judiciária Militar conhecer as conceituações doutrinárias e legais dos crimes, uma vez que, em algumas situações, desdobramentos, por possíveis equívocos cometidos, implicarão a liberdade do preso em flagrante ou até mesmo a sua absolvição.
Referências
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Editora Forense, 4ª edição, 1958.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Parte Geral. 35.ed., São Paulo: Saraiva, 2014
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 1002, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. Código de Processo Penal Militar. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/Decreto-Lei/Del1002.htm>. Acesso em: 13 nov. 2018.
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 1001, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. Código Penal Militar. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1001Compilado.htm>. Acesso em: 13 nov. 2018.
Notas
1 APF 336-79.2017.7.01.0101
2 Ação Penal Militar 102-92.2013.7.01.0101
3 Ação Penal Militar 198-20.2014.7.01.0101
4 HC 73.219/SP, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 26/04/1996, e HC 69.896, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ de 02/04/1993.