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O estudo da ditadura civil-militar pós-64 na história do Direito Brasileiro

Agenda 12/02/2019 às 18:15

Este trabalho reflete sobre o binômio civil-militar presente na ditadura pós-64 no Brasil e tem como objetivo desvendar os caminhos fundamentais do estudo da História no Direito, a aproximando das técnicas dos historiadores.

1. INTRODUÇÃO

O estudo da história do direito há muito se cerca de um formalismo ritualístico quase mítico. Os juristas aprendem a História dos institutos jurídicos nas introduções dos manuais e escrevem esta mesma História nos próximos manuais. Assim, o desenvolver evolutivo das normas jurídicas se apresenta linear, conciso e – como planejado – completamente instrumentalizado, servindo de apoio na justificativa das normas vigentes através da tradição, as permeando com a ideia de um refinamento do conhecimento. Este trabalho buscará romper com esta linearidade no estudo da História do Direito para conferir maior rigor teórico e amparo analítico ao jurista que empreende o estudo da História como forma de compreender o sistema vigente, e não somente justifica-lo.

2. A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA HISTÓRIA PARA O JURISTA

Há um esforço em moldar o passado. Cabe aqui tratar desta dificuldade própria da História, mas que atinge notória caricatura entre os historiadores do Direito. Tal é a instrumentalidade com a qual os operadores do Direito olham para a História que esta se encontra somente em caráter “introdutório” nos textos jurídicos. Não por necessidade de contextualizar determinado fato, norma ou instituição jurídica para seu estudo, mas para justificar fato, norma ou instituição através de virtual evolução histórica linear e contínua. A História do Direito é apresentada como um conjunto de fatos encadeados que, inevitavelmente, através de um refinamento teórico e evolução do pensamento, chegaram ao ordenamento presente, perfeitamente justificado pelos precedentes históricos. Muitas destas cadeias de fatos pinçados que os juristas utilizam para explicar a validade ou justiça natural de seus objetos de estudo são anacrônicas, fundadas em analogias nada comparáveis e pouco contextualizadas cujo nexo causal não poderia de forma alguma intuir um “refinamento teórico”. O próprio desenvolvimento das sociedades é precariamente analisado, de novo pressupondo um esteio histórico evolutivo, linear e contínuo que justifica a forma vigente.

Tendo estes problemas em mente, é alarmante a necessidade de permear o estudo da História do Direito com os problemas, reflexões e soluções desenvolvidas dentro do estudo da História como um todo. Quais são os critérios que tornam um fato digno de ser registrado na História? O importante seria o desvendar do fato ou a análise das conjunturas e estruturas? O que é e para que serve a História?

“É possível uma outra opção teórica. Pode-se proceder a uma análise interessada na inserção do direito na sociedade e na tarefa de desvelar o seu sentido na lógica da mudança permanente onde hoje vivemos, fazendo da disciplina um instrumento de crítica e desmascaramento da juridicidade vigente, ao invés de ser dela um parceiro e cúmplice, muitas vezes de modo inocentemente ingênuo” (FONSECA, 2000).

De fato, é esta crítica à instrumentalização da História que será desenvolvida através deste trabalho. São três os principais pressupostos desta atuação historiográfica falha: o anacronismo, a linearidade e a continuidade.

Em suas pesquisas, a parte histórica sempre se apresenta como um conjunto de precedentes lineares que desembocaram, através da tradição, no Direito atual. Não é assim que a história do conhecimento se dá. O desenvolvimento da epistemologia, descontínuo e pulverizado, comporta diferentes formas de pensar na mesma época, diferentes subjetividades.

Na lição de Fonseca (2000), colocaremos em pauta as reflexões de Foucault sobre o binômio poder razão, na epistemologia como um todo e, no estudo histórico atual, “esta tensão entre o empírico e o transcendental”. Estamos no que Foucault chama de “era da história”. “É daí que surge o sujeito, a invenção recente qual a arqueologia do nosso pensamento é capaz de datar inclusive, seu fim próximo”. O sujeito é um ser delimitável e identificável, isto é posto em evidência quando são observados saberes que “prescindem do homem, como a etnologia, a linguística, a psicanálise, coisas que não interrogam o próprio homem, mas a região que torna possível um saber sobre o homem”. Nietzsche pensou na "morte de Deus". Esta seria “a morte do conforto metafísico, a morte da verdade como transparência plena e desvelamento do espírito puro”. Foucault pensa a "morte do sujeito". Esta é a “morte de todo recurso transcendental e supraempírico de busca da ‘verdade’ sobre o homem”. E, para Foucault, essas transformações “não acontecem somente na teoria, elas só existem em relação ao poder”. Na verdade, ele vai além, determinando que "a verdade não existe fora do poder ou sem o poder. (...) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder". Nosso estudo busca conhecer o objeto em sua totalidade, mas somente conhece “uma versão dele determinada e determinável no tempo”.

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“Suas origens perpassam discursos e formas de poder ligadas a estes discursos, e não - como é argumentado - a uma busca branda, inocente, progressiva e isenta busca da "verdade”. Essa homogeneidade do passado que é entendido através dos modos de conhecer do presente macula a nossa compreensão das sociedades do passado, utilizando a história para legitimar e justificar o saber vigente, e, portanto, o poder vigente também. Percebemos o quão errado é transpor para outras épocas os nossos modos de saber e relações de poder do presente. E também, estabelecer uma continuidade e uma linearidade das instituições e conhecimentos, é arbitrário, e deve passar por mediações e filtros” (FONSECA, 2000).

3. O JURISTA NA DITADURA

Perpassando agora pelo estudo de Airton Cerqueira Leite Seelaender (2009), será analisada a tensão fundamental entre o conhecimento produzido dentro e após regimes antidemocráticos e as estruturas destes regimes.

Miguel Reale, em suas memórias, compartilha a curiosa frase: “Em minha vida tenho tido o hábito salutar de não ficar remoendo o passado”. Esta frase, diz Seelaender, “bem que poderia servir de divisa para algumas faculdades de direito no Brasil. Nunca poderia, porém, servir de orientação para quem pretende analisar a história ou compreender melhor algumas das linhas doutrinárias ainda hoje relevantes, no campo do direito”.

A contradição é evidente. Durante seu trabalho, Juristas e ditaduras: uma leitura brasileira, Seelaender argumenta pela necessária crítica às doutrinas oriundas de defensores de ditaduras, e Miguel Reale, jurista cuja mente está por trás do nosso Código Civil de 2002, é um de seus principais alvos. É impressionante a escolha por parte do autor de expressões como “Schreibtischtäter” (palavra usada para se referir aos burocratas do regime nazista; “assassino de escritório”) e “Persilschein” (como chamavam os “certificados de bons precedentes” concedidos na Alemanha ocupada pelos Aliados; referência a uma propaganda de sabão em pó que “lava branco como a neve”), conceitos que nasceram em crítica similar, mas que tratava dos defensores do regime nazista.

A comparação é justamente por ter seu trabalho iniciado no Brasil uma discussão já em desenvolvimento na Alemanha, na França e na Itália, onde importantes juristas cujas doutrinas e teorias ainda carregam relevância no estudo do Direito foram aliados, defensores ou mesmo membros entusiastas de regimes autoritários.

“Um dos mais destacados teóricos do Pós-Guerra, Maurice Duverger havia escrito, no início de sua carreira, comentários à "situação dos funcionários depois da Revolução de 1940". Vendo na ascensão de Pétain após a derrota francesa uma "revolução" autoritária e nacional, Duverger descrevera como algo normal a vedação do acesso de judeus e cidadãos naturalizados aos cargos públicos. Tentando décadas depois se justificar do ocorrido, o pensador francês invocou um acórdão de 1968, que declarava seu texto "um estudo puramente jurídico, técnico e crítico da legislação racial então em vigor”. Restou esclarecer, no entanto, se essa análise supostamente "neutra da legislação racial" - uma análise sem repúdio - não constituiria, ela mesma, uma forma de aceitação das novas normas. Se a atitude voluntária do autor, redigindo e publicando tal artigo, não contribuiria, por si só, para a legitimação dessas normas como objeto normal do trabalho do jurista. Mesmo quem achasse possível alguém abster-se totalmente de juízos de valor no exame de temas polêmicos teria de reconhecer que os professores de direito realizam opções de certa fornia "comprometidas", quando elegem seus temas e quando definem as ocasiões para a divulgação de seu pensamento. A preparação e a publicação de um texto frio e técnico sobre normas antissemitas são atitudes que indicam, senão entusiasmo, pelo menos conformismo com o direito vigente em uma ditadura racista. E são atitudes que tendem a indicar certo empenho individual na legitimação de tal regime- empenho muito superior, aliás, ao exteriormente expresso nos mecânicos "juramentos de fidelidade" impostos pelas ditaduras ao professorado, sob risco de perda de cargo ou outras sanções. A bem da verdade, nada obrigava Carl Schmitt a escrever obras como O Führer protege o direito, justificando um massacre determinado por Hitler. E teriam Panunzio e Costamagna se arruinado, se houvessem imitado a autocontenção de Mortati no tratar da questão judaica?” (SEELAENDER, 2009).

Correta a preocupação do autor em questionar uma suposta atuação neutra de tais teóricos ante aos regimes sob os quais se encontravam. É notória aqui a manifestação do binômio saber-poder. As relações de poder dentro dos regimes autoritários, tais como a Alemanha nazista, a Itália fascista e a ditadura civil-militar pós-64, conferiam prestígio àqueles teóricos que as favorecessem. Há uma prontidão no meio acadêmico brasileiro para questionar os diversos inimigos etéreos que assombram a construção teórica: o neoliberalismo, a globalização; mas pouco se fala em combater os resquícios da ditadura dentro dos quadros docentes.

“A participação de muitos juristas, ainda que passageira, em regimes ou movimentos políticos de inspiração autoritária, contribuiu para a ocorrência de transformações no campo doutrinário, com a adoção de novos temas e teorias. Sob a influência direta ou indireta de tal participação, conceitos foram criados, recriados e reformulados, não raro como arma ideológica na luta contra o pensamento jurídico liberal. [...] Ao menos na área jurídica, não foram isolados os casos de aproveitamento, pelo regime pós-64, de quadros com passado integralista. O novo regime podia aqui, contudo, selecionar seus colaboradores dentro de um universo muito mais amplo do que a antiga AIB. [...] Não é de se crer, na esteira de Dulles, que "era inevitável (...) que os bacharéis liberais anti-Vargas", confrontados com os triunfos eleitorais do populismo, "fizessem alianças"', inclusive com o golpismo militar. Opções políticas foram feitas, tanto na adesão de juristas udenistas à violação da Constituição de 1946 quanto no perpetuar de sua colaboração com o regime, mesmo após o AI-5. Datam de bem antes de 1964, aliás, os apelos dos jurisconsultos udenistas para que as Forças Armadas pusessem fim à "criminosa tolerância do governo" em face da mobilização comunista. Isso se vê claramente nas suas palestras na Escola Superior de Guerra - instituição onde seguiriam ocorrendo, após 1964, interessantes conferências de juristas” (SEELAENDER, 2009).

A ponto de conclusão, Seelaender nos propõe “não, propriamente, julgar condutas pessoais, mas sim de tentar compreender a função do direito, de seus teóricos e dos centros de ensino nesses períodos históricos específicos”. Trata-se de esforço de crítica à doutrina subordinada ao pensamento autoritário.

“Nada impede, porém, que o pesquisador reconheça e indique quais modelos e ideias dentre os ainda hoje ensinados se mostraram adaptáveis à defesa das ditaduras e das violações de direitos humanos - e quais destes modelos e ideias surgiram justamente com esta finalidade, sob o signo do autoritarismo” (SEELAENDER, 2009).

O esforço de compreensão da relação entre os juristas e os regimes autoritários remete a um estudo mais profundo do binômio civil-militar que permeia tais organizações sociais.

4. O BINÔMIO CIVIL-MILITAR

O contexto imediatamente pré-64 consistia, no âmbito da sociedade civil, em ampla “luta contra os reformistas-populistas e contra a crescente influência na sociedade brasileira dos partidos e organizações de esquerda, especialmente o Partido Comunista Brasileiro” (PETIT e VELARDE, 2012).

A Guerra Fria estava a pleno vapor, com a disputa ideológica entre capitalistas e socialistas estando especialmente acirrada pela questão da Revolução Cubana. Imediatamente, os reformistas brasileiros passaram a ser tachados, por seus opositores, de comunistas. Isto só viria a se agravar após o golpe de 1964.

Há um motivo para a escolha do termo “ditadura civil-militar”, que é explicado logo de início no trabalho de Petit e Velarde:

“Ainda que seja inegável o protagonismo da cúpula das Forças Armadas, sobre tudo do Exército, no vitorioso golpe de estado iniciado no dia 31 de abril de 1964 e na posterior instauração e consolidação da ditadura civil-militar, a relativa facilidade da vitória dos militares golpistas seria impensável sem o apoio de amplos setores da sociedade civil liderados pelos políticos conservadores, empresários e fazendeiros, entre outros atores e instituições, pela maioria dos membros da hierarquia da Igreja Católica e pelos meios de comunicação de massa” (PETIT e VELARDE, 2012).

No mesmo sentido, Strozake e Pereira comentam este binômio civil-militar no campo brasileiro pós-64:

“Ao demarcarmos o nível de repressão empreendida contra os camponeses e suas organizações, ao afirmarmos que muitos jagunços e pistoleiros a mando dos grandes proprietários de terras que se utilizaram da onda militar para executar as lideranças sindicais e populares, queremos estabelecer uma relação direta entre as mortes causadas pelos militares, torturadores, e os assassinatos a mando do latifúndio. Estiveram entre as principais vítimas da repressão policial-política e dos pistoleiros contratados pelos patrões organizações como o “Grupo dos 11”, as Ligas Camponesas, os trabalhadores de “Trombas e Formoso” (STROZAKE e PEREIRA, 2015).

A repressão generalizada aos setores de esquerda foi responsável pela morte e desaparecimento de diversas lideranças. Em especial, “a luta dos camponeses que se mobilizaram nas Ligas é marcada por diversas mortes encomendadas pelos proprietários de terra” que se opunham à Reforma Agrária.

Esta cooperação entre grupos da sociedade civil e as forças armadas para a realização das políticas ditatoriais é, segundo Petit e Velarde, peça fundamental para a compreensão da época, sendo a denominação de “ditadura militar” incorreta para com a compreensão deste regime.

Seelaender também comenta em tal tópico ao abordar o argumento de Rüthers sobre o extremo positivismo nazista:

“Desde a publicação de A Interpretação Ilimitada de Bernd Rüthers (1968) desmoronou o retrato - tão conveniente para os juízes alemães e para os detratores do positivismo - da experiência jurídica nazista como singelo reflexo de normas impostas "de cima" por um regime truculento. A enorme massa de direito gerada antes de 1933 pela complexa sociedade alemã não podia, é claro, ser substituída automaticamente por normas "nazistas" - fosse lá o que isso quisesse exatamente dizer. Dentro desse quadro, alguns juristas da ditadura priorizaram a rediscussão dos métodos de interpretação, tentando, através desta, inserir rapidamente um "ovo de cuco no sistema jurídico liberal”. Pretendiam facilitar a transposição da moldura das normas preexistentes, não só através de invocações principiológicas genéricas, mas também por meio de um mergulho no institucionalismo**. O fascínio de setores da direita europeia pelo institucionalismo era compreensível. Antes da ascensão dos ditadores, este já permitia fixar - diante de parlamentos eleitos cada vez mais democraticamente e cada vez menos confiáveis para as elites - campos sociais de autonormatização (a Igreja, a família, a empresa), legitimando certa proteção destes últimos contra o direito legislado. Como contraponto à incómoda dinâmica da mudança social, a aparência de estabilidade das instituições tendia a atrair atenções em meio às rupturas da sociedade industrial . Dentro desse quadro, surgia para os próprios juristas a tentação de extrair normas a partir das instituições socialmente existentes - ou seja, de tirar de um "ser" um "dever-ser" (SEELAENDER, 2009).

5. CONCLUSÃO

O estudo da História do Direito não pode ser abandonado às linearidades introdutórias. O estudo do contexto político e social no qual os juristas estavam envolvidos quando elaboraram suas teorias é de extrema importância para sua compreensão e crítica. É necessário romper com a linearidade instrumentalizada que justifica a norma vigente pela tradição. É necessário romper com o anacronismo que mistura os fatos do presente com o passado a ser estudado. A produção teórica do direito está sob constante a tensão das relações de poder às quais se liga.

O binômio civil-militar esteve presente antes, durante e depois da ditadura pós-64, e sua supressão na história prejudica a compreensão do papel da sociedade civil na efetivação e justificação do autoritarismo.

6. BIBLIOGRAFIA

FONSECA, Ricardo Marcelo. A história no direito e a verdade no processo: o argumento de Michel Foucault. Gênesis: Revista de Direito Processual Civil, 2000.

SEELAENDER, Airton Cerqueira. Juristas e ditaduras: uma leitura brasileira. História do Direito em Perspectiva: do Antigo Regime à Modernidade. Curitiba: Juruá Editora, 2009.

STROZAKE, Juvelino. PEREIRA, Paola Masiero. A Ditadura Civil-Militar e os Camponeses. Direito Achado na Rua, Vol. 7: Introdução Crítica À Justiça de Transição na América Latina. 1ª Edição. Brasília: UnB, 2015.

PETIT, Pere; VELARDE, Jaime Cuéllar. O golpe de 1964 e a instauração da ditadura civil-militar no Pará: apoios e resistências. Revista Estudos Históricos, v. 25, n. 49, p. 169-189, 2012.

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