A decisão proferida pelo E. Supremo Tribunal Federal no Conflito de Competência 7.204-MG, DJ 3/8/2005, decidiu contra a mens legislatoris, pois, por ocasião da discussão do Projeto de Emenda Constitucional n. 29/2000, ficou bem claro que o legislador não quis atribuir competência à Justiça do Trabalho para processar e julgar ações de indenização relativas a acidentes do trabalho e doença profissional.
No texto original da PEC foram incluídas as palavras "acidentes do trabalho e doença profissional" no primitivo artigo 115, inciso IV (vide a Proposta de Emenda Constitucional nº 96/92 – Relatora Deputada Zulaiê Cobra Ribeiro - Diário da Câmara dos Deputados – Suplemento – 14/12/99, fls. 00981.
Todavia, dentre outros no mesmo sentido, o Deputado Ricardo Barros ingressou com o Requerimento de Destaque nº 121, ao Presidente da Câmara dos Deputados, pretendendo destaque para votação em separado da expressão "relativas a acidentes do trabalho e doença profissional e" constante do art. 115, inciso IV, (que na redação final tomou o nº 114, inciso VI,), contido no art. 27 do Substitutivo aprovado pela Comissão Especial - Diário da Câmara dos Deputados – 3/2/2000, fls. 06059.
Votados os destaques tais palavras foram excluídas, permanecendo o texto tal como se encontra na EC-45, sem aquelas palavras.
Após a votação a Relatora Deputada Zulaiê Cobra Ribeiro, assim se pronunciou:
Sr. Presidente, fizemos um acordo, este destaque é do PTB; acho que o Deputado Luiz Antonio Fleury vai falar a respeito, para que as ações relativas a acidente de trabalho continuem na Justiça Estadual, onde se encontram.
Assim sendo, meu texto, prevendo que essas ações seriam julgadas na Justiça do Trabalho, cai. Concordo com esta emenda aglutinativa, que é o destaque da bancada. Portanto, o texto cai, para dar vazão a que as ações relativas a acidente de trabalho continuem sendo julgadas na Justiça Estadual.
Não quis
, portanto, o Poder Reformador manter no texto do artigo 114, inciso VI, a afirmação de competir à Justiça do Trabalho "as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho", tal como constava no art. 27 do Substitutivo, até porque não há como se adotar, para efeito de interpretação em conexão com o art. 109, inciso I, da CF, um órgão de jurisdição para julgar uma ação de acidente do trabalho contra o empregador, e outro órgão de jurisdição diverso para julgar ação de acidente de trabalho contra o INSS. Seria um mesmo acidente sendo julgado por órgãos de jurisdição diferentes. O legislador acabou por não fazer essa distinção, e nem o quis fazer, portanto, não cabe ao intérprete fazê-la.O Congresso Nacional enfrentou a matéria e retirou do texto da PEC nº 29/2000 com vontade clara, evidente e insofismável as palavras:
"as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho".
O texto primitivo do Projeto queria com todas as letras que a Justiça do Trabalho tivesse competência para processar e julgar "as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho", mas a redação final, depois das deliberações e do voto em separado permaneceu sem essa expressão.
Portanto, é contrária à vontade do legislador a decisão em Plenário recentemente proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no Conflito de Competência 7204-1, que mudou o entendimento anterior daquela E. Corte em relação ao julgamento do RE 438.639, que havia atribuído competência à Justiça Comum, para as causas de igual natureza a esta.
Foram necessárias ao E. Ministro Ayres Britto, relator daquele processo, data venia, mais de uma dezena de laudas para fundamentar sua posição, quando bastariam algumas poucas palavras para se dizer que não foi isso que o legislador quis dizer com as palavras que usou. Todos os métodos de interpretação do texto inclusive o sistemático levam o intérprete a concluir pela competência da Justiça Comum.
O E. Desembargador Palma Bisson tem sido voto vencido nos recentes acórdãos, mas sua posição é muito forte:
"Sinceramente, fica a impressão que o Supremo não fechou a questão, continuando aberto a pareceres, memoriais e bate-papos para tornar, se o caso, à velha leitura do mesmo plenário que fez a nova."
...
"E se o Supremo ora diz uma coisa, ora diz outra, não diz nada, nada espanca, nada apazigua, nem me vincula, diga-se".
"Destarte, e até que a vinculante à luz não venha, torno a esposar a minha posição, aliás amparada por conhecido de nós todos o parecer de lavra dos Professores Miguel Reale, Miguel Reale Junior e Judith Martins Costa."
"Lembram os autores desse parecer, basicamente, que, da proposta original que resultou na Emenda Constitucional nº 45/2004, foi suprimido o texto que expressamente atribuía competência à Justiça do Trabalho para processar e julgar as ações decorrentes de acidentes de trabalho e doença profissional, "para dar vazão a que as ações relativas a acidente de trabalho continuem sendo julgadas na Justiça Estadual" (palavras da relatora da PEC, Deputada Zulaiê Cobra Ribeiro) e se o texto expresso foi suprimido, não pode ser inferido nem mesmo por analogia, do que remanesceu." (grifado) cf. Apelação c/ revisão nº 864.671-0/3; 757.824-0/6 e 701.180-0/6.
Tem toda razão o E. desembargador.
A respeito dessa mudança no Projeto, o eminente jurista Carlos Maximiliano, ex-Deputado Federal, ex-Ministro da Justiça e ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, nos deixou preciosa lição em sua obra Hermenêutica e Aplicação do Direito, pág. 117, 19ª edição, Forense:
(extraído), nem sequer por analogia, de outras disposições que prevaleceram (remanesceram), salvo quando a supressão se haja verificado apenas por considerarem-no desnecessário ou incluído implicitamente no texto final.""Se um preceito figurava no Projeto primitivo e foi eliminado, não pode ele ser deduzido
Releitura e raciocínio sobre essas palavras são indispensáveis. O que o eminente jurista quis dizer foi que: não pode o intérprete querer encontrar o preceito suprimido, no texto remanescente do projeto que se tornou lei.
Mas é o que está acontecendo atualmente. Do texto do Projeto nº 29/2000, extraíram-se as palavras "ações relativas a acidentes do trabalho e doença profissional", pretendendo-se atribuir a tais ações competência da Justiça do Trabalho, palavras essas que, não obstante extraídas do texto do projeto, se pretende agora colocar por jurisprudência na Constituição Federal. O E. STF tem como função além de interpretar, integrar o Direito. Não foi essa, todavia, uma decisão que interpretou melhor o texto da Carta Magna, mas sim uma decisão que contraria a vontade do legislador de 2000, ocasião em que o texto foi votado. E a vontade do legislador representa a vontade da nação.
Não se diga que apenas a interpretação literal é suficiente neste caso, tantas foram as controvérsias, idas e vindas, permanecendo ainda a incerteza jurídica, pois a decisão que agora atribui competência à Justiça do Trabalho, ao invés de à Justiça Comum, é política e não jurídica, estranha, inédita e absolutamente ainda não convence. A influência política, que não foi suficiente no ano 2000 para transferir para a Justiça do Trabalho as ações acidentárias, está sendo agora suficiente para fazer a Suprema Corte inusitadamente mudar de opinião de um dia para outro.
Os destaques para votação em separado liquidaram com a polêmica levantada na Câmara dos Deputados e Senado. Se fosse mantida a redação da PEC 29/2000 estaríamos diante de uma antinomia entre os dois dispositivos constitucionais, o art. 109, inciso I e o art. 114, inciso VI, pois o primeiro atribui competência ao Juízo Comum e o segundo à Justiça Trabalhista.
A unicidade a que se referiu o E. Ministro Cezar Peluso em seu voto no RE 438.639, deve ser entendido em relação às interpretações sobre os fatos acidentários que seriam apresentados nas decisões do TRT nas ações indenizatórias contra o empregador, em relação às decisões do Tribunal de Justiça nas ações acidentárias contra a Autarquia. O mesmo fato poderia ter interpretações diferentes entre órgãos jurisdicionais de diferentes esferas. Diverso era o raciocínio em se tratando de Tribunais da mesma esfera, no caso Cível, como era em relação aos Tribunais de Justiça e os de Alçada dos Estados mormente quando cabível submeter seus acórdãos a recurso especial perante o Superior Tribunal de Justiça.
A distinção entre si das duas matérias e dos dois órgãos de jurisdição, feita pela pelo art. 109, inciso I,, não pode aceitar interpretação que se insira qualquer uma dessas duas matérias na competência de qualquer um desses dois órgãos de jurisdição, pois as duas matérias e os dois órgãos foram explicitados, distinguidos, destacados. Não se pode inserir uma matéria explicitada no contexto de um órgão explicitado. Seria um erro grave de interpretação lógica.
O artigo 114, inciso VI, deve ser interpretado em confronto com o artigo 109, inciso I. E ao contrário do que se tem afirmado, o art. 109, inciso I, não exclui apenas da competência da Justiça Federal a ação acidentária dirigida contra a autarquia federal. O artigo 109, inciso I, também põe em destaque as ações de duas matérias e as ações de dois órgãos de jurisdição. As duas matérias são: acidente de trabalho e falência, e os dois órgãos de jurisdição são: Justiça Eleitoral e Justiça do Trabalho.
Ora, se o artigo 109, inciso I, fez essa distinção, não é possível querer-se que o artigo 114, inciso VI, desfaça a distinção e reúna uma das matérias destacadas (no caso acidente do trabalho) a um dos órgãos de jurisdição destacados (Justiça do Trabalho).
Não faz sentido, o artigo 109, inciso I, dirigir competência de julgamento, de forma residual, das ações de acidente do trabalho e falência, para a Justiça Comum, e o artigo 114, inciso VI, logo em seguida, transferir acidente de trabalho para a Justiça do Trabalho. Seria evidente contradição, oposição recíproca (antinomia) entre os dois dispositivos.
Se essa fosse a intenção bastaria à Comissão de Reforma excluir do artigo 109, inciso I, as palavras "as de acidente do trabalho".
Porém, se isso fosse feito, o julgamento das ações acidentárias contra o INSS seria também transferido para a Especializada. Mas isso não foi aceito pelo Poder Reformador.
Se não for diferente o que pode acontecer: o E. Tribunal Regional do Trabalho vai apreciar um fato e proferir uma decisão, enquanto o Tribunal de Justiça vai apreciar o mesmo fato e proferir outra decisão em relação à ocorrência ou não desse mesmo fato. Um tribunal pode dizer que o sujeito está incapacitado para o trabalho e o outro tribunal dizer que ele não está incapacitado para o trabalho. Um tribunal pode dizer que existe poluição sonora no ambiente do trabalho e o outro tribunal pode dizer que não existe poluição sonora no ambiente do trabalho.
Assim sendo, a interpretação correta, data maxima venia que se deve dar a esses dispositivos constitucionais é a de que, enquanto o artigo 114, inciso VI se refere de forma genérica a todas as indenizatórias decorrentes da relação de trabalho, o art. 109, inciso I destaca e exclui do inciso VI, do artigo 114, de forma específica as indenizatórias acidentárias movidas tanto em face da autarquia como em face do empregador, atribuindo quanto a estas, pelo método residual, competência da Justiça Comum. Portanto, se falência e acidente de trabalho não são de competência da Justiça Federal, se não são de competência da Justiça Eleitoral e se, por raciocínio lógico, não podem ser de competência da Justiça do Trabalho, só podem ser, por efeito residual, de competência da Justiça Comum.
Tinha razão o E. Ministro Cezar Peluso quando nos debates da votação por ocasião do julgamento da CC. 7204-MG, de 29/6/2005, disse que é melhor então que as ações de acidente de trabalho contra a autarquia federal também sejam transferidas para a Justiça do Trabalho. Pelo menos seria mais lógico. Não obstante o Ministro Peluso votasse no mesmo sentido dos demais, percebia-se claramente seu sentimento de contrariedade.
O v. acórdão que decidiu o Conflito de Competência 7204-1, tanto quanto o RE 438.639, também é o primeiro julgamento do STF naquele sentido sobre a matéria, depois da EC-45. A questão, portanto, é relevante e merece um posicionamento definitivo, que pode se dizer ainda não existe, posicionamento esse jurídico e não político.
O ato de interpretação é um ato de inteligência e nele deve se aplicar também as regras da lógica e do sistema constitucional como um todo, hoje agredido.
O tumulto processual que está se formando e que pode ainda se formar na maioria dos processos em curso sobre o tema é tão grande, que em decisão de 10/8/2005, ainda não publicada, no CC 51.712-SP, do E. Superior Tribunal de Justiça, a Seção julgadora firmou entendimento, por maioria, que somente deverão ser remetidos à Justiça do Trabalho os processos relativos à indenização de danos morais e/ou materiais decorrentes de acidentes de trabalho, que ainda se encontram sem sentença prolatada, seja de mérito ou não, prosseguindo na mesma esfera Cível os processos sentenciados antes da EC nº 45.
Em nossa opinião deve prevalecer a interpretação em favor da mens legis, da mens legislatoris, sistemática e lógica do texto constitucional que determina a competência da Justiça Comum para o processamento e julgamento das ações indenizatórias decorrentes de acidente do trabalho e doença profissional.
Na hipótese inversa, caso assim se decida, e no intuito de estancar o tumulto processual que está se assistindo, prejudicial aos interesses das partes, somente as ações novas propostas depois de firmado entendimento do STF, como votou a Ministra Nancy Andrighi no CC 51.712-SP, e mediante súmula vinculante, é que serão enviadas à Justiça do Trabalho.