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Eutanásia revisitada:

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Agenda 30/04/2019 às 14:40

Tratamento da eutanásia nos projetos do Código Penal ("de lege ferenda")

Alheio à realidade, o nosso legislador manteve a tendência de incriminar a eutanásia.

O Código Penal de 1969, que não chegou a vigorar, manteve a incriminação da eutanásia nos mesmos moldes do art. 121, § 1.º do Código Penal, atualmente vigente, “in verbis”:

Art. 120 – Matar alguém (Homicídio simples). Pena: reclusão, de 6 a 20 anos. § 1.º - Se o agente comete o crime por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena, de um sexto a um terço (redação dada pela Lei 6.016 de 1973).

No PLS 236/2012 o artigo 122 tipifica a eutanásia ativa como crime autônomo, sob a rubrica “eutanásia”:

Art. 122 – Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave. Pena: prisão, de dois a quatro anos. § 1.º - O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreito laços de afeição do agente com a vítima. § 2.º - Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

Pequeno avanço houve em relação ao Código Penal vigente, porque no PLS 236/2012 consagrou-se a impunidade da ortotanásia, conforme já recomenda atualmente o Conselho Federal de Medicina.


Posicionamento CONSTITUCIONAL

A experiência nazista levou os países a condenarem a eutanásia dado o perigo que ela representava para as pessoas, que poderiam ficar facilmente vulneráveis em face de uma política estatal eliminadora de “vidas inúteis”. Sob esse ponto de vista histórico e social não há como censurar a incriminação da eutanásia no pós-guerra (ubi societas, ibi jus). Esse dogma, contudo, se estendeu por várias décadas impregnado de preconceito e tabu sobre o tema (a esse respeito veja a definição de eutanásia de Manzini) o que impediu sua discussão serena perante as legislações e as ciências jurídicas.

Nas últimas décadas, porém, com o avanço da medicina, da bioética e do biodireito, a discussão sobre a eutanásia ganhou novos contornos e projeção internacional, suscitando o interesse da doutrina e do legislador enquanto desafio ético-jurídico, mormente quando pela informação e pela cultura o verdadeiro conceito de eutanásia conectado com a dignidade humana, de matiz constitucional, desprendeu-se definitivamente da pseudo-eutanásia (eutanásia seletiva para fins de eugenia ou de eliminação de vidas carentes de “valor vital”).

O Direito como um fenômeno social não pode ficar encastelado num reino aparte, alheio à realidade (ubi societas, ibi jus).

Melhor que proibir a prática da eutanásia é regulamentá-la. “Eutanásias” de doentes terminais ocorrem a cada minuto nos grandes centros médicos das metrópoles populosas, sem nenhum tipo de controle estatal. Por falta de leitos ou de recursos cabe ao médico a difícil e triste tarefa de escolher qual paciente deve salvar e qual deve morrer, dentro de um juízo de ponderação que interfere uma gama variável de fatores desde científicos, etário, de sexo, possibilidade de convalescimento e até afetivos ou sentimentais com o paciente ou com os seus familiares.

Na clandestinidade as eutanásias caem na cifra negra ou no campo obscuro da criminalidade. E sem nenhum critério legal e sistema de controle estatal elas geram enorme insegurança jurídica tanto para médicos, que podem envolver-se em processos criminais de crime contra a vida, como para pacientes, que podem ter a vida ceifada dentro de uma infinita variável, muitas vezes de natureza puramente subjetiva.

Os argumentos contrários à autêntica eutanásia (morte que se dá àquele que sofre com doença terminal e incurável com sofrimento atrozes) não se sustentam racionalmente à luz do ordenamento constitucional.

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A teoria da argumentação jurídica tem demonstrado que os tribunais é que dizem se tal conduta se subsume no tipo penal ou não. Critérios históricos e sociais em determinados momentos consideram crime determinada conduta e em outros não.

Os casos de atipicidade surgem por critérios de “não-atribuição” através de argumentos técnicos-jurídicos que permitem sustentar que um fato concreto não se enquadra num tipo penal por ausência de relevância jurídico-penal[43]. E não é só. No caso da eutanásia a doutrina nacional posicionou-se em sentido inverso para afirmá-la como modalidade de crime de homicídio (privilegiado), contudo, tratando-se de uma eleição consciente ou inconsciente da sociedade a incriminação da eutanásia autêntica pode ser revista a qualquer tempo por meio de argumentos médicos e técnicos-jurídicos que permitam sustentar que a verdadeira eutanásia não se enquadra no § 1.º do artigo 121 do Código Penal, porque não existe entre nós propriamente o “crime de eutanásia”.

Por outro lado, diante do constitucionalismo, entende-se hoje que a realidade jurídica é um fenômeno complexo, e que o Direito Penal está sujeito a princípios e valorações, que reconhecidos pela Constituição, constituem os pressupostos materiais para a caracterização do crime. Sob o aspecto meramente formal, o crime considerado como fato típico e ilícito ao não considerar as valorações e princípios não diz nada como estão caracterizados os pressupostos materiais para a configuração delitiva, isto é, “quando”, “como” e “debaixo de quais condições prévias” alguém deve responder penalmente e sofrer uma imposição de uma pena.

O princípio nullum crimen, nulla poena sine lege tem uma importância fundamental no Direito Penal moderno. Todavia, desde o seu nascimento parece ter presidido uma influência adversa que o persegue. A doutrina tradicional entendia que o princípio da legalidade funcionava como um potencial redutor de outros princípios não-positivados no ordenamento jurídico. A esse respeito, dizia que as normas dirimentes e as causas de exclusão da culpabilidade são fragmentárias e excepcionais, cujo rol era taxativo na lei, não podendo o intérprete criar novas exceções decorrentes dos princípios não positivados [44].

Pois bem, sob a égide do positivismo jurídico dava-se uma interpretação historicamente inversa ao princípio da legalidade, como potencial redutor (e não como potencial expansivo) para o ingresso dos princípios supralegais (intrassistemáticos) limitadores do poder punitivo estatal, decorrentes do sistema constitucional penal.

Esse entendimento doutrinário reducionista do princípio da legalidade está completamente superado diante do pós-positivismo, isto porque conforme provou Olga Sánchez Martínez, historicamente o princípio da legalidade foi criado para cumprir uma função de garantia, limitadora do jus puniendi, e que atualmente cumpre uma função idêntica. O princípio da legalidade não proíbe uma função expansiva para que ingresse no Direito Penal outros princípios não positivados, mas que derivem do sistema constitucional, porque eles estão dentro do ordenamento jurídico, a não ser que se atribua uma função inversa ao princípio da legalidade[45].

Sob o influxo da sacralidade da vida humana o Direito Penal clássico proclamava que a vida humana é um bem jurídico indisponível ou absoluto.

Todavia, desde Kant com a consagração do princípio da alteridade, que rege todas as relações jurídicas intersubjetivas, foram separadas as instâncias do Direito e da Moral como categorias independentes, que durante muitos séculos misturadas foram fontes de confusões legislativas e jurídicas.

No Direito Penal moderno está provado que a ordem moral não se presta a fundamentar o direito punitivo, porque o Estado não pode impor coativamente a moral aos indivíduos. O Direito Penal não é o instrumento para moralizar os cidadãos, presta-se apenas para tutelar os bens jurídicos fundamentais indispensáveis ao funcionamento social. Quando o Direito Penal contempla a moral é apenas mera coincidência e não fundamentação da norma penal[46].

Diante de um Estado laico (e não ateu) como é o Estado brasileiro todas as opiniões devem ser respeitadas, independentemente da crença religiosa ou filosófica que a pessoa professe, porque a República é uma sociedade inclusiva (de todos, e não apenas da maioria). Como sociedade coletiva a República deve assumir um papel de comunidade constitucional pautada pelo multiculturalismo e pela diversidade política e ideológica, porque o republicanismo não pressupõe nenhuma doutrina, verdade, filosofia ou religião absolutas[47].  Nesse contexto, a eutanásia dentro de certos requisitos deve ficar de fora do Direito Penal, porque se a maioria das pessoas compartilha a ideia de que terminar uma vida é essencialmente mau, não existe um consenso quando se discute qual vida deve ser defendida, considerada sob o prisma intrínseco. Em função dessas diferenças as pessoas definem a sua posição frente à eutanásia[48]. E nesse sentir, no conceito de dignidade da pessoa humana inclui-se o direito de morrer com dignidade[49].

O Estado Democrático de Direito é aquele capaz de tratar os seus súditos com ferramentas dialógicas que possibilitem o confronto aberto por meio da expansão da cultura, da educação e da informação completa, e que não utilize o Direito Penal como um instrumento de opressão ideológica ou como política de censura.

A ótica de assinalar à intervenção penal tarefas de moralização, de programação pedagógica ou de doutrinamento dos cidadãos pode ser analisada como uma forma de paternalismo; e nesta perspectiva, as pessoas em vez de serem sujeitos de direitos passam a ser sujeitos controlados, como um filho a educar e adestrar, assumindo o Estado para si a prerrogativa de dizer o que é “certo” e o que é “errado”.

O paternalismo estatal se manifesta, portanto, como uma tendência autoritária do Direito, porque em vez de tutelar o cidadão na sua esfera de liberdade, o controla como um filho e fazendo as escolhas em seu lugar[50].

Sob o prisma jurídico, a proteção penal da vida humana no Brasil se inicia desde a concepção (união dos gametas), e se estende até a morte do indivíduo (vida extrauterina). Adotou o nosso legislador a modalidade de proteção mais ampla da vida humana. Todavia, ao contrário do que afirmava o Direito Penal clássico essa proteção da vida humana não é exaustiva (ou absoluta), mas fragmentária[51], isto porque o nosso ordenamento jurídico prevê várias hipóteses de eliminação da vida humana intrauterina, como no caso do aborto terapêutico, como único meio de salvar a vida da gestante (art. 128, I); no aborto sentimental, de estupro que resultou gravidez (art. 128, II); aborto do anencéfalo (STF, ADPF 54); e o Supremo Tribunal Federal discute hoje o aborto do feto com microcefalia contaminado com o zika vírus (STF, ADIn 5581, ainda em discussão); e da vida humana extrauterina, como no caso de pena de morte em caso de guerra (CF, art. 84, XIX c.c. o art. 355 do CPM), na legítima defesa com evento morte (CP, art. 23, II), no estado de necessidade com evento morte (CP, art. 23, I), e na Lei do Abate (aeronaves invasoras do nosso espaço aéreo) inserido recentemente no Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/1986, art. 303, § 2.º). Portanto, no universo dos crimes contra a vida perante o nosso ordenamento jurídico nem todo “matar” é ilícito ou típico, conforme o caso.

O Estado e o Direito também não proíbem atividades perigosas que põem em perigo a vida humana (práticas esportivas perigosas, pesquisas nucleares e radioativas, desenvolvimento de alimentos transgênicos, exploração de minas etc.).

Em crítica a decisão do Tribunal Constitucional espanhol (STC 53/1985) que proclamava que a vida humana é um “valor superior do ordenamento jurídico constitucional”, em seu voto, Tomás y Valiente, partindo do conceito de pessoa como suporte e “prius” lógico de todo direito, considerou que tal ponto de partida não autoriza perigosas hierarquizações axiológicas, alheias ao texto constitucional, que no seu art. 1.º afirma que são valores superiores do ordenamento jurídico, a liberdade, a justiça e a igualdade e o pluralismo político. Rubbio Llorente em seu voto também contestou o argumento central da sentença que é a consideração da vida humana como um valor superior do ordenamento jurídico, porque “o intérprete da Constituição não pode abstrair dos preceitos constitucionais o valor ou os valores que tais preceitos encarnam para deduzir depois, considerados já como puras abstrações, obrigações do legislador que não tem apoio em nenhum texto constitucional concreto. Isto não é nem sequer fazer jurisprudência de valores, mas simplesmente, suplantar o legislador ou quiçá, mais ainda, o próprio poder constituinte”[52].

Pugna também em favor da legitimação da eutanásia no Brasil os tratados internacionais sobre direitos humanos que ingressaram em nosso ordenamento jurídico de acordo com o § 3.º do artigo 5.º da Constituição Federal, com status de direito fundamental. Nesse campo tem especial destaque o art. 7 do Pacto Internacional de Direito Civis e Políticos, incorporado por nós através do Decr. 592/1992, de 6 de julho, ao proclamar no art. 7 que: “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre convencimento, a experiência médicas ou científicas”. A Declaração Universal dos Direitos Humanos editada em 10 de dezembro de 1948, consagra no art. 3.º que: “Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. A Convenção Americana de Direitos Humanos, incorporada pelo Decr. 678/1992, de 6 de novembro, no seu art. 5.1. consagra que: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”. Tais convenções reforçam ou legitimam a eutanásia quando conectada com a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1.º, III).

A Constituição garante aos cidadãos o livre desenvolvimento da sua personalidade, que se manifesta não somente em vida, mas também na morte que se elege. Salvador Allende recusou a oportunidade de fugir de Santiago e morreu com a metralhadora em mão no Palacio de la Moneda; Sigmund Freud após dezesseis anos de dura luta contra o câncer, durante os quais se submeteu a mais de trinta cirurgias e pode seguir produzindo uma obra científica capital para a história da humanidade, elegeu lúcida e voluntariamente a morte, que lhe foi dada por seu médico de cabeceira, porque a vida se havia convertido só numa “tortura física” e já não tinha “nenhum sentido”, constituem dois exemplos claros de que a personalidade se manifesta não somente no como se vive, mas também em como se morre. A par disso, quando o paciente assim o solicita, mediante a eutanásia se protege também a dignidade da pessoa humana, pois ninguém pode estar mais legitimado do que o próprio afetado para decidir numa situação limite onde está a sua dignidade: em seguir lutando pela sobrevivência ou em renunciar os cabos, as sondas e os instrumentos das unidades de cuidados intensivos, para poder morrer em paz. O respeito dos desejos do paciente que quer morrer está amparado também na liberdade ideológica dos indivíduos, pois o único argumento para justificar porque nestes casos há que prescindir do que quer o enfermo e mantê-lo vivo contra sua vontade é a tese católica de que Deus, e não o homem, é quem pode dispor da vida humana, porém este argumento carece de qualquer fundamento ético fora do marco estritamente religioso e, por isso, não pode ser compartilhado pelos ateus, que são tão cidadãos como os demais. A Constituição também proíbe os tratos desumanos: que as unidades de cuidados intensivos as vezes podem converter-se em câmara de tortura, que algumas enfermidades podem provocar padecimentos superiores aos que têm origem numa polícia sádica, parece fora de discussão; daí que na eutanásia consentida a morte do paciente suponha, ao mesmo tempo, o fim de um trato desumano. Da argumentação utilizada até agora de que a vontade do paciente justifica penalmente a eutanásia, em qualquer de suas formas, deriva também, a inversa, que se o afetado quer lutar por sua vida e tratar de se salvar mediante, por exemplo, uma intervenção cirúrgica ou mediante seu ingresso – ou permanência – numa unidade de cuidados intensivos, em princípio, existe a obrigação jurídico-penal do médico de tratar de tirar o enfermo ou o traumatizado das garras da morte[53].

A par disso, a Constituição existe um princípio geral de liberdade que se manifesta em duas direções. A primeira, a consagração de uma reserva geral da lei para poder estabelecer limitações à liberdade (art. 5.º, II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei). A segunda, a garantia de um direito geral de liberdade que impede que o legislador estabeleça limitações à autonomia dos indivíduos não suficientemente justificadas (art. 5.º, caput)[54].

Todavia, de lege ferenda, a regulamentação legal sobre eutanásia deve evitar qualquer valoração “qualitativa” da vida humana, pois que ainda que se trate de um “direito” para o indivíduo, não se pode ocultar que tal “valoração” carrega ao mesmo tempo um grave perigo: pode voltar-se contra o sujeito, justificando – de uma forma absolutamente inadmissível – a eliminação daqueles que não reúnem os caracteres que o ordenamento jurídico determinou como constituinte da “dignidade” humana[55].

Sobre o autor
Marcelo Murillo de Almeida Passos

Advogado. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Autor do livro: Direito Penal: uma introdução por seus princípios constitucionais, prefaciado pelo Dottore Luigi Cornacchia, 2015, ed. Lumen Juris.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, Marcelo Murillo Almeida. Eutanásia revisitada:: Um tema em debate pelo direito penal moderno. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5781, 30 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72451. Acesso em: 23 nov. 2024.

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