Eutanásia
A origem do termo eutanásia vem do grego (eu = bem + thanatos = morte) significando “morte boa”, e por extensão, contextualizando, “morte suave, doce ou tranquila”, “morte digna”, morte indolor, rápida e libertadora, isto é, sem dor nem sofrimentos.
No século XVII, o filósofo e chanceler inglês Francis Bacon cunhou o termo eutanásia na obra The Advancement of Learning (1605), dando a forma definitiva em Augmentis Scientiarum (1623), onde afirmou que: “A profissão do médico não consiste unicamente em restabelecer a saúde, mas também aliviar as dores e sofrimentos que acompanham as enfermidades, e isso não só quando este alívio da dor... contribui ou conduz ao convalescimento, mas também a fim de dar ao enfermo, quando não haja mais esperança, uma morte doce e nobre”[1]. Como atividade médica destinada a aliviar aos moribundos a dor da morte, Bacon distinguia a eutanásia externa (dar fim à vida por atos exteriores) da eutanásia interna (predisposição espiritual e psicológica do enfermo para aceitar a morte).
Algumas definições de eutanásia são muito amplas ou demasiadamente impregnadas de preconceito, como a proposta por Manzini: “l’uccisione di persone affette da malattia inguaribile o molto penosa, o in stato agonico prolungato e tormentoso, o malate di mente così da essere inutili o dannose a sè e agli altri” (“a morte de pessoas que sofrem de doenças incuráveis ou dolorosas ou num estado agonizante e tormentoso, ou mentalmente doentes, de modo a serem inúteis ou prejudiciais para si mesmas e para os outros”)[2].
De um modo geral, tornou-se célebre, dada a larga aceitação, a definição formulada pelo médico italiano Enrico Morselli em 1923: “L’Eutanasia, propriamente detta, e che io chiamerei "uccisione misericordiosa" o "pietosa", è quella che altri procura ad una persona sofferente di infermità ormai incurabile o molto penosa; ed è quella che fu proposta per troncare le agonie troppo prolungate o dolorose”[3] (“A eutanásia, propriamente dita, e que eu a chamarei ocisão misericordiosa ou piedosa, é a que alguém dá a outra pessoa que sofre de enfermidade incurável ou muito dolorosa, para livrá-la das agonias muito prolongadas ou dolorosas”).
Lato senso a eutanásia é a morte misericordiosa provocada intencionalmente de uma pessoa, a pedido desta, para livrá-la da agonia e do sofrimento atroz provocados por acidente, enfermidade ou pela degenerescência, de que inexoravelmente a vítima não se pode livrar ou convalescer[4].
Para fins deste trabalho propomos o conceito restritivo de eutanásia, que pode ser definida como morte provocada pelo médico a pedido ou com o consentimento do paciente, que padece de enfermidade incurável de acordo com o conhecimento médico, e que se encontra em situação ‘in extremis’ ou penosa, com fins libertadores da agonia dolorosa ou prolongada. Ou seja, na feliz síntese é a ação ou omissão que, por compaixão, abrevia diretamente a vida do paciente com intenção de eliminar a dor[5].
Desta forma, ficam de fora deste conceito: (1) a eutanásia eugênica ou selecionadora, usada com fins racistas de “procriação hígida” ou como instrumento de “higienização social”, que realiza uma seleção mediante o extermínio dos débeis, malformados, degenerados, cujos descendentes – segundo seus defensores – por inflexível lei da herança serão perigosos, nocivos ou custosos para a sociedade[6]. E (2) a eutanásia econômica, para exterminar “vidas sem importância” como dos idosos, doentes mentais, prole numerosa etc., considerados um “peso morto” para a sociedade[7]. Trata-se de conseguir uma melhora econômica da sociedade fazendo desaparecer quem por invalidez e inutilidade representa uma carga social[8].
A eutanásia eugênica e a eutanásia econômica na essência são idênticas, porque consistem na supressão das “vidas sem valor vital” (lebensunwerten Lebens) conforme diziam alguns autores alemães[9]. Dessas duas modalidades (ingerências estatais criminosas no direito à vida) se tem de distinguir a autêntica eutanásia.
Na atualidade o termo eutanásia tem sido empregado preferencialmente em relação a outras expressões utilizadas em outras épocas, por exemplo, como “auxílio ao suicídio” ou “ajuda a morrer”. Todavia, na Alemanha continua sendo empregado o termo Sterbehilfe (da contração de Sterben + hilfe = ajuda a morrer) em contraposição ao termo Euthanasie pelas conotações semânticas que teve durante o nazismo[10].
Como um braço da política sanitária racista do III Reich, o Programa Aktion-4 desenvolveu-se numa espiral crescente: num primeiro momento os médicos executavam as crianças e os recém-nascidos malformados ou portadores de alguma anomalia física ou mensal; posteriormente o programa estendeu-se também aos adultos inválidos e idosos decrépitos e homossexuais; por fim, juntamente com os dois estágios anteriores, a todos os cidadãos não-arianos, especialmente contra judeus, negros e ciganos.
O partido nacional-socialista não ousou realizar publicamente o seu programa eutanásico. Os doentes mentais eram executados silenciosamente com base no decreto secreto de Hitler de 1.9.1939. Em 1941 o programa pareceu ter sido interrompido diante da preocupação de a opinião pública descobrir as ações criminosas, mas continuou agindo secretamente. Estima-se que após 1941 cerca de 100.000 pessoas tenham sido mortas[11].
O nome Aktion T4 era uma abreviação de Tiegartenstraβe 4, endereço da sede da fundação Gemeinnützige Stiftung für Hell und Anstaltspflege localizada em Berlim, que desenvolveu o programa.
Contra essa experiência nazista reagiu a Lei Fundamental (GG, art. 2.2.) [12] , “in verbis”: “Jeder hat das Recht auf Leben und Körperliche Unversehrtheit. Die Freiheit der Person ist unverletzlich. In diese Rechte darf nur auf Grund eines Gesetzes eingregriffen werden”[13] (“Todos têm o direito à vida e a integridade física. A liberdade individual é inviolável. A intervenção nesses direitos somente se dará por lei”).
Nos Países Baixos onde a eutanásia é permitida, a definição proposta por Henk Ten Have (Eutanasia: la experiência holandesa, in Morir con dignidad, Madrid: Doce Calles, 1996, p. 38-53) é a seguinte: “a finalização intencional da vida realizada por um médico a pedido do próprio paciente”. Segundo Álvarez esse conceito tem a qualidade de destacar três características principais: a intenção, o pedido do paciente e o papel do médico. A intenção é um elemento intrínseco de toda ação e neste caso se refere a uma intenção do médico de terminar ativa ou diretamente com a vida do paciente, porque se busca pôr fim a seu sofrimento. O pedido por parte do paciente é uma justificação moral que sempre tem estado presente nos debates sobre o tema nos Países Baixos. Este pedido deve ser voluntário, explícito e repetido. Se não existe este pedido, não se considera eutanásia o procedimento que põe fim à vida de um enfermo. Ao médico é a quem compete realizar a eutanásia e se descarta qualquer outro profissional sanitário para fazê-lo; se esta condição não se cumpre não se pode falar de eutanásia, mas de homicídio[14].
Junto ao termo eutanásia empregam-se também outros vocábulos relacionados: ortotanásia e distanásia, que fixam dois polos no tratamento médico dos pacientes terminais.
A ortotanásia consiste em deixar o doente terminal morrer, sem empregar meios desproporcionados in extremis, a fim de obter uma morte digna, de acordo com a dignidade do sujeito.
A distanásia (morte dolorosa) é a antítese da eutanásia (morte boa). Refere-se ao tratamento terapêutico que prolonga a agonia do doente, provocando um tratamento desumano, que pospõe artificialmente o leito de morte. Consiste na utilização de terapias que não são capazes de curar o paciente, mas que simplesmente prolongam artificialmente sua vida em condições penosas. É eticamente incorreta e produz uma visão errônea de que a medicina pode trazer para os últimos momentos do paciente[15].
A eutanásia também se distingue do suicídio assistido, embora na prática a linha de distinção entre ambos seja tênue, pois enquanto que na eutanásia direta a obra do evento morte é executada pelo médico, no suicídio assistido é o próprio doente que executa o ato, fornecendo-lhe o médico os meios necessários (como por exemplo, prescrevendo barbitúricos). O suicídio assistido pressupõe, portanto, capacidade do paciente para decidir, do contrário, figura-se a eutanásia ativa ou o homicídio, conforme o caso.
Classificação
A eutanásia pode ser voluntária (quando realizada a pedido do paciente ou com o consentimento expresso e consciente dele) ou involuntária (que se dá quando o paciente não consegue manifestar a sua vontade – pessoas inconscientes, ou com desenvolvimento mental incompleto em razão da idade ou da saúde – , ou ainda, a realizada contra a própria vontade do paciente).
De acordo com a classificação exposta por Polaino-Orts, a eutanásia divide-se ainda em duas classes: direta e indireta.
Assim:
1) a eutanásia direta consiste na eleição de uma terapia que provocará a morte do enfermo terminal. Por meio dela o autor procura propositalmente abreviar a vida do paciente[16].
A eutanásia direta (1) subdivide-se em: (a) ativa e (b) passiva.
a) a eutanásia direta ativa consiste num “fazer”, isto é, ministrar uma substância que provocará a morte imediata e indolor do moribundo.
b) a eutanásia direta passiva consiste em um “não-fazer”, isto é, objetiva produzir a morte querida mediante a “recusa” de um tratamento prolongador da vida ou mediante a “interrupção” desse tratamento. Trata-se de não iniciar (abstenção terapêutica) ou não prosseguir (suspensão terapêutica) um tratamento médico ante complicações sobrevindas ou ante a irreversibilidade da situação, isto é, uma vez que não tenha solução médica que freie o curso da enfermidade. Um exemplo de eutanásia direta passiva é a omissão de tratar a pneumonia de enfermo com câncer de pulmão; deixar de alimentar por sonda um paciente na UTI, etc. [17], seja retirando o respirador do politraumatizado que nunca mais poderá recuperar a consciência[18].
A interrupção dos auxílios é lícita quando a sua continuação possa ocasionar um meio extraordinário ao enfermo e, portanto, não obrigatório; neste caso o enfermo morre pela insuficiência da sua função e não pela ausência da máquina[19]. Alguns médicos não encontram dificuldade particular em não aplicar um tratamento inútil, porém resistem em interrompê-lo uma vez iniciado[20].
A doutrina tem entendido que a eutanásia direta passiva a conduta sempre é omissiva, porque o que ocorre na realidade é que o médico suspende o tratamento, constituindo os aparatos simplesmente uma longa manus, uma prolongamento da atividade médica[21]. Alguns autores, especialmente na Alemanha, preferem o uso do termo “deixar morrer” em vez do conceito “eutanásia direta passiva”.
2) a eutanásia indireta consiste na eleição de um tratamento terapêutico lenitivo, que tem por objetivo exclusivo aliviar a dor do paciente, e como efeito indireto, secundário ou colateral, porém certo, produz a morte do paciente. Nesses casos é administrado um analgésico para aliviar a dor excessiva, pondo o paciente num estado de inconsciência, e que no final, de maneira adicional ou indireta, abrevia o processo vital, antecipando a morte[22].
Essa modalidade eutanásica (indireta) corresponde à ortotanásia, que é também chamada por alguns autores de eutanásia lenitiva em contraposição à eutanásia ocisiva ou ativa[23].
Análise jurídica da eutanásia a partir do Código Penal de 1940
No Direito comparado o tratamento penal dado à eutanásia tem dividido as legislações: (1) crime de homicídio; (2) crime de suicídio assistido; (3) crime de homicídio com pena reduzida por motivo da culpabilidade diminuída[24] (maioria dos países, como Portugal arts. 133 e 134, Espanha art. 143.4, Alemanha § 216; e inclusive o Brasil art. 121, § 1.º); (4) crime de homicídio com despenalização pela via judicial – perdão judicial – (Uruguai art. 310 c.c. o art. 37), e (5) fato atípico, quando preenchidos requisitos legais estritos para a sua realização (Holanda, Luxemburgo e Bélgica).
O Código Penal italiano (art. 579) altamente repressivo pune a eutanásia ou “homicídio do consenciente” (“omicidio del consenziente”) com pena de reclusão de seis a quinze anos, “grati al nostro legislatore di avere riconosciuto la punibilità dell’omicidio del consenziente, conforme ai principi della religione e dell’etica”[25]. Mas se o sujeito ativo age por motivo de compaixão aplica-se a atenuante do art. 62, n. 1[26]. Atualmente, a Itália não pune mais a eutanásia quando realizada de acordo com a lei.
O legislador brasileiro não optou por criar um tipo penal autônomo de crime de eutanásia, mas passou a incriminá-la indiretamente através do § 1.º do art. 121 do Código Penal, chamado de homicídio privilegiado e fundamentado no sentimento de piedade do sujeito ativo em relação ao sujeito passivo através do tipo normativo “relevante valor moral”, isto é, quando o autor mata alguém impedido pela compaixão ou pelo sentimento de piedade.
O § 1.º adere ao tipo fundamental do art. 121 do Código Penal.
Eis a redação do § 1.º do art. 121 do Código Penal, “in verbis”:
Parte Especial
Título I – DOS CRIMES CONTRA A PESSOA
Capítulo I – Dos Crimes contra a Vida
Homicídio simples
Art. 121 – Matar alguém. Pena – reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1.º - Se o agente comete o crime impelido de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
O artigo 121 do Código Penal tutela a vida humana extrauterina. “Homicidium est hominis caedes ab homine iniuste patrata”. Esta clássica definição de homicídio de Carmignani (Elementi, § 898) está plasmada no artigo 121 do Código Penal, quando nela se destaca que o homicídio consiste na morte de um homem causada por outro homem (diz o verbo típico: “Matar alguém”); todavia no atual desenvolvimento da técnica jurídica penal é desnecessária a expressa alusão ao injusto da conduta (hoje, pleonástica), porque a ilicitude da conduta é um elemento essencial do tipo[27].
O sujeito passivo do crime de homicídio é o outro homem vivo, porque é pressuposto de crime contra a vida é que a vítima esteja viva. “Não há crime onde exista uma vida já extinta, por falta de objeto do crime. É caso de crime impossível. Não se mata um homem morto: mas se pode matar o moribundo mesmo que ele tenha apenas o último suspiro de vida, e inclusive o condenado à morte, ainda que seja certo que morrerá a pouco. Para ter o homicídio basta uma existência humana, qualquer que seja a sua condição fisiológica, psicológica, social, jurídica do paciente. Portanto, não tem efeito sobre a existência do crime o sexo, a idade, o estado físico ou mental, a posição social, a capacidade jurídica, a raça e a nacionalidade”[28].
No passado, o ser humano referia-se ao “ser nascido de mulher”, todavia, hoje se discute com o avanço das novas técnicas das ciências médicas e biológicas, de geração, se o embrião fora do útero humano é passível de crime contra a vida. De acordo com os conceitos civis de vida e com as noções que surgem de sua proteção penal por meio dos tipos penais de aborto, tem que se tratar de uma vida se desenvolva no útero da mulher, qualquer que seja o meio empregado para lograr a concepção (natural ou artificial). O produto de uma concepção obtida fora do corpo materno, que não tenha sido implantado, e que se mantém artificialmente fora do seio materno (vida in vitro), ainda que biologicamente possa catalogar-se como vida humana não é o que a lei penal protege debaixo desse título (crime contra a vida), ainda quando sua destruição possa afetar outros interesses e constituir outros crimes; porém se esse produto foi implantado no seio materno, a proteção legal se dá por meio do crime de aborto até que ocorra o nascimento, qualquer que sejam as possibilidades de sua viabilidade: basta que funcione como complexo vital[29]. Para efeitos do art. 121 a proteção penal do crime de homicídio se inicia com o trabalho de parto, com o despregamento do feto do colo do útero associado ao rompimento do saco amniótico; na cesariana, com o início da cirurgia até a superveniência da sua morte, que se dá com a parada encefálica geral e irreversível (art. 3.º da Lei 9.434 e Lei 10.211/2001)[30].
No homicídio privilegiado (§ 1.º do art. 121 do CP) trata-se de caso de diminuição de pena em relação ao homicídio simples quando reunidas as circunstâncias descritas no § 1.º. Não se trata de um crime autônomo, mas propriamente de um caso de diminuição de pena diante de uma circunstância legal que se une ao tipo fundamental do crime de homicídio simples (art. 121, caput). Como no rol do § 1.º do art. 121 as circunstâncias legais são subjetivas elas não se comunicam aos eventuais coautores ou partícipes do crime. É o que está consagrado no artigo 30 do Código Penal.
Para a redução da pena, de um terço a um sexto em relação ao crime de homicídio (art. 121, caput do CP), devem estar preenchidas qualquer uma das três hipóteses descritas no § 1.º do artigo 121 do Código Penal:
Art. 121 |
+ |
§ 1.º |
Verbo Típico |
+ |
Circunstâncias Pessoais |
A -Matar alguém |
+ |
por motivo de relevante valor social |
B- Matar alguém |
+ |
por motivo de relevante valor moral |
C - Matar alguém |
+ |
sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima |
Em todo os casos: Pena: |
Reclusão |
de um sexto a um terço em relação ao tipo fundamental (do homicídio simples). |
Tratando-se de crime contra a vida a competência para o seu processamento e julgamento é do Tribunal do Júri, competindo ao corpo de jurados (como juízes naturais) decidir na votação dos quesitos pela existência ou não do privilégio. Reconhecido privilégio pelos jurados é obrigatória a redução da pena pelo juiz (CPP, art. 483, § 3.º, I; RT 448/356).
Pois bem, veja que na descrição do tipo penal em nenhum dos casos do § 1.º do art. 121 se refere expressamente à eutanásia. Portanto não existe em nosso ordenamento jurídico um tipo penal de eutanásia. Não obstante, o Ministro da Justiça Francisco Campos, sob a pena de Nelson Hungria (autor do anteprojeto), no item 39 da Exposição de Motivos do Código Penal indicava a eutanásia como caso de homicídio privilegiado, designando-a de “homicídio eutanásico”.
Convertido o anteprojeto no Código Penal por meio do D.L. 2.848/1940, Nelson Hungria traçou neste ponto os mais louváveis encômios à sua obra:
“O legislador brasileiro que não se deixou convencer pelos argumentos que defendem, no tocante ao homicídio piedoso, a radical impunibilidade ou a faculdade do perdão judicial. Rejeitou, assim, o exemplo dos Códigos Penais soviético e uruguaio”[31].
Defendendo posição manifestamente contrária a qualquer forma de eutanásia (especialmente a ortotanásia tendente à descriminalização) Nelson Hungria profligava em outra passagem:
“Nenhum médico tem a faculdade de ficar impassível como simples espectador em face do moribundo, desde que haja possibilidade de mantê-lo com vida. E aquele que assim proceder, não será apenas um criminoso, senão também um profissional indigno, a quem se deve rasgar do diploma.
Mercê de Deus, que no Brasil, à parte uma irrequieta e ínfima minoria de camelots a pregoar o subido mérito de ideias extravagantes, só porque trazem o cachet de novidade e da procedência europeia, não há clima para o ceticismo que avassala a mentalidade do Velho Mundo. Ainda não nos despedimos, nem nos despediremos, por honra nossa, da convicção de que um dos traços frisantes da superioridade do homem sobre a besta é o consciente sentimento de solidariedade para com o seu semelhante”[32].
Ou ainda,
“É sabido que a nossa vigente lei penal desacolhe a tese de impunidade do homicídio eutanásico, isto é, do homicídio praticado para abreviar piedosamente os sofrimentos de um doente incurável. Apenas transige em considerá-lo um homicidium privilegiatum, um delictum exceptum, facultando ao juiz a imposição de pena minorada, em atenção a que o agente é impelido ‘por motivo de relevante valor social ou moral’. O nosso legislador de 1940 manteve-se fiel ao princípio de que o homem é coisa sagrada para o homem. Homo res homini sacra. A supressão dos momentos de vida que restam ao moribundo é crime de homicídio, pois a vida não deixa de ser respeitável mesmo quando convertida num drama pungente e esteja próxima de seu fim”[33].
E, assim, diante do disposto no § 1.º do artigo 121 do Código Penal segundo a ótica da doutrina tradicional estava lançada a pá de cal sobre qualquer discussão da eutanásia no Brasil, como, nesse sentir, dizia o grande penalista e médico Aníbal Bruno:
“Por consenso geral, admite-se como determinado por motivo de relevante valor moral o chamado homicídio piedoso.
Desse modo se procuraria decidir, por via indireta, no domínio do nosso Código Penal, o controvertido problema da eutanásia, problema complexo e de infindável discussão, não só quanto à conceituação do fato, mas ainda no que se refere às soluções com que a literatura e as legislações penais procuram resolvê-lo”[34].
Acerca do § 1.º do artigo 121 do Código Penal, a doutrina assevera, que perante “a nossa lei, não é propriamente o consentimento da vítima, mas sim o motivo de relevante valor moral, a piedade, o impulso altruístico, que justifica a atenuação especial da pena”[35]. “O motivo portador de destacado valor social é o consentâneo aos interesses coletivos. Já o motivo de relevante valor moral é aquele cujo conteúdo releva-se em conformidade com os princípios éticos dominantes em uma determinada sociedade [aferidos objetivamente]”[36]. No caso da eutanásia, o “relevante valor moral” entende-se como sendo um sentimento altruísta e humanitário para com a vítima, por piedade, misericórdia ou compaixão[37], e que a moral média reputa nobre e merecedora de indulgência e que deve ser acolhido pelo juiz, ainda que a moral superior possa ensinar diversamente; prevalecem aqui os critérios da chamada moral prática[38]. Deve, ainda, estar provada a ausência de egoísmo do autor (trabalhos com o enfermo, gastos excessivos, antecipação da herança etc.) e sim o móvel piedoso ou compassivo[39].
Com raras exceções de entendimento, para a doutrina tradicional a ortotanásia configura crime de homicídio. Nesse sentir dizia Nelson Hungria:
“A supressão fatal da distanásia, do mesmo modo que a eutanásia, constitui, repita-se, o crime que o Código Penal define como ‘homicídio’. Nenhuma diferença existe entre o aplicar-se uma forte injeção de protóxido de azoto para abreviar a morte do enfermo e do deixar, para o mesmo fim, de lhe ministrar um cardiotônico ou um antibiótico. Não há dizer-se que, no último caso, haveria quando muito, o crime de omissão de socorro. Nesta, ao contrário do que ocorre na eutanásia por omissão, inexiste o animus necandi, a voluntas ad necem. O omitente de socorro é um egoísta que cuida de se forrar a incômodos, mas sem que o aspire, sequer, o mais longínquo desejo de morte do periclitante; enquanto o médico que deixa de empregar os recursos distanásicos falta ao seu dever profissional e jurídico de prolongar a vida tanto quanto possível e contribui, voluntária e intencionalmente, para a morte do seu cliente”[40].
Dependendo do caso concreto a eutanásia no Brasil pode até mesmo configurar homicídio qualificado (art. 121, §§ 2.º, I a IV), crime hediondo (art. 1.º, I da Lei 8.072/1990), com pena de reclusão de doze a trinta anos, quando se der, por exemplo, por motivo torpe (como na retirada de órgãos para o comércio clandestino, ou como forma de antecipar a herança, ou ainda, para o recebimento do prêmio de seguro de vida deixado pelo moribundo etc.) ou por impossibilitar a defesa do ofendido (desligar aparelhos de uma vítima inconsciente); ou homicídio qualificado-privilegiado, quando as qualificadoras forem de natureza objetivas, para não haver incompatibilidade com a privilegiadora subjetiva (CP, art. 67 e STF, HC 76.196/GO, Rel. Min. Maurício Corrêa, Informativo 113); não é crime hediondo diante do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, porque a Lei 8.072/90 prevê apenas, como hediondo, homicídio simples em ação de grupo de extermínio e homicídio qualificado; não prevê homicídio qualificado-privilegiado (STJ, 5. T, HC 144.196/MG, Rel. Min. Félix Fischer, DJe 1.2.2010).
A tendência atual da doutrina é pela atipicidade da eutanásia passiva (ortotanásia), cuja terapêutica paliativa é dirigida a aliviar a dor sem interromper o curso do processo natural da morte inevitável. A ortotanásia é um irrelevante penal, porque o médico não está obrigado a prolongar artificialmente a vida de um paciente terminal, a menos que o paciente ou seus familiares solicitem[41].
O sentido médico de, por outro lado, instrumentos de reanimação caros e escassos – e para isso foram criados – é o de poder manter artificialmente com vida de quem, em definitivo, tem possibilidades de sobreviver e não o de criar cadáveres viventes; é o de devolver a vida para as pessoas e não em prolongar sua agonia: daí que em tal caso pode haver o interesse contraposto de outros pacientes potenciais com melhor prognóstico (estado de necessidade de terceiro) e o exercício legítimo da profissão médica (exercício regular de um direito) exijam interromper – ou não aplicar – a assistência com instrumentos criados para curar – e não para fazer sofrer a quem não se pode curar[42].
Reforça esse entendimento, a Resolução 1805/2006, de 9 de novembro, do Conselho Federal de Medicina, com a seguinte ementa: “Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, é permitido ao médico suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou seu representante legal”.
Para a suspensão dos procedimentos e tratamentos médicos a Resolução 1.805/2006 traça os critérios definidos nos artigos 1.º e 2.º e respectivos §§, “in verbis”:
“Art. 1.º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
§ 1.º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2.º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3.º É assegurando ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.
Art. 2.º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar”.
Contudo, quanto às demais formas de eutanásia direta (ativa e passiva) ainda predomina o entendimento de que são criminosas com base na legislação penal (CP, art. 121, § 1.º).
A matéria foi reafirmada pelo Conselho Federal de Medicina no parágrafo único do art. 41 do Código de Ética Médica (Res. 1.931/2009), “in verbis”:
Capítulo V
Relação com pacientes e familiares
É vedado ao médico:
(...)
Art. 41 – Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Parágrafo único – Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapias inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente, ou na sua impossibilidade, a de seu representante legal.