O art. 1º, da Lei n. 9.613/1998, que dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores, e dá outras providências, estabelece configurar crime, com pena de reclusão de 3 a 10 anos, e multa, quem “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.
Recentemente, foi noticiada a apresentação do Projeto de Lei n. 442/2019, de autoria do Deputado Rubens Bueno (PPS-PR), o qual teria sido lastreado no antigo Projeto de Lei n. 4341/12, do ex-deputado Chico Alencar (Psol-RJ), segundo os quais também passaria a configurar o crime, nas mesmas penas, a conduta do advogado que “receba honorários advocatícios, tendo conhecimento ou sendo possível saber a origem ilícita dos recursos com os quais será remunerado” (inciso III do § 2º do art. 1º da Lei 9613/98).
De acordo com a sua “justificativa”, o Projeto de Lei n. 442/2019 se limita, de forma objetiva, a “punir o recebimento de honorários oriundos da atividade criminosa”, pois o pagamento de honorários advocatícios por “criminoso”, com recursos da atividade criminosa, tem o condão de lavar o dinheiro, que entra no mercado sem quaisquer vestígios de sua origem.
Não se nega a importância da lei que visa combater a lavagem de dinheiro, como tentativa de se impedir outras práticas delitivas de grande potencial lesivo ao país, ao sistema financeiro e à sociedade como o narcotráfico, a sonegação fiscal, a corrupção pública, os crimes de sequestro, entre outros. Também não se nega a responsabilidade penal aquele advogado que, dolosamente, venha a participar do crime, deixando ele de exercer a defesa técnica para alcançar a condição de integrante do esquema criminoso.
Contudo, no julgamento da Proposição n. 49.0000.2012.010315-1/COP, o Pleno do Conselho Federal da OAB já havia assentado que a lei antilavagem não poderá se aplicar aos defensores técnicos por expressa disposição constitucional que considera o advogado indispensável à Justiça, além do princípio do contraditório, da ampla defesa (arts. 5º, LV, e 133, CF), e por entender que não há advocacia, nem justiça, sem o dever do sigilo profissional – base do estado democrático de direito (art. 7º, I, II e XIX, Lei n. 8906/94), cuja violação, inclusive, é considerada crime pelo ordenamento jurídico brasileiro (art. 154. do Código Penal).
Na decisão liminar proferida em 28.2.2019, nos autos do Mandado de Segurança Criminal n. 1000399-80.2019.4.01.0000, o Desembargador Federal Néviton Guedes, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, pontuou que “a atividade do advogado, especialmente advocacia criminalista, consiste em ofício e profissão de alto risco. Essa situação crítica apenas se agrava ante a incompreensão da sociedade e a má vontade dos órgãos do Estado. Com efeito, a advocacia na área penal destina-se à proteção de interesses que, na maior parte do tempo, são malvistos pela sociedade. E não obstante, culpado ou inocente, todos têm direito a melhor defesa técnica possível”.
O referido Desembargador, após proceder à uma análise do Direito Comparado (Portugal, Alemanha, Estados Unidos, etc.), ainda acentuou que “aquele que procura o advogado deve ter a certeza de que toda e qualquer informação colocada à consideração de seu oficio e mister está, a princípio, resguardada pela proteção do sigilo profissional. Por outro lado, o advogado, por ser indispensável à administração da justiça, deve ter a tranquilidade e a certeza de que, no desempenho de suas funções, desde que não esteja praticando ele mesmo algum delito criminal, não será objeto de perseguição a qualquer título por parte do Estado, ou por parte de terceiros. É precisamente isso que o constituinte de 1988 quis afirmar quando prescreveu que o advogado, por ser indispensável à justiça, é inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão (art. 133, Constituição da República)”.
Para o julgador do TRF da 1ª Região, o advogado “não tem a mínima obrigação de revelar as condições em que contratados ou concretizados os seus serviços”, não podendo “o Estado valer-se do advogado para alcançar eventuais participes de um crime e muito menos para sindicar se o seu cliente praticou ou não outras condutas delituosas”.
Nesse aspecto, ademais, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), já havia manifestado no sentido de que “para se preservar a higidez do devido processo legal, e, em especial, o equilíbrio constitucional entre o Estado-acusador e a defesa, é inadmissível que autoridades com poderes investigativos desbordem de suas atribuições para transformar defensores em investigados, subvertendo a ordem jurídica. São, pois, ilegais quaisquer incursões investigativas sobre a origem de honorários advocatícios, quando, no exercício regular da profissão, houver efetiva prestação do serviço” (HC 129.569 MC/DF).
O tema ainda se encontra pendente de pronunciamento no STF, na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) n. 4841, onde a Vice-Procuradora-Geral da República Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, registrou em seu parecer ministerial que a lei antilavagem não alcançaria “a advocacia vinculada à administração da justiça, porque, do contrário, seria atingido o núcleo essencial dos princípios do contraditório e da ampla defesa” (item 51 do parecer), sendo possível que “o sigilo profissional também seja assegurado ao advogado no âmbito do processo administrativo, das atividades de consulta preventivas de litígio e da arbitragem, sempre com vistas a resguardar a observância de tais princípios” (item 52 do parecer).
Seja como for, por se tratar apenas de um Projeto de Lei (442/2019) – cuja inconstitucionalidade, a princípio, seria juridicamente impossível de ser declarada, porquanto o controle abstrato somente pode ocorrer em face de lei ou ato normativo já concluído –, a proposta nele contida, certamente, não passará pelo filtro constitucional, pois o combate ao crime de lavagem de dinheiro não pode ser realizado ao arrepio das normas e princípios constitucionais.