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Individualismo como incentivador da violência e o papel do Direito Penal nesse contexto

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Agenda 07/09/2005 às 00:00

Sumário: introdução; 1. facetas da socidade: o homem como ser social; 1.1. O homem na sociedade de constituição simples; 1.2. O homem na sociedade de constituição complexa; 2. direito (penal) e sua operacionalidade; 2.1. Direito contemporâneo: uma visão crítica; 2.1.1. Breves considerações históricas; 2.2. O direito hodierno operacionalmente; 2.3. O direito penal e a insegurança; 3. O Direito Penal e o Individualismo; 3.1. O eu, o outro e o nós; 3.2. A violência e sua origem no individualismo; 3.3. Direito penal repressivista: movimento lei e ordem; CONCLUSÃO; BIBLIOGRÁFICA.


Introdução

A difícil compreensão dos problemas que envolvem a violência humana passa pela condição do Homem como animal sociável que engloba uma tridimensionalidade do eu, do outro e do nós. O isolamento não é inerente ao Humano, pois sua racionalidade, característica fundadora deste ser, somente se desenvolve com a participação do outro. Constata-se, ainda, a presença do outro no mundo pelo fato destes seres, do eu e o(s) outro(s) constituírem-se em múltiplos. Como radicalização da problemática, advém a imperfeição do Homem, destacada no dizer de Herder (1995), que expressa a condição humana: O homem é um vaso em que não cabe a perfeição... Para avançar tem sempre que perder qualquer coisa; [01] de outra forma, a violência do homem com seu semelhante é assunto que percorre, desde os tempos idos até o hodierno, labirintos cheios de mistérios e obscuridade; covas que guardam os vícios de torpezas e traços largos de indignidades. A história aprofunda o passado, fator que, por momentos, não permite observar a sujeira. Mas não só de obscuridades e de atrocidades é composto o Humano, mas, também, de luz e sabedoria quando se empenha para resolver problemas que o incomodam de fato e quando estes problemas, imperiosamente, dele exigem, politicamente, soluções. Nem tudo perdido está. A busca do conhecimento é um indicativo de esperanças de resoluções de problemas. Mas, o outro lado da moeda apresenta-se, as profundezas ganham novas dimensões em todo momento em que o conhecimento se embrenha, há um aumento de complexidade, contingências e expectativas. [02] Por isto uma visão que abranja alguns dos inúmeros fatores incidentes no objeto se faz imprescindível.

O tema, além de complexo e amealhado de detalhes, que são viáveis à discussão, suscita, nesta atualidade de repressão penal máxima como única alternativa de resolução dos conflitos, a inversão do papel principal do Penal; melhor dizendo, busca atribuir ao indivíduo – à sociedade – em seu dinamismo, a responsabilidade pelo fenômeno da violência, fato que deixa ao Direito Penal uma função de auxílio na redução e resoluções dos conflitos, melhor denominado de Direito Penal Mínimo. O resgate da responsabilidade [03], nos termos de assumir as conseqüências, é fundamental na resolução dos problemas sociais. Atribuir ao Direito, ou a outra esfera da cultura humana, problemas que não competem a ele, somente, resolver, é deslocar a responsabilidade de sua origem e desviar da possibilidade concreta de uma busca de solução. É necessário ir à raiz do problema para debelá-lo. Do contrário, intermediando-o, os focos continuarão a existir.

Desta forma, a proposição deste texto foi estimulada pela perspectiva de situar responsabilidades. Isso devido a uma perda de paradigmas de localização de origem de causa na contemporaneidade, ou seja, a responsabilização tornou-se, por vezes, complexa devida à rede a que cada ato/fato está conectado. Nem por isso deve-se deixar de lado a busca do agente causador do distúrbio. Com isso, podemos traçar a seguinte distinção de responsabilização: eu quando o eu tem responsabilidades para consigo, para com o outro e para com o nós; o outro para consigo, para com o eu e para com o nós também tem suas responsabilidades; e o nós tem responsabilidades para consigo, pois engloba o eu e o outro. Desta maneira, nota-se a generalidade que se tornou a participação e responsabilização do Homem na sociedade. Logo, reduzir a problemática da violência à esfera Penal é hiper-responsabilizá-la e hipo-responsabilizar os demais fatores.

As tensões existentes nestas esferas do Homem (eu, outro e nós) são, basicamente, ocasionadas por uma intolerância de aceitação e estranheza do outro. Neste momento, vários motivos são exaltados, dentre os quais a dinâmica de competição que tende a negar o outro e excluir o nós, assim prevalecendo o eu. Com esse procedimento, destaca-se o individualismo que concentras atenções no eu. A busca de sucesso, ascensão social, importa que o outro não esteja em evidência ou, pelo menos, não se destaque quanto o eu.

Traz-se, destarte, a lei da física da ação e reação transfundida no social. Embora na física haja imediatidade, na esfera humana há imediatidade, mas, também, mediatidade. Logo, a negação, o afastamento e a hostilidade com o outro acarreta conseqüências conflituais; tensões radicalizadas que se exteriorizam e se materializam na forma da violência, em seus vários aspectos, nada mais que a exasperação de uma reação. Assim, as dinâmicas, de logo, influenciam o comportamento e a constituição moral (sentido amplo) do indivíduo. Retira-se daí a importância do individualismo competitivo no que tange à violência e ao Direito Penal.

A racionalidade ao buscar explicações a estes fenômenos tende a fragmentar-se em áreas de conhecimento, ou seja, buscam-se as respostas, por exemplo, na antropologia, ou na sociologia, ou no direito, ou na biologia etc. Isto, de imediato deixa descoberta vasta gama de áreas a serem investigadas; mas por outro lado, se todas as áreas fossem abrangidas, por conseqüência, o trabalho seria infindável. Logo, a transdisciplinariedade [04], buscada, holisticamente, neste texto, não perpassa todas as áreas possíveis, mas percorre as áreas basilares ao assunto decorrente.

Na busca de um sentido interdisciplinar do fenômeno ora analisado, o trabalho enfocará uma visão do Homem na sociedade e as relações intersubjetivas, que... que são a base da interação e da maior ou menor coesão social. Ainda, sustentam a ordem jurídica juntamente com a coação. No entanto, cabe destacar que se não houvesse nem um tipo de coesão, a força – coercitiva e coativa – jurídica não bastaria para manter a ordem, e sem o jurídico a coesão estaria comprometida. Logo, a integração num ambiente social deve ser de maneira coesa. Isso não afasta a idéia de conflito, pois esta idéia deve coexistir com a do consenso; o consenso dará a estabilidade necessária para o convívio e o conflito será o impulso para o progresso civilizacional. Dessa forma, há um paradoxo aparente entre esses dois paradigmas, mas a ontologia humano-social comporta esta coexistência, uma adjetiva a outra.

O problema focaliza-se no exacerbamento do consenso ou do conflito. Quando o primeiro se sobrepõe, a sociedade estagna-se; quando o conflito destaca-se há um descontrole. Como de regra, o equilíbrio é o melhor estado, nem a estagnação e nem o descontrole são benéficos. O vivenciado na atualidade é um descontrole, mas que poderá ser controlável por medidas certas e corretas aplicações.

Neste cenário, o Direito, principalmente o Penal, cumpre um papel estratégico. Destarte, no segundo capítulo aborda-se a operacionalidade do Direito (Penal). É mister este tópico para focalizar a atuação, como poder institucionalizado, – penal – na sociedade e a contribuição que esta esfera cultural cumpre na realidade hodierna.

O papel estratégico do Direito Penal deve-se ao seu âmbito prático, pois ele é o último (ultima ratio) mecanismo estatal a entrar em ação para dirimir o conflito; além do mais, o Penal regula os conflitos que envolvem valores, considerados primaciais para o social. Logo, ele defronta-se com as mazelas sociais, tentando resolvê-las ou aplicar, exemplarmente, sanções bruscas para manter a ordem. Deveria ser o Direito Penal o último caminho que o Estado deveria procurar para ordenar seus jurisdicionados, mas, no entanto, como adiante se verá, constitui-se no (ou num dos) primeiro(s) instrumento(s) ordenatório-coativo. Com esta perspectiva o segundo capítulo é desenvolvido. Busca-se uma visão do modelo jurídico usado na contemporaneidade e desenfronhar a atuação penalística, arraigada por uma ideologia econômica e tecnológica. [05]

Ao percorrer este caminho, defrontar-se-á com o terceiro capítulo que procura a junção do individualismo (competitivo) a uma visão do Direito Penal. Na intenção de destacar de uma das origens – ou focos de incentivo – da violência, buscar-se-á o Penal como um dos fatores contributivos dos conflitos, ou seja, o Penal está agindo de forma inversa ao seu escopo. Melhor dizendo, a função Penal está invertida, eis que acredita-se que a máxima repressão é a forma mais eficiente de apaziguar os ânimos. Seguindo-se essa política enganosa, estar-se-ia em erro pela falta de visão das conseqüências destrutivas do bem viver em comunidade. Com efeito uma marca do sistema penal no currículo de alguém é, sem dúvida, uma mácula na sua relação com o mundo (os outros); ainda, a experiência de passar pelas malhas do sistema não é irrelevante, ou seja, influenciará seu psíquico. Nesse caso, penal, a violência só serve para tornar ainda mais aguda a conjuntura problemática do sistema.

Será que o Direito Penal é um instrumento que age imediatamente nos conflitos sociais relevantes, que envolvem valores estimados? Ou poderia ser, se mudasse de postura, um mecanismo de conversão de dinâmicas competitivas [06]-individualistas para dinâmicas cooperativistas, de ajuda mútua? Essas interrogações são pertinentes no momento em que se admitir que só o Penal não basta, por si só; é preciso reconstruir, também, as bases mais profundas da sociedade. Por isso, a divisão em sociedade de constituição simples (solidariedade mecânica) e de constituição complexa (solidariedade orgânica), para a discussão destas dinâmicas sociais. E, por conseqüência, diferenciar a competitividade da cooperatividade. A complexidade de um assunto como este é enorme para o curto tempo-espaço. Por óbvio que as respostas a todos os anseios que se tem sobre a violência Humana não se baseiam, somente, no individualismo-competitivo. Mas o repensar do comportamento Humano, e jurídico, é fundamento para o progresso civilizacional.

Abre-se o seguinte parêntese: este trabalho parte do princípio da inerência da violência no ambiente social, ou seja, a violência é natural no que tange às relações humanas; no entanto, o que se ressalta é justamente a contribuição do individualismo, potencializado pela competição, no acirramento do conflito. Fecha-se parêntese.


1. Facetas da Sociedade: O Homem Como Ser Social

A percepção da influência que o individualismo causa nas ações do homem social é latente quando comparamos os fenômenos de integração no decorrer de um período histórico longo. O comportamento, primeiramente interpessoal e após interindividual, em relação à conduta associativa, demonstra dinâmicas que passaram da cooperação à competição. Dessa forma, o liame entre os indivíduos constitui-se na competição e no raciocínio binário – inimigo ou amigo, bom ou mau. Ocorre, com isto, o afastamento do eu em relação outro e ainda causa a estranheza, ou seja, o não reconhecimento do outro e, por conseqüência, a intolerância. Essas considerações serão norteadoras deste trabalho. A mudança de formatação do ambiente social e do jurídico penal poderá responder aos fortes apelos sociais de humanização dos aparelhos de Estado.

Destarte, a cosmovisão a ser abordada tem seu azo na contemporaneidade [07], eis que a questão da violência num dos seus diversos aspectos causadores, construída por um corte transversal da história. Ou seja, tratar-se-á da pessoa tribal (sociedades de constituição simples) e passar-se-á para a sociedade de constituição complexa. O corte histórico ocorre é em conseqüência do fôlego do trabalho, já que a passagem do enfoque de pessoa para indivíduo apresenta sua transição nos movimentos de secularização e na racionalização.

O encaixe do Homem e sua cultura nestes ambientes societários – bem distintos – proporciona uma cosmovisão temporalmente fragmentada; no entanto, que auxilia no entendimento e precisão do enfoque tangenciador do individualismo e violência no intuito de destacá-los robustecendo a ênfase à qual o trabalho pretende se ater.

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1.1 O homem na sociedade de constituição simples

O Ser Humano é muito distinto dos demais animais, diferenciando-se por portar uma racionalidade e por ser dotado de uma linguagem articulada. Outro aspecto intrínseco ao Homem, mas que encontramos em algumas outras classes de seres vivos, [08] é a necessidade de pertencer a um meio social, ou seja, conviver com os seus semelhantes, numa sociedade. [09]

A solidão, o isolamento de seus pares, torna o homem vulnerável inviabilizando a, em longo prazo, sobrevivência. A própria subsistência da espécie humana necessita de um contato interpessoal, haja vista a relação sexual entre o homem e a mulher. Ainda, o recém-nascido sem o apoio de, pelo menos um ser humano adulto, inviabilizará a criança. A partir daí, marca-se a importância das relações sociais na vida humana, conforme assinala Ortega y Gasset (1973):

Isso significa que a aparição do Outro é um fato que fica sempre como nas costas da nossa vida, porque, quando nos surpreendemos pela primeira vez vivendo, já nos achamos, não somente com os outros e no meio dos outros, mas habituados a eles. Isso nos leva a formular este primeiro teorema social: o homem está a natividade aberto ao outro que não é ele, ao ser estranho; ou, com outras palavras: antes de que cada um de nós percebesse a si mesmo, já havia tido a experiência básica de que existe aqueles que não são ‘eu’, os Outros; isto é, o Homem ao estar a natividade aberto ao outro, ao alter que não é ele, é a natividade, queira ou não, goste ou não goste, altruísta. É mister, porém, entender essa palavra e toda essa sentença sem acrescentar-lhes o que nelas está dito. Quando se afirma que o homem está a natividade e, portanto, sempre aberto ao Outro, a saber, disposto no seu fazer, a contar com o Outro, enquanto estranho e diferente dele, não se determina se está aberto favorável ou desfavoravelmente. Trata-se de algo prévio ao bom ou mau talante em relação ao outro. O roubar ou assassinar o outro implica estar previamente aberto a ele, não mais nem menos do que para beijá-lo ou por ele sacrificar-se. [10]

Desde os primórdios dos grupos humanos, o homem viveu em sociedade, ou seja, agregado aos seus pares; embora, no entanto, a solidariedade, a coesão grupal fossem, por vezes, mais fracas ou/e mais fortes, conforme a situação vivida pelo coletivo. Isso decorre desde a sociedade nômade, na qual todo o grupo se deslocava pelos campos desérticos à procura de um lugar que suprisse sua necessidade de alimentação. Após algum tempo, quando determinado local apresentava escassez de alimentos, o grupo migrava à procura de outra paragem. Note-se, que, geralmente, esses grupos eram guiados por algum líder, que organizava a formação da sociedade e determinava o momento de começar nova peregrinação em busca de alimentos. [11] Quando o homem percebeu que poderia, fixo em determinado local, produzir seu alimento, começou a estabelecer-se em comunidades fixas, ocupando certo espaço. A partir de então não havia a necessidade de deslocamento em busca de alimento, conforme destaca Herder (1995):

No Egipto não havia pastagens nem pastoreio. Perdeu-se pois o espírito patriarcal que reinava nas tendas dos primitivos nómades. Mas havia, quase com a mesma facilidade, a possibilidade de uma riquíssima vida agrícola, proporcionada pelas lamas do Nilo e fertilizada pelas suas águas. E assim se transformou o mundo pastoril – e com ele os respectivos costumes, inclinações e conhecimentos – num território de agricultores. Extinguiu-se o nomadismo e surgiram as habitações fixas e a propriedade fundiária. Foi preciso medir as terras, determinar o que pertencia a cada um, proteger os bens de cada um. Passou portanto a ser também possível encontrar cada um junto dos bens que lhe pertenciam. E passou então haver segurança do território, administração da justiça, ordem, polícia, tudo o que nunca teria sido possível na vida nómada do Oriente. Surgiu assim um novo mundo. [12]

Da constatação das conseqüências da produção do seu alimento, começa a surgir o excedente e, por conseqüência, o comércio vem à tona.

Além dos nômades, havia outras sociedades com suas organizações sociais de constituição simples, que se mantinham coesas, como tribo, clã, famílias, etc. [13]. Cada indivíduo, detinha, perante o grupo, uma função. A junção de todos exercendo suas funções possibilitava a manutenção do grupo. A cooperação de cada um no meio social era direcionada para o bem da totalidade e sua manutenção, pois a necessidade de manter o organismo social vivo garantia-lhes sua própria sobrevivência. Isto porque essas organizações eram restritas, ou seja, pequenas no seu tamanho, tendo a premência de uma maior solidificação da solidariedade mecânica [14], em todos os sentidos, para a não extinção. É importante ressaltar que nestes grupos também havia "chefes", líderes que organizavam e coordenavam o funcionamento da tribo. Sua dominação, de regra, advinha de alguma qualidade que o grupo reconhecia nele. Não advinha do Direito, embora houvesse regras, mas de costumes ou crenças. Conforme Weber, essa dominação era exercida através da tradição ou do carisma do líder. [15] Cohn (1997) aborda da seguinte maneira:

Dominação tradicional em virtude da crença na santidade das ordenações e dos poderes senhoriais de há muito existentes. Seu tipo puro é a dominação patriarcal. A associação dominante é de caráter comunitário. (p.131) Dominação carismática em virtude de devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente: as faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória... A associação dominante é de caráter comunitário na comunidade ou no séqüito. (p. 134-135)

Ao longo da cronologia histórica encontramos sociedades avançadas, aparentadas com o grande Estado de hoje, ou como sociedade de constituição complexa. Os Gregos, [16] os Egípcios [17] e, antes da formação do Estado Moderno, o Império Romano. Nota-se que essas sociedades evoluídas existiram concomitante com sociedades tribais.

O importante, no entanto, é destacar a imprescindível necessidade do homem de viver em grupo e, além do mais, a constatação que no interior das sociedades de constituição simples havia uma diferenciação de funções. Embora, ao tempo, essa divisão de funções, intra-sociedade, tivesse a mesma importância para todos, ou seja, todos se encontravam no mesmo patamar de importância. Era, praticamente, um cooperativismo; apenas havia um(ns) líder(es). É mister ressaltar a valorização do grupo, ou melhor, do nós.

Os alicerces sociais garantiam a vida do indivíduo. Tanto isso era essencial que o direito nas sociedades de constituição simples caracterizava-se por um sistema de complexidade reduzida sem a vigente na contemporaneidade. Além do mais, conforme os costumes da sociedade, o direito era metafísico, manifestava-se através de poderes sobrenaturais; castigos advindo dos deuses. A crendice e o procedimento ritualístico na evocação das forças ocultas, com a palavra certa, com os gestos e todo o ambiente que envolve o sobrenatural. Destaca Luhmann (1983):

Correspondentemente, o procedimento jurídico parece um ritual, como procedimento presente, como presença concreta da afirmação do direito - e não como esclarecimento de um passado em disputa, ou como seleção de um futuro preferido. É óbvio que mesmo no mundo arcaico a ação humana se orienta na dimensão temporal, mas o direito não é institucionalizado tendo em vista o tempo enquanto dimensão. Para tanto aquele segundo plano da observação, a partir do qual poderia ser concluído, no presente, o que o passado foi e que o futuro deverá ser; para tanto falta o processo que poderia esclarecer o passado e assegurar a persistência no futuro das seleções atualmente executadas. Dessa forma também o juramento divino é experimentado não como um prejulgado para casos futuros ou até mesmo como revelação de uma regra geral. E a obrigatoriedade do direito (obligatio) transparece no rompimento de uma expectativa justificada no presente; ela não é concebida como uma obrigação futura. [18]

O plano metafísico, nestas sociedades, era o plano de intervenção social, ou seja, todo os fatos ocorridos intragrupos eram atribuídos a espíritos que se "comunicavam". A partir da "comunicação", havia um esforço de compreensão do malefício ou do benefício do fato. Quando os resultados dos rituais não correspondiam às expectativas, logo se concluía que algo de errado foi realizado no processo ritualístico. O Direito, portanto, nada mais era que uma aplicação da lei divina. A divindade devia, diretamente, punir o transgressor. Ainda neste âmbito, pode-se cogitar de normas gerais que norteavam a aplicação jurídica como a vingança. Esta constituía-se num meio de satisfazer, ou melhor, equilibrar uma situação balanceada de perda e ganho; isto quer dizer, se um grupo por ato de outra(s) pessoa(s) de outro grupo causar algum prejuízo, de qualquer monta, o grupo lesado tem o direito de lesar o causador da lesão e na sua medida.

Nestas sociedades, tínhamos um quadro de integração social entre os indivíduos. Vivia-se e trabalhava-se para a subsistência do grupo como um todo e, de maneira reflexa, o indivíduo acabava preservando a sua vida. Pode-se destacar os ritos de passagem tribais em que se mobilizava toda a tribo e, até mesmo, tribos vizinhas a participarem destas cerimônias, delimitadoras da posição do membro tribal no desenvolvimento da vida e na tribo. O indivíduo não tinha a total consciência de que sua sobrevivência dependia da manutenção do grupo e que a manutenção do grupo dependia de sua cooperação, mas, sim, que ele deveria trabalhar por sua tribo, ainda que aquela era a sua vida. Dava-se maior importância ao coletivo do que ao indivíduo. A dinâmica preponderante era a cooperativa – recíproca ajuda – ou seja, o outro não era negado em detrimento do eu, mas fundia-se, formando um sólido nós. O bem do outro era o bem do eu e, por conseqüência, do nós.

Essa visão fundamenta e justifica as bases sólidas e unificadoras da cultura de pequenos grupos (comparando com o hodiernamente apresentado). A dicotomia do eu do nós não era vislumbrada; a essência consistia no bem comum, no bem do outro e do eu, o nós. Esse aspecto significa um mútuo respeito pela função exercida pelo outro na tribo. Embora na esfera das sociedades de constituição simples se verificasse uma uniformidade de costumes, não havia pluralidade cultural.

Em suma, embora hodiernamente ainda hajam sociedades tribais espalhadas pelo globo, estas não se fazem representar devidamente, com seus costumes, na sociedade contemporânea. Estas tribos sofrem um processo degenerativo da própria cultura, logo porque os valores e bens contemporâneos estão penetrando no espaço tribal o que, por sua vez, está a absorver os novos e dissolver os antigos costumes. Um exemplo claro a ser citado é em relação aos hábitos alimentares e às doenças que trazem. Com a absorção dos costumes endógenos, as tribos acabam assimilando a habitualidade exterior, que traz consigo os benefícios e os malefícios, em regra desproporcionalmente pendendo para os malefícios, que carregam em si a desestabilização social. [19]

É importante ressaltar que a solidariedade cooperativa não é exclusiva do ambiente tribal, mas rendeu frutos em outras épocas, até mesmo na Idade Média, como por exemplo, as corporações; os estratos sociais, neste tempo, não permitiam mudanças, ou seja, as pessoas não podiam mudar de classe social. A divinização da mundaneidade, com suas regras, vedava a fuga do Homem ao seu próprio destino divinamente traçado e naturalmente imposto. O filho de artesão, artesão será e aprenderá com o pai ou com quem o cria os segredos do ofício. Da mesma forma acontecia com o nobre, por essa razão as famílias permaneceram com status de nobreza durante séculos até os movimentos de extinção das regalias nobiliárquicas. Portanto, o estrato pessoal era definido no momento do nascimento. Forma-se no interior das classes fortes laços unindo uns aos outros, geralmente estimulados pela opressão e o reconhecimento de classe. Como tudo girava em torno da Divindade, e esta é um ente metafísico que se expressava pela condição mundanal, inferia-se, desde logo, como um consolo condicionante, da situação vivenciada. A tentativa de fuga desta imposição tornava-se motivo para castigos divinos, que temporalmente eram ameaçados de durarem a eternidade. A Idade Média marco de épocas de transcendentalidade da matéria, acabou por nos legar muitos instrumentos, mas tem uma função ainda mais relevante; com o conhecimento de sua história é possível se precaver de futuras repetições, de formas diferentes, de essências recuperadas de fundamentalismos conhecidos.

Nesta época, a economia começa a influenciar o comportamento humano e a ditar o caminho a ser percorrido. O comércio dá seus primeiros passos em direção ao mercantilismo; o fortalecimento da importação e exportação de bens comerciáveis começa a ser traçado e a economia de muitos países liga-se a este tipo de estruturação. Os descobrimentos são conseqüências, ou precipitados – variará conforme a teoria histórica adotada –, pela ânsia de domínio que era produzida pelo furor da comercialização. As cidades ricas e desenvolvidas da época são, justamente, aquelas que têm suas portas voltadas para o mar, meio de locomoção pouco oneroso, rápido e seguro. Pelo meio terrestre havia pedágios entre feudos e o risco de ser alvo de algum tipo de violência, como o roubo e ter as mercadorias perdidas. Em decorrência disso a disputa agigantava-se, também no mar. Ressalta-se o conflito entre Portugal e Holanda em que um navio holandês interceptou e afundou em alto mar uma embarcação portuguesa carregada de especiarias Orientais; desse conflito, originaram-se célebres livros que tratavam do Direito de navegação e, também, do confronto jurídico entre Grócio e Serafim de Freitas. [20]

Vislumbram-se, na Idade Média, embora envolta no misticismo divino, traços competitivos de potencialidade enorme, pois não havia especificidades de normas jurídicas, mas o Direito romano, canônico (para alguns assuntos) e opiniões de Doutores, que por certo penderiam, ad argumentum, para seus interesses, se estes não destoassem de uma realidade assentada no Direito vigente, como se verá em capítulo próximo.

A partir do começo da racionalização, de percepção da realidade de um mundo desvinculado com a Divina interferência determinista, ao antropocentrismo começa a desenrrolar-se o processo de passagem do foco da pessoa para o indivíduo, dinâmica de individualização. O processo civilizador trará o Homem até a contemporaneidade como indivíduo e não mais como pessoa. O processo secularizador tratará de configurar a nova realidade de ruptura do presente surgido com o passado superado e o futuro racionalizado.

1.2 O homem na sociedade de constituição complexa

A partir do momento em que começou a dilatação do círculo social [21] (descaracterização com o aumento do clã, tribo etc.), até o advento do Estado Moderno, embora o ser humano dependesse do grupo, vivia em constante disputa de poder com seus pares intergrupais. Esta disputa concentrava-se diretamente na lei do mais forte, ou seja, na violência física. O vencedor era aquele que, pela sua força e astúcia, acabava derrotando seu oponente, matando-o ou escravizando-o, quando não o expulsava de determinado local. Por esse meio, conquistava-se o bem cobiçado da época, o espaço territorial. O território era de vital importância, pois neste espaço se produziria o alimento necessário, no primeiro momento, para auto-sustentar-se e num segundo momento para subsistir e comercializar.

Foi, então, após séculos, formando-se feudos que se constituíam pelo trabalho de vassalos e de pessoas que se vinculavam ao senhor feudal, trocando seu trabalho pela segurança e um pedaço de terra para alimentar-se. Ainda, os vassalos formavam, além de produzir para o senhor, o exército do feudo, que detinha a função de defender e de conquistar outros territórios. [22]

Na generalidade, os senhores de terras eram guerreiros bem sucedidos, vistos pelo seu grupo como os mais fortes e, de vez em quando, "invencíveis". Coordenam, pelo seu poder, a administração do território e mantêm os seus vassalos coesos. No entanto, conforme as conquistas do exército (do feudo), o território ganhava em extensão, tornando o domínio do Senhor difícil. Assim, como incentivo e para facilitar o controle do dono da casa grande, este divide seu vasto território em regiões, delegando seu controle aos melhores soldados e a seus próprios familiares. [23] Deu-se a fragmentação do território em feudos.

Outrossim, com a dinâmica de conquista por mais espaço territorial foram formando-se, séculos mais tarde, vastos territórios. Para o controle e gestão do Império, o soberano criava e distribuía cargos administrativos (a burocratização) criando-se, assim, a divisão do trabalho. Neste estágio, o Senhor Feudal já constitui-se em Rei. O feudo mais "poderoso" (em capital monetário e força bélica), constitui-se em Estado, advindo, desta forma, o Estado Moderno. [24]

O Estado Moderno, mesmo no seu início, concentrado na figura do Rei, caracteriza-se pela divisão do trabalho e pela monopolização da tributação e força física (exército), Direito. Da divisão do trabalho, surge uma nova maneira de relacionamento entre os indivíduos. Passa-se da disputa de poder por meio da violência para a disputa de poder pelo viés da competência, conhecimento (inteligência). O autocontrole [25] tende a ser exigido das pessoas, e torna-se uma condição sine qua non para o convívio social. A violência física torna-se uma conduta anti-social. [26] Com isso, o relacionamento começa a ser considerado civilizado e a diferenciação em classes dá-se de maneira, principalmente, econômica, mas, também, comportamental. [27] A moral, nesse estágio, é fator de forte influência.

É preciso explicar essas determinações da moral. A essência da consciência moral é aprovar. Esse sentimento que nos faz louvar ou repreender, essa dor e esse prazer que determinam o vício e a virtude, têm uma natureza original: são produzidos pela consideração de um caráter em geral, sem referência ao nosso interesse particular. Mas, o que é que pode fazer-nos abandonar sem inferência um ponto de vista que nos é próprio e, ‘a uma simples inspeção’, fazer-nos considerar um caráter em geral ou, dito de outra maneira, fazer-nos apreendê-lo e vivê-lo como sendo útil a outrem ou à própria pessoa, agradável a outrem ou à própria pessoa? A resposta de Hume é simples: é a simpatia. [28]

Embora, nesta fase, as pessoas co-habitem cidades, demonstrando uma tolerância no convívio com seus semelhantes de localidades diversas, com costumes diversos, profissões distintas e, ainda, demonstrando maior interdependência dos seus pares, acabam acirrando suas diferenças. Melhor dizendo, com as cidades e a divisão do trabalho, cada qual exerce uma função; no entanto, não é apenas um a exercer uma única tarefa, mas vários a exercer a mesma tarefa. O grupo, assim, não depende mais daquele indivíduo, que trabalhava em prol do bem coletivo, mas de indivíduos que laboram pelo seu próprio bem. A solidariedade do grupo passa para a preocupação consigo (o eu) mesmo e no máximo com sua família, que é, hodiernamente, considerada uma formação reduzida, nuclear, distinta do passado.

As alterações sofridas pelo Estado, através da Revolução Francesa, [29] logo após com a Revolução Industrial (marcos históricos), ou seja, sua limitação de poder e modificação em suas estruturas, principalmente na seara da economia, iniciaram as transformações das relações entre os sujeitos que passaram de um cooperativismo tribal para o individualismo-competitivo feroz da "aldeia mundial" globalizada [30]. Reforçado pela revolução técno-científica.

Destarte, a coesão do corpo social é traçada pela competição intragrupo. A base econômica constitui-se, desta forma, no parâmetro entre o bem e mal sucedidos. Daí, também, decorre a divisão de classes e a exclusão social. Dá-se num ambiente próximo fisicamente, maior distanciamento entre as pessoas, no aspecto da solidariedade. Com isso, temos um individualismo, no qual o indivíduo tem apenas compromisso consigo, deixando de lado os seus pares e apenas se aproximará, na maior parte das vezes, de outro indivíduo com a intenção de beneficiar-se através da competição. Contrapõe-se a essa situação com o passado – sociedades de constituição simples – de solidariedade (a preponderância do nós) pela dinâmica de cooperação das pessoas nas sociedades de constituição simples, tribos, clãs...

A Revolução Francesa [31] implantou uma nova ordem, ou seja, retira-se a obrigação das mãos de um homem (Rei) transferindo o controle para as mãos de todos cidadãos. No entanto, isso é somente aparência. O controle do poder fica nas mãos de uma elite econômica-política-moral que detém, por meio de uma dita democracia, o aparelho estatal, governando os jurisdicionados. Destaca Elias (1993) o seguinte:

Aumentando a divisão de funções, e com ela a interdependência mútua de todas, esse tipo de mudança no equilíbrio de poder não se expressou mais pela tendência de dispensar oportunidades monopolizadas entre numerosos indivíduos, mas pela tendência de controlar os centros monopolistas e as oportunidades que eles distribuíam de maneira diferente. A primeira grande fase de transição desse tipo, a luta das classes burguesas pelo controle dos velhos centros monopolistas, controlados pelos reis e, em parte, pela aristocracia – como propriedade hereditária – os primeiros monopólios completos dos tempos modernos – mostram isso com grande clareza. Por muitas razões, é mais complexo em nossos dias o modelo de classes em ascensão. Uma das razões é que hoje se tornou necessário lutar não só pelos velhos centros monopolistas de tributação e violência física, ou apenas pelos monopólios econômicos recentes ainda em processo de formação, mas pelo controle simultâneo de ambos. O tipo elementar de forças em ação neste particular, porém, é muito simples, mesmo neste caso: toda a oportunidade de criação de monopólios limitada pela hereditariedade a certas famílias gera tensões e desproporções específicas na sociedade interessada. Tensões desse tipo tendem para uma mudança de relações e, por isso, de instituições em todas as sociedades, embora, quando a diferenciação é baixa e, especialmente, quando a classe superior consiste de guerreiros, elas freqüentemente permaneçam sem solução. Sociedades com uma divisão de funções altamente desenvolvida são muito mais sensíveis às desproporções e disfunções ocasionados por essas tensões, cujos efeitos são permanentemente sentidos em todo a sociedade. Embora, nestas sociedades, possa haver mais de uma maneira pelas quais as tensões podem ser conciliadas e removidas, a direção a que tendem para se transcenderem é predeterminada pelo modo como vieram a surgir, por sua gênese. As tensões, desproporções e disfunções do controle monopolistas de oportunidades, no interesse de alguns, só podem ser resolvidos pela destruição desse controle. O que não se pode saber de antemão, porém, é quanto tempo vai durar a luta que se seguirá. [32]

A classe dominante, através de um recurso de retórica e da formação e da endoculturação [33] dos cidadãos, consegue difundir na consciência de todos, consciente ou inconscientemente, a pseudo-responsabilidade da sociedade pela conduta do Estado, por uma dita democracia. Portanto, a direção do Estado concentra-se nas mãos de cada um, desde já ficam justificados os sucessos e fracassos do Estado, que encontra no conceito abstrato de sociedade a responsabilidade pelas políticas infrutíferas.

Com a passagem da pseudo-responsabilidade do destino do Estado aos indivíduos, como sociedade, exacerba-se o individualismo e a economia de mercado fortalece a competição entre os indivíduos sedentos para usufruir a máxima liberdade que lhes cabe. Dessa forma, acham no outro um limite negativo, pois se a minha liberdade termina onde a do outro começa, se coloca nesta senda uma limitação à liberdade, justamente em detrimento do outro; logo o outro torna-se um obstáculo à liberdade e usa este limite para exercer a sua; a recíproca é verdadeira. Essa questão pode ser interpretada, desta forma, devido ao individualismo e, ainda, a hermenêutica exercida neste momento é restritiva, no entanto, a interpretação de uma sociedade solidária/cooperativa consideraria, em tese, à liberdade do outro como uma extensão da liberdade restringida. A interpretação, ao contrário do ambiente competitivo, daria um sentido de positividade à liberdade do outro, uma extensão, ou melhor, uma possibilidade de exercer a liberdade numa esfera, de maneira indireta, sem prejudicar a ação do semelhante.

No entanto, o Estado, hodiernamente, apenas garante o mínimo aos seus súditos, que acabam competindo entre si, num jogo de poder, em que os "melhores" conseguirão os louros do sucesso, o respeito e admiração dos demais. Os "fracassados", e só serão "fracassados", pois não tiveram competência para o alcance do sucesso, serão excluídos do convívio dos bem sucedidos da sociedade, sendo isolados e estigmatizados (rotulados).

No tocante à esfera econômica, houve a reestruturação do Estado, o que favoreceu a burguesia, que reivindicava melhores condições para seu desenvolvimento, advindo assim o liberalismo. O caminho foi aberto para a burguesia da época imprimir seus objetivos mercadológicos; o sistema do Estado liberal-econômico proporciona uma acirrada competição entre os indivíduos, deixando que um se sobreponha aos outros conforme as próprias "competências". Era um sistema desigual, pois pressupunha a igualdade material de cada um sob a égide da liberdade e igualdade formais que todos gozavam. Em meio à fugacidade do sistema econômico, houve em 1929, a quebra da bolsa de valores, advindo a grande depressão. [34] Com as crises e com o crescimento da miséria, o socialismo [35] constitui-se em paradoxo-paradigmático ameaçador do liberalismo-capitalista. Aquele ao contrário do liberalismo, procurava incluir os indivíduos no ambiente social, favorecendo o desenvolvimento igualitário, material, de todos.

Tendo como ameaça o socialismo, os liberais começaram a sofrer pressões sociais, revoltas, greves, protestos para uma melhor distribuição de oportunidades a todos. Acolhendo as exigências das classes trabalhadoras, que, em épocas passadas, não detinham os direitos de segunda dimensão (os sociais). Surge, desta forma, o Estado de Bem-Estar Social – "Sistema econômico baseado na livre-empresa, mas com acentuada participação do Estado na promoção de benefícios sociais. Seu objetivo é proporcionar ao conjunto dos cidadãos padrões de vida mínimos, desenvolver a produção de bens e serviços sociais, controlar o ciclo econômico e ajustar o total da produção, considerando os custos e as rendas sociais" [36] – que procurava auxiliar os pobres (acalmando-os), ao montar mecanismos de assistência social. Doravante, seu intuito principal era afastar a ameaça da dominação do sistema socialista.

Com a dissolução da União Soviética, uma das poucas nações – podemos dizer assim – que durante a depressão cresceu economicamente, tem fim a ameaça socialista. A partir deste fato reinicia uma reestruturação na política estatal-econômica, surgindo o neoliberalismo, juntamente com a globalização (e seu mercado de capitais, que relativizou a certeza do tempo e espaço na auferição de capital). Inicia então, um forte controle de supostas forças que prejudicarão o sistema e o impedimento de liberar as conspirações que, da mesma forma, auxiliarão o sistema na consecução dos seus objetivos.

De fato, agora o grupo é apenas uma forma de ascensão ou referência da localização de classe. A sobrevivência não mais depende do aspecto coletivo, mas passa para as próprias forças econômicas individuais no ambiente em viés de globalização. [37] Prepondera o aspecto individualista do eu sobre o coletivo do nós. Por meio desta força-econômica compra-se os meios essenciais à vida. No entanto, esses meios essenciais à vida serão fornecidos por outros humanos. Dessa forma, o contato com seu semelhante não cessa por completo. Logo, a radicalização do paradoxo cresce a cada momento.

No mais, é imprescindível destacar as atuais conjunturas pelas quais passa a sociedade, já denominada de Sociedade de Risco. Não por mero deleite filosófico, mas por questões condizentes às dinâmicas de que estamos tratando. Por isso, apenas se pincelará alguns aspectos da insegurança hodiernamente difundida, devido à proposta de atualidade enfocada no trabalho.

De acordo com a digressão acima realizada, a sociedade sempre limitou-se a questões espaciais-econômicas que atualmente viraram temporais-econômicas. Abro o seguinte parêntese: a questão espaço-tempo tem significado histórico de suma importância, então giza-se: no passado, por exemplo, na época das navegações, o espaço era o fator preponderante, curial era superá-lo não importando o tempo para isso; após o invento de tipos de impulsão (vapor) o espaço e o tempo passaram a ser equivalentes em sua importância, a necessidade era percorrer o certo espaço em determinado tempo, dentro de determinado estimativa; no entanto, contemporaneamente, o tempo sobrepõe-se ao espaço, pela premência de utilizar um reduzido tempo para percorrer "espaço nenhum", ou seja, não há mais espaço no mundo "virtualizado". A quebra deste binômio, considerado indissociável, é patente e recorrente no mundo econômico, até mesmo no criminal. Fecha-se o parêntese.

O Planeta Terra virou uma grande aldeia – devido aos meios de comunicação-transporte que possibilitam, a um indivíduo "estar em vários locais" ao mesmo tempo ou em curto período de tempo e, ainda, pela globalização das conseqüências maléficas de tragédias ambientais... Denota-se daí a quebra de barreiras espaciais, ou seja, através da interconexão entre tudo e todos é possível, simultaneamente, interferir, influenciar o outro lado do globo. Com a grande expansão do conhecimento, da técnica, e da ciência, conquistou-se avanços, velozmente, relevantes e de singularidade histórica, em todas as áreas. Vem-se progredindo de forma ascendente de maneira a beneficiar a humanidade. O inverso é verdadeiro. O progredir acarreta conseqüências nefastas. Se por um lado o benefício é relevante, o malefício, com os novos conhecimentos, é proporcionalmente igual. O perigo representado por certos conhecimentos é a demonstração da atual adjetivação da sociedade de constituição complexa, de risco. [38]

Infere-se, desde já, a condição de insegurança em que a coletividade está imersa. Não há fronteiras para os malefícios, haja vista as conseqüências de tragédias ambientais e de crimes econômicos – se assim pode-se, desde já, antecipar algumas considerações de tópico subseqüente. Estas transpassam as fronteiras políticas, econômicas e temporais; melhor dizendo, não há como prever e impedir resultados dentro de limites desejados pelo Homem. O desconhecido paira no ar social. Nem mesmo os detentores do conhecimento conseguem predizer as implicações de seus labores. Descobre-se agora a falibilidade da Ciência, pois nem tudo para ela é possível, muito menos as soluções dos problemas criados. [39] Para legitimarem seus "inventos" e ganhos econômicos, sem alarme social, divulgam (ou omitem) a parcialidade de resultados ou mesmo apresentam resultados falsos de pesquisas. Por vezes, encontram guarida do Estado. No entanto, ao mesmo em que o risco paira sobre a sociedade, a mentira e a aparência também estão presentes.

A promessa da modernidade da segurança e ordem está se esvaindo (ou se esvaiu). Não se pode mais, pelo menos na contemporaneidade, acreditar na segurança, no risco controlado; o descontrole no domínio do meio ambiente, no mercado econômico, na política, na tecno-ciência, na possibilidade de uma guerra nuclear... As ocorrências de conseqüências maléficas nunca foram afastar da sociedade, no entanto, nem tão radicalizada e globalizada quando na atualidade. Melhor dizendo, ninguém, no globo terrestre está imune de sofrer distúrbios provocados por fatores da globalização.

Não se quer atribuir ao Homem uma atitude de profilaxia e nem de sentimento de desespero. Ao contrário, a tendência é de buscar soluções. Para tal objetivo é saliente a procura de resposta no Direito, pois este sempre foi o "porto seguro" da sociedade; eis que é tido como paradigma da ordem e segurança. No entanto, é perceptível aos indivíduos de "boa vontade" a crise pela qual está a passar o Direito.

Não há dimensões paralelas entre o Direito e a sociedade; é ilusão não associar o Direito às dinâmicas sociais, já que este é produzido (criado) pela cultura humana. A neutralidade axiológica não é mais o estandarte do jurídico, é necessário assumir uma posição de aceitação de influências de valores. Com este mecanismo pode-se relevar a autonomia do Direito no aspecto de escolha, partindo-se da seleção em direção à intervenção na realidade social; o Direito escolhe seus valores e assume o seu papel institucional e institucionalizador.

O risco é uma condição criada pelo ser humano, [40] dessa forma, deve ele olhar para si e encontrar, em si, as causas dos problemas e as suas soluções. Para a resolução – ou redução – dos riscos, o Homem deve se valer dos institutos por ele criados, seja o Direito, a Economia, o Estado, a Política, etc. Atribuir a total responsabilidade dos problemas a estas – ou a uma das – esferas da cultura é afastar a responsabilidade do eu, dos outros e do nós. Tem-se, neste desígnio, a claudicante estruturação do ser social devido ao fato da convivência com os demais exigir a responsabilização do indivíduo.

Em suma, a sociedade de constituição complexa oferece um ambiente de risco globalizado, sem fronteiras, sem previsões quanto ao seu resultado. O caminho, nesta tortuosa situação, se perfaz com atitude reflexiva da própria condição humana. A fuga dos problemas atribuindo ao outro (seja concreto ou abstrato) não é mais do que fugir da sua própria consciência. É imanente ao civilitas a responsabilidade do conviver, da alteridade. Ensimesmar-se é um atributo Humano, mas exteriorizar-se, expressar a própria vontade, também; se a primeira demonstra uma atitude reflexiva, racional, expressar, agir, de acordo com esta condição denota, ao exterior, a socialização racional. A sociedade vive o afloramento das extremidades, ou seja o extremismo de todos os seus atos e fatos conectados numa rede de causas e conseqüências regidas pelo princípio da causalidade, não mais metafísico, racional-físico, que é disparado pela mão humana e calculadas pela razão, mas impulsionadas, volitivamente, pelo interesse material e funcionalizadas pela amoralidade valorativa.

Sociedade do risco, também, dos extremos, inevitavelmente, influência o Direito e, principalmente, no ramo Penal. A última ratio se torna, hodiernamente, equivocadamente, a única solutio, ou seja, o apelo ao Direito Penal é imediato e considerado como único meio possível de assegurar a estabilidade, afastando o risco. O ilusionismo criado pela massificação da informação apelante ao fortalecimento da repressão, o apoio do ius puniendi, pelo do viés da opressão penal, [41] pensa solucionar os problemas de raiz ontologicamente sócio-individual.

Sobre o autor
Guilherme Camargo Massaú

especialista em Ciências Criminais pela PUC/RS, em Pelotas (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASSAÚ, Guilherme Camargo. Individualismo como incentivador da violência e o papel do Direito Penal nesse contexto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 796, 7 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7249. Acesso em: 23 dez. 2024.

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