6. A teoria da tipicidade conglobante e o princípio da insignificância na visão dos Tribunais Superiores
Modernamente, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm se valido da teoria da tipicidade conglobante para fundamentar as suas decisões, ainda que, na maioria das vezes, como forma de aferição da insignificância da conduta do agente.
Com efeito, as decisões do Supremo Tribunal Federal não adentram no mérito dos efeitos correcionais proporcionados pela teoria da tipicidade conglobante na tipicidade legal ou de questões envolvendo a antinormatividade, porém, a Corte Suprema cumpre com a tarefa de limitar a aplicação do princípio da insignificância a determinados casos, evitando desvirtuar o objetivo que visou o legislador quando da formulação do tipo legal.
Para isso, a jurisprudência iterativa do Supremo Tribunal Federal estipulou quatro critérios para a aplicação do princípio da insignificância: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; c) inexpressividade da lesão jurídica provocada; e d) ausência de periculosidade social da ação; critérios largamente adotados pelo Superior Tribunal de Justiça e pelos demais Tribunais pátrios.
A propósito, colaciona-se parte do voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, no julgamento do HC n° 126273/MG, proferido em 12/05/2015:
(...) Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para se caracterizar hipótese de aplicação do denominado “princípio da insignificância” e, assim, afastar a recriminação penal, é indispensável que a conduta do agente seja marcada por ofensividade mínima ao bem jurídico tutelado, reduzido grau de reprovabilidade, inexpressividade da lesão e nenhuma periculosidade social. Nesse sentido, a aferição da insignificância como requisito negativo da tipicidade envolve um juízo de tipicidade conglobante, muito mais abrangente que a simples expressão do resultado da conduta. Importa investigar o desvalor da ação criminosa em seu sentido amplo, de modo a impedir que, a pretexto da insignificância apenas do resultado material, acabe desvirtuado o objetivo a que visou o legislador quando formulou a tipificação legal. Assim, há de se considerar que “a insignificância só pode surgir à luz da finalidade geral que dá sentido à ordem normativa” (Zaffaroni), levando em conta também que o próprio legislador já considerou hipóteses de irrelevância penal, por ele erigidas, não para excluir a tipicidade, mas para mitigar a pena ou a persecução penal.
Portanto, para o Supremo Tribunal Federal, não basta a mera aferição da insignificância da lesão produzida pelo comportamento do agente, devendo, também, haver a averiguação da ação em seu sentido social para que, assim, seja afastada a recriminação penal, de modo que, ausentes os requisitos elencados pelo Pretório Excelso, não haverá incidência do princípio da insignificância no caso concreto.
Em contrapartida, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da APn nº 683/AP, reconheceu a possibilidade de aplicação do estrito cumprimento do dever legal como causa de atipicidade conglobante, e não como causa de exclusão da ilicitude.
No caso, de acordo com o relatório do acórdão, uma juíza de Direito do Estado do Amapá teria ajuizado queixa-crime, aduzindo, em suma, que havia se candidatado, através da Resolução n° 106/2010 do Conselho Nacional de Justiça, ao cargo de desembargadora do Tribunal de Justiça do Amapá, por merecimento, sendo que, durante a sessão pública, um desembargador, encarregado de sua avaliação, teria atentado contra a sua honra durante seu voto, acusando-a de morosa, impontual e desidiosa no exercício de suas funções.
A Ministra Eliana Calmon, ao proferir o seu voto, entendeu que o querelado havia agido em estrito cumprimento do dever legal, uma vez que teria atuado nos termos da Resolução n° 106/2010 do Conselho Nacional de Justiça, restando descaracterizada a tipicidade da ação, como se infere da passagem de seu voto:
O querelado, na sessão pública para promoção por merecimento, proferiu seu voto, de forma aberta e nominal, consoante previsto na referida Resolução, do que se percebe ter o querelado agido em estrita observância do quanto determinado pela referida norma. Cabia a ele fundamentar as razões do seu voto, o que foi feito, sem que se infira, da sua parte, qualquer animus diffamandi.
(...)
Destaque-se, outrossim, o fato de que o querelado agiu no estrito cumprimento do dever legal de fundamentar, pois a Resolução n° 106/2009 determina que seja fundamentada a votação. Nesse sentido, há exclusão da tipicidade conglobante, nos termos do art. 142, III, do Código Penal e do art. 41. da LC n° 35/79 (LOMAN).
Nos termos do julgado em análise, o desembargador querelado estava obrigado, por imposição da Resolução n° 106/2010 do Conselho Nacional de Justiça, a emitir opinião pública fundamentada sobre a candidata, de forma que a ele não poderia ser imputado o crime de difamação, previsto no artigo 139 do Código Penal, diante do mandamento estatal, não configurando, dessa maneira, a antinormatividade no seu agir.
Desta feita, verifica-se que, de forma tímida, a teoria da tipicidade conglobante vem ganhando força na jurisprudência de nossos Tribunais Superiores, seja para estipular novos critérios de aplicação do princípio da insignificância, seja para conceber o estrito cumprimento do dever legal como causa de atipicidade conglobante, o que, por ora, mostra-se razoável, diante da atualidade do tema em debate.
7. Conclusão
Diante do apresentado, vislumbra-se que a teoria da tipicidade conglobante retrata uma nova fórmula hermenêutica das normas penais, com o propósito de corrigir as imperfeições e as incongruências existentes no campo da tipicidade penal, exigindo, para tanto, uma análise mais acurada do ordenamento jurídico por parte do exegeta.
Com efeito, a teoria concebida por Eugenio Raúl Zaffaroni corrige a dimensão de aplicação dos tipos penais através de uma ótica conglobada do sistema normativo, evitando que condutas proibidas pelo tipo penal sejam, ao mesmo tempo, impostas ou fomentadas por outras normas jurídicas.
Para isto, a teoria da tipicidade conglobante exige a conjunção da tipicidade formal, corrigida pela antinormatividade, com a tipicidade material para a configuração da tipicidade penal, afastando-se, dessa forma, ações ordenadas ou incentivadas pelo Estado do bojo do tipo penal.
Destarte, a adoção da teoria da tipicidade conglobante acarreta alterações na atual estrutura da teoria geral do delito, porquanto as causas de justificação de estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito passariam a ser apreciadas no âmbito do fato típico, como causas de atipicidade conglobante, e não mais na esfera da ilicitude.
Isto porque, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito serviriam ao sistema jurídico como ordens (estrito cumprimento do dever legal) ou fomentos (exercício regular de direito), os quais, segundo a teoria em análise, não podem transpor o juízo de tipicidade.
Outrossim, a tipicidade conglobante deve ser subsidiada pelo princípio da insignificância, instrumento de interpretação restritivo do tipo penal, que possui natureza de causa de exclusão da tipicidade material, o qual somente poderá ser estabelecido através da consideração conglobada da norma, limitando a ação do Direito Penal à proteção dos bens jurídicos mais importantes ao convívio em sociedade, retirando da esfera do tipo penal atos que não lesem ou causem perigo de lesão relevante ao bem jurídico tutelado pela norma penal.
No campo jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, ainda que de maneira tímida, vêm utilizando a teoria da tipicidade conglobante como arrimo para a fundamentação de casos envolvendo o princípio da insignificância, bem como para realocar a causa de justificação de estrito cumprimento do dever legal dentre as causas de atipicidade conglobante, tema que, provavelmente, será objeto de análises mais aprofundadas por parte de nossas Cortes Superiores no futuro.
Frente a isto, resta-nos acompanhar o desenvolvimento da teoria da tipicidade conglobante no âmbito de nossa doutrina e jurisprudência, tema que ainda provocará grandes debates no meio jurídico.
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Nota
1 O magistrado não se ocupa com questões insignificantes (Araujo, 2003, p. 30).