SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Democracia Procedimental versus Democracia Constitucional; 3. Fundamentos de um sistema punitivo democrático; 4. Conclusão
RESUMO
:Análise da imposição de limites substanciais à soberania popular (conceito de democracia constitucional) como premissa teórica para identificação dos elementos fundamentais de um sistema punitivo democrático, ou seja, aquelas regras e princípios que não podem ser suprimidos da estrutura do direito penal e processual penal, sob pena de a legitimidade do Estado para proibir, processar e punir dissociar-se do paradigma democrático.
Introdução
Oscar Vilhena Vieira utiliza uma imagem originalmente citada por Jon Elster – a partir da concepção fabulosa de Homero na epopéia "Odisséia" – para definir o papel que a Constituição desempenha num Estado democrático de direito.
Tendo que atravessar o mar em um ponto em que habitavam sereias (seres cujo canto místico enfeitiçava os homens para depois matá-los), Ulisses pediu a seus homens que o amarrassem ao mastro do navio, tapassem seus próprios ouvidos com cera e não obedecessem a nenhuma ordem sua até que as sereias tivessem desaparecido. Desse modo, embora tenha perdido o discernimento, desejando atirar-se ao mar, Ulisses não sucumbiu ao encantamento, o que seria fatídico. "Neste mesmo sentido, as constituições democráticas atuariam como mecanismos de auto-limitação, ou precomprometimento, adotados pela soberania popular para se proteger de suas paixões e fraquezas" [01].
Esse arranjo teórico entre democracia e constituição implica na limitação da soberania popular dos membros de uma coletividade e também de suas futuras gerações. Por conseguinte, enfrenta resistência entre os defensores de uma concepção democrática formal ou procedimental, segundo a qual o sistema democrático de tomada de decisões não pode estar limitado pela substância da decisão, com exceção daquelas decisões que afetem o próprio procedimento democrático de escolha.
No presente trabalho, pretende-se analisar o fundamento da imposição de limites substanciais à soberania popular para estabelecer o conceito de democracia substancial (ou constitucional) como premissa teórica para, a partir daí, identificar que elementos constituem os fundamentos de um sistema punitivo democrático, ou seja, aquelas regras e princípios que não podem ser suprimidos da estrutura do sistema punitivo, sob pena de a legitimidade do Estado para proibir, processar e punir dissociar-se do paradigma democrático.
Democracia Procedimental versus Democracia Constitucional
No que tange à legitimação do direito, a tensão entre as teorias democráticas procedimentais e substanciais reproduz, de certa forma, o embate entre as correntes liberal e comunitária acerca do fundamento de legitimidade do Estado.
Na concepção liberal, os homens são sujeitos de direitos antes mesmo da constituição do Estado. Esses direitos podem ter origem metafísica, racional ou mesmo serem uma construção hipotética, conforme a corrente liberal que se adote. Tais direitos são, portanto, universalizáveis, não estando adstritos à história particular de cada Estado ou grupo social.
Um dos mais recentes teóricos do liberalismo, John Rawls parte de uma premissa lógica hipotética para deduzir um princípio da justiça universal [02], segundo o qual todos têm direito a um mesmo rol de liberdades básicas num esquema em que seja respeitada a liberdade de cada um e que as eventuais desigualdades existentes decorram unicamente do diferente aproveitamento das oportunidades iguais que foram criados para todos.
Seriam tais direitos que assegurariam o respeito de cada um por si mesmo, já que cada indivíduo poderá perseguir sua própria concepção de bem. A garantia para todos dos mesmos direitos é reconhecimento do respeito mútuo entre as pessoas e torna possível o desenvolvimento de uma sociedade comprometida com aquele princípio de justiça. Sem esse respeito recíproco pelos direitos inalienáveis do outro não é possível uma verdadeira convivência democrática.
Ronald Dworkin, outro festejado teórico liberal, aponta tais direitos indisponíveis como sendo resultado da escolha moral da comunidade. As pessoas aceitam ser governadas por princípios comuns (formando uma comunidade de princípios) e não por regras forjadas num compromisso político. Logo, as decisões do Estado e da própria comunidade devem corresponder aos princípios éticos que orientam o direito, e que estão ligadas à noção de direitos individuais.
Nesse modelo, a indisponibilidade dos direitos individuais morais não poderá ser modificada pela comunidade, nem mesmo no exercício do autogoverno. Dworkin rejeita a concepção de que uma maioria política possa modificar aquilo que decorre da ação coletiva da comunidade, pois o Estado foi fundado para preservar aqueles direitos, não se podendo desvirtuar a legitimidade do Estado fazendo com que os direitos deixem de ser invioláveis.
Por conseguinte, a legitimidade do Estado e do direito não decorrem de um procedimento democrático, mas de uma "lei superior", restando à política, na visão liberal, a tarefa de mediação entre as concepções particulares de bem e os fins coletivos da sociedade.
Jürgen Habermas critica os teóricos liberais porque discorda dessa característica de concorrência entre atores que agem estrategicamente para atingir posições de poder, arregimentando interesses particulares de outros indivíduos [03]. Para Habermas, a vontade política deve ser construída a partir de um consenso argumentativo, público e racional, nada parecido com a barganha de interesses privados.
Também opostos ao liberalismo político estão os teóricos comunitários, os quais sustentam que embora a justiça possa ser um princípio universal, a realização social desse princípio está vinculada à autodeterminação dos homens que se reúnem em mundos morais particulares. Não se pode definir indivíduos a partir de direitos a eles atribuídos, pois tais direitos são formulações abstratas, historicamente situadas e interpretadas culturalmente.
Para Michael Walzer [04], os direitos não são pré-políticos, naturais, nem derivam da capacidade moral dos indivíduos, mas representam os valores que uma determinada comunidade elegeu como bem, no exercício da sua liberdade coletiva (soberania popular). Não se pode falar em escolhas políticas universais e imutáveis já que as comunidades políticas podem renovar ou redefinir sua identidade política por meio da ação coletiva de mobilização popular.
Os direitos não são universais, e sim valores compartilhados por cada diferente comunidade de indivíduos, os quais são respeitados em razão de uma decisão política; e, portanto, passíveis de serem modificados ou restringidos também por uma decisão política. A teoria comunitária sustenta a proposição de que a liberdade constitui a possibilidade de que cada comunidade encontre o fundamento de legitimidade de seu próprio Estado, com base nas suas próprias experiências culturais e históricas concretas.
Nessa perspectiva, o conceito de direitos humanos é relativizado, podendo abarcar mais ou menos garantias, dar maior ênfase aos aspectos civis, políticos ou sociais da liberdade individual. Alguns direitos individuais serão inclusive constitucionalmente protegidos, porém não poderão ser considerados como elementos que limitem a soberania popular.
Embora concorde com os comunitários na percepção da política como o espaço adequado de reflexão e formação de uma sociedade orientada para o bem comum (revelando-se como estrutura da comunicação pública voltada para o entendimento), Habermas critica a perspectiva comunitária em razão de sua dependência de cidadãos orientados para o bem comum, sustentando que as sociedades atuais são plurais e, portanto, incompatíveis com uma identidade coletiva de concepção de bem. Com efeito, na concepção habermasiana, o que confere legitimidade à autodeterminação cidadã, à manifestação coletiva sobre valores, é que essa decisão coletiva provenha de um acordo racionalmente motivado e alcançado como conseqüência de um procedimento legislativo democrático. Por sua vez, o exercício da autonomia pública depende do reconhecimento da existência de um sistema de direitos [05], sem o qual não haverá legitimidade nas relações estabelecidas por meio do direito positivo.
Ao preconizar a "institucionalização dos procedimentos e pressupostos comunicativos", colocando o direito a meio caminho da moral e da política, Jürgen Habermas traz à discussão uma nova contribuição, denominada teoria crítico-deliberativa, e alertando para a necessidade de superação da tensão entre as visões liberal e comunitária [06]. Fica evidente a existência de um limite substancial à soberania popular, consistente no sistema de direitos.
A teoria crítico-deliberativa avança com a contribuição de Joshua Cohen, para quem o conceito crítico-deliberativo de democracia (segundo o qual o exercício do poder do Estado provém das decisões coletivas dos membros da sociedade que são governados por esse poder e, mais precisamente, das discussões desses membros) também deve estar vinculado à uma definição acerca da comunidade política em que se realizará a prática democrática.
Numa comunidade homogênea, por exemplo, em que há adesão generalizada a uma doutrina religiosa ou determinada concepção moral, compreende-se facilmente que as decisões devam estar de acordo com esse conteúdo substancial e, nesse caso, a legitimação não derivaria do processo (ainda que democrático) pelo qual elas foram tomadas. Porém, mesmo numa comunidade plural, em que todos os membros são livres e iguais, não é qualquer conteúdo de decisão democrática que pode ser considerado válido em função do seu processo de escolha (ainda que democrático).
A limitação substancial, nesse caso, não estaria representada pelo sistema de direitos (de algum modo externo ao conceito de democracia), mas será a própria concepção de que os membros de uma comunidade são livres e iguais que implicará num conceito substancial de democracia [07]. Da mesma maneira, não há como afastar outros conceitos substanciais da concepção de democracia como, por exemplo, a abertura para discussão de teses políticas alternativas, condições para que essas teses sejam discutidas publicamente, etc.
De acordo com Cohen, na concepção liberal a democracia é vista apenas como meio para decidir que valores o Estado deve preservar ou realizar, quando deveria ser entendida como um valor "em si" a ser combinado com os demais. Se os valores da comunidade fossem independentes do valor "democracia" as liberdades políticas seriam reduzidas a uma função meramente instrumental. Cohen também discorda da concepção comunitária, que admite a diminuição das liberdades não-políticas sem que isso acarrete déficits para o processo de legitimação democrática.
A teoria crítico-deliberativa, portanto, está organizada em torno do ideal de justificação política no qual as decisões são válidas se, e somente se, decorrem de um procedimento público de argumentação entre pessoas livres e iguais [08]. Assim, busca-se construir as condições institucionais e sociais que permitam a discussão pública e amarrem o poder público a essa discussão. De modo idêntico, se o conceito de comunidade é construído a partir de uma autonomia pública coletiva, devem ser criadas condições para a preservação dessa própria autonomia [09].
A concepção democrática da teoria crítico-deliberativa, ao impor limites substanciais à soberania popular, ecoa a preocupação de autores como Luigi Ferrajoli que sustentam a impossibilidade – tanto empírica como teórica – de se falar em outra democracia que não seja a democracia constitucional.
A "democracia constitucional", de que fala Ferrajoli, consiste no reconhecimento de uma dimensão substancial ao lado da dimensão formal da democracia, de modo que as leis devessem sua legitimidade a um processo de validação simultaneamente substancial e formal, representada pela coerência entre essa produção legislativa com os valores que animam a estruturação do Estado.
Tais elementos correspondem ao núcleo duro das constituições, encontrando-se na esfera daquilo que não está submetido à maioria e nem mesmo à unanimidade dos cidadãos. Para Ferrajoli, são os direitos fundamentais constitucionalmente fixados que constituem as normas substanciais que condicionam a validade substancial da produção legislativa [10].
O papel desempenhado pelos direitos fundamentais na restrição da soberania popular decorre das aporias que atingem o conceito meramente formal de democracia: a primeira aporia está na limitação imposta pelo princípio do Estado de Direito, que não admite a existência de poderes absolutos, nem mesmo o da soberania popular; a segunda aporia está no fato de que uma dimensão formal de democracia não está habilitada para proteger efetivamente o funcionamento democrático do Estado [11].
Diante dessa perspectiva, torna-se necessária uma investigação que determine que elementos constitucionais desempenhariam a função de proteger a comunidade de seus próprios excessos, sem que isso signifique impedi-la de construir sua própria história e de exercer sua autonomia política. Essas mesmas preocupações estão presentes, ainda que em menores proporções, quando se pretende estruturar um sistema punitivo democrático.
Trata-se de incorporar na dogmática do direito penal e processual penal as preocupações democráticas no tocante à existência de determinados conceitos substanciais que assumem o papel de conditio sine qua non na estruturação de um sistema punitivo ilustrado, racional, moderno e democrático, assim entendido porque preserva a autonomia dos indivíduos frente ao Estado e ao controle que este exerce sobre aqueles.
Fundamentos de um sistema punitivo democrático
A investigação de que elementos substanciais representariam as bases fundantes de um sistema punitivo democrático é um dos objetivos da teoria do garantismo penal, que tem em Luigi Ferrajoli seu maior expoente. Para desenvolver uma análise crítica do sistema punitivo que mais se coaduna com as premissas de um Estado democrático de direito Luigi Ferrajoli estabelece três diferentes eixos de análise.
O primeiro plano desse estudo corresponde à análise do direito a partir de um enfoque epistemológico (ou filosófico), controlando e reduzindo o poder do Estado no curso de um processo que visa impor uma restrição por meio da violência estatal. O segundo plano, denominado de plano político ou axiológico, está voltado para a justificativa ético-política da qualidade, quantidade e necessidade da intervenção do poder sobre a liberdade, como também nos critérios das decisões judiciais. O terceiro plano de estudo é o plano jurídico ou normativo, ligando-se à noção de validade, assim como à exigência de coerência interna do sistema penal positivo e à relação entre legislação infraconstitucional e os princípios normativos superiores.
A primeira preocupação na elaboração de um sistema punitivo democrático é assegurar "o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade" [12], no plano epistemológico, o que se constrói a partir de duas vertentes: o convencionalismo penal (associado à legalidade estrita) e o cognitivismo processual (associado à jurisdicionalidade estrita), correspondentes, respectivamente, aos campos do direito penal e processual penal.
Por convencionalismo penal ou princípio da legalidade estrita Ferrajoli define a reserva absoluta de lei, representando a vinculação do legislador à taxatividade e à precisão empírica na formulação de regras que prescreverão as condutas puníveis.
Trata-se, a bem da verdade, de um postulado que orienta a técnica legislativa. Essas exigências visam afastar a tipificação de condutas penais por meio de normas que não estejam relacionadas a fatos, mas a pessoas,
"Como as normas que, em terríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os ‘desocupados’ e os ‘vagabundos’, os ‘propensos a delinqüir’ (...)" [13].
Portanto, os tipos penais devem descrever taxativamente as ações que podem ser imputadas ao acusado, excluindo-se qualquer componente extralegal na construção do tipo penal, de maneira que a relevância penal não seja determinada pela natureza, pela moral ou por qualquer outra espécie de autoridade que não a lei [14].
O cognitivismo processual (princípio da estrita jurisdicionalidade) determina que a hipótese acusatória deve ser passível de verificação e de exposição à refutação. Somente pode haver imposição de pena se um fato determinado, descrito e reconhecido pela lei como delituoso, puder ser submetido à comprovação, permitindo a produção de provas e contra-provas. Assim, ao contrário dos juízos valorativos, os juízos penais devem ser predominantemente cognitivos e estarem baseados em elementos que afirmem ou neguem fatos ou direitos.
A epistemologia garantista opõe-se a modelos em que os elementos relativos à definição das condutas puníveis e à comprovação judicial dessas condutas são autoritários. O primeiro elemento autoritário, que Ferrajoli denomina de substancialismo penal, está representado pela "desvalorização do papel da lei como critério exclusivo e exaustivo de definição dos fatos desviados (desvio punível)" [15] e significa a previsão de condutas puníveis de modo indeterminado e valorativo, permitindo discriminações fundadas nas características pessoais e esvaziando o princípio da estrita legalidade.
O segundo elemento autoritário é chamado decisionismo processual e representa a subjetividade do juízo em que há "ausência de referências fáticas determinadas com exatidão [e a decisão judicial] resulta mais de valorações, diagnósticos e suspeitas subjetivas do que de provas de fato" [16]. O decisionismo processual também importa em subjetividade na determinação das qualidades pessoais do réu, pervertendo o processo penal para transformá-lo numa análise da personalidade do agente, ao invés de ser um conjunto de procedimentos para buscar a comprovação de fatos objetivos.
No centro da divergência entre a epistemologia garantista e a epistemologia autoritária está a diferença no tipo de "verdade jurídica" que se pretende alcançar. A epistemologia autoritária pretende, em matéria penal, alcançar uma verdade "absoluta", "unívoca", "objetiva", cuja busca, por suas próprias características, admite a utilização de quaisquer meios aptos para que seja alcançada, ultrapassando os limites das regras procedimentais, fazendo com que os fins justifiquem os meios. Por sua vez, a epistemologia garantista somente admite uma condenação que tenha por base a verdade processual, construída a partir da observância de regras determinadas e referentes aos fatos que tenham relevância penal [17]. Logo, esta é a primeira premissa teórica para a formulação de um sistema punitivo democrático na sua pretensão de tutelar ao máximo a liberdade dos indivíduos.
A axiologia garantista trabalha com a noção dos custos e objetivos do direito penal e processual penal. Se o sistema repressivo puder ser entendido como destinado a definir, individualizar e reprimir o desvio penal, o conjunto de restrições à liberdade individual constituirá um "custo" cuja justificação deve ser racionalmente fundamentada [18]. Ferrajoli destaca que essa justificação é especialmente importante na medida em que o "custo" do sistema punitivo estatal pesa sobre todos e não apenas sobre os culpados. Além de estarmos todos sujeitos às proibições de condutas consideradas delituosas, também os inocentes podem ser, como de fato são, submetidos às agruras de um processo criminal e, muitas vezes, até condenados injustamente [19].
Sendo certo que o direito penal constitui a mais violenta expressão do poder estatal sobre a liberdade individual, a justificação racional do sistema punitivo também exige que a ativação do aparelho repressivo estatal ocorra somente quando caracterizada a imperiosa necessidade e, mesmo assim, de maneira subsidiária. Corolário da subsidiariedade [20] é a exigência de resultado material da conduta penal, não se admitindo que determinadas ações, ainda que aparentemente típicas, sejam consideradas delituosas se não houver concreta lesão ao bem jurídico protegido [21].
Além da racionalidade, a axiologia garantista também exige um modelo de direito que traduza justiça, mais especificamente um modelo formal ou procedimental de justiça e não uma concepção particular de justiça. O sistema penal deve estar estruturado para que a definição e apuração da responsabilidade penal não se transformem num campo aberto ao arbítrio das intervenções punitivas infundadas.
O sistema garantista (SG) adota dez máximas que incorporam os postulados que um sistema penal deve satisfazer para sua justificação. Essas máximas estão assim numeradas por Ferrajoli:
A1 – Nulla poena sine crimine (retributividade)
A2 – Nullum crimen sine lege (legalidade, nos sentidos estrito e lato)
A3 – Nulla lex (poenalis) sine necessitate (necessidade)
A4 – Nulla necessitas sine injuria (lesividade ou ofensividade do evento)
A5 – Nulla injuria sine actione (materialidade)
A6 – Nulla actio sine culpa (culpabilidade ou responsabilidade pessoal)
A7 – Nulla culpa sine judicio (jurisdicionalidade)
A8 – Nullum judicium sine accusatione (acusatoriedade ou separação entre juiz e acusação)
A9 – Nulla accusatio sine probatione (ônus da prova)
A10 – Nulla probatio sine defensione (contraditório e defesa) [22]
As máximas e as relações entre as máximas [23]do sistema garantista têm por objetivo adequar o sistema punitivo a um conceito de Estado de direito
"Entendendo-se por esta expressão um tipo de ordenamento no qual o poder público e especificamente o poder penal estejam rigidamente limitados e vinculados à lei no plano substancial (ou dos conteúdos penalmente relevantes) e submetidos a um plano processual (ou das formas processualmente vinculantes)" [24].
Esse conceito de Estado de direito aponta para duas conclusões. A primeira delas é um modelo de democracia com grande margem de limitação substancial em matéria penal; a segunda é que se pode falar num modelo penal denominado de "direito penal mínimo", contraposto ao "direito penal máximo", esteja ele mais próximo ou mais distante daquelas máximas que compõem o sistema SG.
Àquele conjunto de máximas devemos adicionar critérios para a solução das incertezas jurídicas, como é, por exemplo, a presunção de inocência. Ou seja, se a hipótese acusatória não puder ser comprovada por meio da verdade processual, deverá prevalecer a presunção de falsidade dessa hipótese (presunção de inocência do acusado), tomando-se esse formalismo no direito penal e processual penal como uma garantia da liberdade individual contra a busca por "verdades substanciais" de cunho evidentemente autoritário. Isso decorre da premissa epistemológica de que não há "uma" verdade a ser encontrada e que a única verdade que pode justificar uma condenação penal é verdade processual.
No modelo de direito penal máximo é inegável a aspiração totalitária de que nenhum culpado fique impune à custa da incerteza de que algum inocente possa ser punido, ao passo que o direito penal mínimo e a teoria garantista propugnam o objetivo exatamente oposto, ou seja, a construção de um sistema destinado a fazer com que nenhum inocente seja punido, à custa de que algum culpado não o seja. O in dubio pro reo não é apenas um critério para solução de incertezas jurisdicionais, mas, antes de tudo, uma escolha axiológica.
Não obstante a dicotomia entre as tendências de direito penal mínimo e direito penal máximo, é possível que ambas convivam num mesmo ordenamento jurídico. Essa convivência é um dos pontos críticos no que tange à efetividade do sistema penal e aparece como um traço comum às democracias modernas [25].
Ligada à epistemologia e à axiologia está uma teoria do direito garantista, que se liga à noção de validade do sistema penal positivo a partir de sua confrontação com princípios normativos superiores. Nesse momento surge com maior nitidez a limitação da soberania popular pelo princípio do Estado de Direito, que deve incorporar limites substanciais (validade substancial) além dos limites formais (validade formal).
Essa diferenciação entre legitimidade formal e legitimidade substancial é importante para esclarecer a natureza da relação entre democracia política e Estado de direito. Segundo Ferrajoli, são as condições formais e as condições substanciais de validade que formam o objeto de dois diferentes tipos de regras: sobre "quem pode" e sobre "como se deve" decidir. As regras do primeiro tipo estão ligadas à forma de governo ao passo que as outras à estrutura dos poderes do Estado. Será da natureza das regras desse primeiro conjunto que dependerá o caráter do sistema político (democrático, oligárquico, monárquico, burocrático); da natureza das regras do segundo tipo é que se identificará o caráter do sistema jurídico (totalitário ou de direito).
A primeira característica desse Estado de direito é sua justificação a partir de uma abordagem racionalista subjetivista de cunho ilustrado herdada da modernidade [26]. Em sua fundamentação política, o Estado liberal tem sua justificação teórica focada na relação Estado-governado, privilegiando-se a autonomia individual na construção de uma vida livre e na busca pelo que cada um considera ser seu projeto de felicidade. O uso coletivo do poder social para alcançar uma determinada concepção moral é visto como uma fonte de perigo já que não se espera que o Estado tenha pretensões morais independentes das dos seus membros [27].
Seguindo esse raciocínio, é necessário estabelecer formas de controle do Estado, sobressaindo aquela que se efetiva por meio de uma constituição que restringe, controla e separa os poderes, atuando como limite do próprio Estado. Não se trata de uma concepção meramente positivista-formalista que atribua à constituição o status de norma fundamental, nem tampouco uma visão jusnaturalista de que os direitos ali consagrados constituem direitos pré-políticos.
A justificativa para o controle do Estado decorre da constatação de que o Estado possui um poder incontrastável, que o exercício desse poder pode ocorrer de modo impróprio e que, por ser o próprio Estado o responsável por elaborar a legislação, deve haver um limite previamente estabelecido para que essa atividade seja bem desenvolvida.
Ferrajoli lembra que o Estado moderno nasceu ligado ao conceito de Estado de direito e não ao conceito de democracia (como monarquia constitucional e não como democracia representativa), ou seja, a limitação do poder precede sua fundação democrático-representativa. Se o Estado de direito surge vinculado à noção de garantias inderrogáveis, vedações instransponíveis (vedação de punir, prender, perseguir, censurar etc, sem que estejam presentes as condições estabelecidas em lei), tais direitos adquirem o status de invioláveis, indisponíveis e inalienáveis [28]. O Estado de direito é entendido como um sistema de limites substanciais que deve ser observado pelo governo para a salvaguarda das garantias fundamentais, contrapondo-se ao Estado absoluto, seja ele democrático ou autocrático.
A segunda característica da relação entre garantismo, Estado de direito e democracia está voltada para a limitação do princípio democrático no que tange ao estabelecimento de leis que restrinjam princípios de direitos e garantias individuais em nome da realização de um interesse coletivo. É inegável que o bem estar coletivo representa um objetivo político das sociedades democráticas, muito embora seja igualmente fácil compreender a vulnerabilidade que o regime democrático apresenta às investidas de um bem estar coletivo ao custo das liberdades individuais e das minorias.
Essa premissa não é unânime. Bökenförde, por exemplo, entende que a soberania popular é superior a qualquer outro fundamento de organização estatal, pois é o único que fornece legitimidade ao domínio político. Nesse diapasão, sustenta que mesmo um Estado teológico, fundado no direito divino, pode regular a vida política dos indivíduos, desde que tenha sido democraticamente escolhido [29].
Os únicos limites da decisão majoritária, nesse contexto, seriam os direitos de liberdade democrática (direito eleitoral e de organização de partidos, salvo aqueles que pretendam abolir a organização democrática do Estado). As garantias fundamentais são assim consideradas exclusivamente para que o indivíduo tenha liberdade frente ao processo democrático.
Na perspectiva garantista, o fundamento de legitimidade do Estado não é sua organização democrática, mas o respeito e a tutela dos direitos fundamentais [30]. A democracia é um componente indissociável do Estado de direito garantista, mas não é a fonte política da legitimidade estatal.
Uma terceira característica que se pode ressaltar traz à tona a concepção garantista de separação entre validade e justiça, consubstanciada na divisão entre legitimação interna e externa e na exclusividade da primeira para a avaliação da validade de uma lei.
A legitimação externa significa a fundamentação não metafísica do direito penal e processual, separando-se direito e moral, validade e justiça, ser e dever-ser, distinções oriundas da filosofia iluminista e está contraposta à fundamentação jurídica que se utiliza na aplicação cotidiana do direito, chamada de legitimação interna. A legitimação externa se diferencia da legitimação interna porque os critérios da primeira têm caráter extrajurídico, enquanto os da segunda são intrínsecos ao direito positivo. Assim, da perspectiva externa, o direito é legítimo se é ‘justo’, enquanto da perspectiva interna o direito é legítimo se é ‘válido’.
Historicamente, os sistemas punitivos podem ser agrupados sob duas grandes correntes teóricas: a que separa as formas de legitimação ou a que as confunde. O primeiro modelo de sistema penal é associado ao iluminismo e ao garantismo, enquanto o segundo está identificado com o substancialismo jurídico ou com o formalismo ético.
O modelo de substancialismo jurídico representa a sujeição da norma à moral, seja essa moral deduzida a partir da razão humana, seja ela de origem metafísica ou divina. Aqui, os ideais de justiça são superiores ao direito positivo e são eles que determinam o que é, e o que não é direito. O modelo de formalismo ético significa exatamente o oposto, ou seja, a sujeição da moral à norma. Aqui, o direito é considerado como um critério ético em si, determinando a lei positiva o que é e o que não é justo. Esses modelos representam as faces opostas da confusão entre direito e moral e são, ambos, modelos autoritários, assim considerados porque identificadas com concepções substancialistas do delito, da verdade judiciária e da finalidade da pena.
No modelo garantista, a questão da validade não está vinculada somente à existência jurídica da norma ou à sua correspondência formal com as normas hierarquicamente superiores, mas também à correspondência material com essas normas. Assim, embora o direito "válido" prossiga sendo qualquer direito regularmente produzido, existem normas que orientam a produção do direito e que servirão de parâmetro para a avaliação da sua validade. Estas normas, atualmente, correspondem aos princípios ético-políticos incorporados ao ordenamento jurídico, positivados ou não, sobretudo no nível constitucional, que impõem "valorações ético-políticas das normas produzidas e atuam como parâmetros ou critérios de legitimidade e ilegitimidade não mais externos ou jusnaturalistas, senão internos ou juspositivistas" [31].
Todavia, é importante ressaltar que a diferença entre legitimação interna e externa não significa uma porta aberta ao Poder Judiciário para subjugar a vontade política da sociedade, que se expressa por meio do Poder Legislativo. Assim como a lei deve ser precisa na definição do desvio penal (pois a ambigüidade aumenta a margem de autoritarismo), o poder de interpretação das leis deve ser limitado pelos critérios jurídicos da legitimação interna. Não se pode recorrer a argumentos políticos ou morais na ativação do aparelho punitivo estatal sobre a liberdade individual.
Afinal, o recurso à legitimação externa (critérios políticos ou morais) na avaliação da validade do direito pode representar justamente uma aproximação com o modelo autoritário e antigarantista de substancialismo jurídico.
A função da legitimação externa é permitir um enfoque crítico do direito positivo em função da axiologia garantista. Se por um lado o interesse da comunidade está tutelado mediante a definição de condutas puníveis, o direito penal também deve tutelar o interesse daquele que realizou o delito, apenando-lhe somente na medida exata da necessidade. Se, ao negar o critério da exata necessidade da pena, o direito penal passar a ter por finalidade vingar o delito perpetrado, estaríamos diante de um paradoxo, eis que o direito penal foi criado para substituir a vingança privada pela aplicação de justiça por um ente imparcial.
Afinal, embora a politização do Poder Judiciário surja ligada à defesa e à valorização dos direitos fundamentais, assumindo a responsabilidade de uma atuação política com preocupações morais e a pretensão de distribuir justiça social por meio das suas decisões [32], esse protagonismo judicial em matéria de direito penal e processual penal não tem se revelado um mecanismo para aprimorar a proteção da liberdade dos indivíduos, mas sim um instrumento a serviço da ampliação dos poderes punitivos e persecutórios do Estado [33]e[34].
Já há alguns anos imperam os discursos de terrorismo estatal e super-criminalização que, se por um lado não se prestam a resolver as tensões sociais do mundo contemporâneo, por outro, agravam ainda mais o sentimento de insegurança em que já se vive. Esse movimento político-social é chamado de "Campanhas de Lei e Ordem" [35] e visa aumentar o poder estatal e diminuir as garantias individuais, utilizando-se do argumento da emergência para justificar uma legislação de exceção [36] e uma interpretação constitucional sensível à adoção de medidas extraordinárias, voltadas para uma suposta necessidade de resposta a fenômenos emergenciais (no caso, um propalado aumento descontrolado de criminalidade), mas cuja emergência acaba por se alongar no tempo com evidente prejuízo para a normalidade constitucional [37].
O movimento de Lei e Ordem alia o discurso do terror e da emergência ao discurso da guerra. Assim, a tarefa do Estado de promover a segurança e controlar a criminalidade é transformada numa "guerra" na qual os supostos agentes criminosos deixam de serem cidadãos para se tornarem inimigos [38], passando a ser admissível a utilização de quaisquer meios aptos para que esse objetivo seja alcançado, inclusive ultrapassando os limites das regras procedimentais [39], fazendo com que os fins justifiquem os meios [40].
Entretanto, se, por um lado, e o juízo de validade substancial das leis constitui um juízo de valor, permitindo, portanto, que o Poder Judiciário acumule poderes que, conjugados, têm potencial de colocar em risco o Estado de direito, a democracia e as liberdades individuais, por outro lado, esse acréscimo de poderes Poder Judiciário se justifica se estiver vinculado à defesa dos fundamentos que estruturam o Estado de direito, a democracia e os direitos fundamentais, das minorias ou das partes mais frágeis numa relação jurídica.
Especificamente no campo do direito penal e processual penal, o garantismo aciona um "seguro" contra a ameaça de exacerbação da violência estatal que a hipertrofia do Judiciário representa: o juízo de validade da lei, que repercute sobre a garantia estrita do princípio da legalidade, pode ceder, mas somente ante o princípio da maximização da liberdade. Podem ser considerados corolários dessa concepção os critérios do favor rei, da analogia in bonam partem [41], do ne reformatio in pejus e da admissão da prova obtida por meios ilícitos em benefício do acusado, dentre outros.
Em suma, o recurso à legitimação externa ou o exame substancial da validade de uma lei somente pode ser admissível, em matéria penal e processual penal, quando a interpretação conferida pelo Poder Judiciário estiver direcionada para a ampliação do espectro da liberdade individual. Nesse caso, os riscos decorrentes de uma leitura moral da lei pelo Poder Judiciário – o aumento do arbítrio punitivo estatal e a quebra do fundamento de confiança que os indivíduos depositaram no estado como protetor dos direitos fundamentais – não estariam presentes.