CAPITULO 1: HIERARQUIA E DISCIPLINA MILITAR
1. A HIERARQUIA E A DISCIPLINA MILITAR NA HISTÓRIA
"É complexo o conteúdo da expressão Justiça Militar" [01], pois de um lado compreende o Direito Penal Militar, o Processo Penal Militar, a Organização Judiciária Militar e de outro lado os Estatutos Militares, os regulamentos disciplinares e o ordenamento das formas de apuração das faltas disciplinares e suas respectivas punições disciplinares.
Confunde-se o estudo da origem da hierarquia e da disciplina militar com o próprio estudo da Justiça Militar e do Direito Militar, que tem como finalidade maior a tutela desses bens jurídicos, como será abordado oportunamente.
É com este sentido amplo que, sobretudo nesta introdução, examina-se a evolução do Direito Militar e da Justiça Militar, cujo surgimento se perde na História.
1.1 Os primeiros registros
Constatações como "já se tornou cediça a afirmação segundo a qual o Direito Militar e com ele a Justiça Militar datam do aparecimento dos exércitos permanentes" [02], ou "por imperativo dos fatos mesmos, a jurisdição penal militar aparece, na mais remota antigüidade, quando surge, conjuntamente com o Estado, o corpo armado..." [03], ou, segundo VON LIZT, "a história do direito penal militar data do aparecimento dos exércitos permanentes" [04], são freqüentes nas obras que procuram retratar as origens dessa JUSTIÇA.
Apesar de não haver um estudo adequado, com cunho científico, aparecem registros na história dos povos sobre a JUSTIÇA MILITAR, sendo possível encontrar-se alguns traços referentes a uma disciplina tomada hoje como militar, junto ao exército respectivo, entre os povos mais antigos.
Quando o homem entrou na faixa das conquistas e das defesas para o seu povo, aí, provavelmente, a JUSTIÇA MILITAR deu os seus primeiros passos, pois logo sentiu a necessidade de poder contar, a qualquer hora e em qualquer situação, com um corpo de soldados disciplinados, sob um regime férreo e com sanções graves e de aplicação imediata.
Perante um inimigo, sob condições as mais adversas, colocando em risco a sua vida e em jogo os interesses de um povo, os integrantes desse exército teriam que estar sob controle total de seus chefes e em condições de utilização imediata.
Seguramente, era uma justiça da força militar na força militar.
Fatos que hoje se tem como crime militar eram apontados no CÓDIGO DE UR-NAMMU (UR-NAMMU, da cidade de UR, fundador da III Dinastia de UR, na antiga Mesopotâmia), a mais antiga lei conhecida, mas sem uma jurisdição militar, e sim submetidos à vontade do Rei, o seu maior chefe.
O CÓDIGO DE HAMMURABI (HAMMURABI, sexto rei da BABILÔNIA, governou por 43 anos), também apresentava normas de caráter militar, assim como antigas leis assírias e egípcias. Sobre o Egito antigo, DEODORO SICUTO (Histoire Universelle, de 1737) [05], lembra punições infligidas nas Leis de Sesostris III.
A partir da descoberta da escrita cuneiforme, graças a SIR HENRY RAWLINSON, militar, diplomata e orientalista, pôde-se conhecer as leis do Rei HAMMURABI, que viveu entre 1728 e 1686 a.C., onde também se encontram referências a hierarquia e disciplina militar:
"suas prescrições de justiça, onde anematiza aquele que negligenciasse o cumprimento dos preceitos inseridos no Código, que tomou seu próprio nome, escreveu: ´´Que Samas, o grande Juiz do céu e da terra, aquele que conduz retamente os seres vivos, o senhor, meu refúgio, derrube a sua realeza, não promulgue o seu direito, confunda o seu caminho, faça cair a DISCIPLINA do seu EXÉRCITO´´ etc." [06] (destaquei)
1.2 Na Grécia antiga
Junto aos gregos – "como salientou SARA DE FIGUEIREDO - mencionando SADY CARDOSO GUSMÃO: ´para salientar que a origem da Justiça Militar quase se perde na noite dos tempos`" [07] - "HOMERO já falava de anciãos, escolhidos dentre guerreiros, sentados diante de Tróia, a administrar justiça" [08]. Talvez aludindo às punições aplicadas por Milcíades e Aristides.
Cabe ressaltar que as punições aplicadas nessa época não se distinguiam entre punições de natureza administrativa ou penal, ambas eram de natureza jurídica, especialmente em ATENAS e ESPARTA, onde se encontrava a jurisdição militar como uma instituição jurídica parecida à atualmente existente, distinguida, apenas, entre jurisdição militar em tempo de paz e jurisdição militar em tempo de guerra, com a decisão ficando com os chefes militares e, em especial, com os Estrategas.
Diz CHRYSOLITO DE GUSMÃO que:
"em conseqüência de não possuírem os gregos uma concepção diferenciada e específica dos delitos militares, devido ao fato, principalmente, de que todo cidadão era considerado soldado da pátria, tampouco tinham também os helenos uma justiça militar que estivesse nitidamente separada da justiça comum" [09]
GUSMÃO acrescenta que na Grécia antiga, a justiça militar era exercida, "a princípio, pelo Archonte, juiz sacerdote, que conhecia dos delitos militares, julgando-os e lhes prescrevendo as necessárias e correspondentes penas", competência essa passada, aos poucos, para os Estrategas, e depois para os Taxiarcos. (destaquei)
Desde aquela remota época, fixou-se entendimento de que os delitos militares deveriam ser apurados e julgados pelos próprios militares, haja vista a completa compreensão dos valores e idiossincrasias da profissão das armas.
PLATÃO [10], mesmo lamentando a existência da guerra, por tê-la, "no mais alto grau, geradora de males privados e públicos nas cidades, quando nela aparece", diz que na arte da guerra deve-se ter coragem para combater bem, e que a educação dos guerreiros, estes selecionados em razão do trabalho que irão desempenhar, deve ter um campo próprio de conhecimentos, voltado à natureza das atividades das armas. Daí, que "o magistrado deveria pertencer à mesma arma do militar culpável, de modo que o infante fosse julgado por outro infante, e de igual modo com respeito às demais armas". [11]
1.3 Entrando em Roma
Em Roma, a Justiça Militar avança com uma organização e um campo melhor delimitados, merecendo um capítulo especial no DIGESTO - DE RE MILITARE.
Com os grandes povos que se destacaram na antigüidade da História Universal - egípcios, babilônios, assírios, persas, gregos etc. - os exércitos, exceto o dos gregos, eram mais uma reunião de povos subjugados, com predominância do então povo dominante. Assim, as regras internas e suas organizações militares, ou eram em número reduzido, ou eram de difícil aplicação a todos, ou delas pouquíssimos registros foram detectados. Com os romanos, porém, a Justiça Militar e o Direito Militar ganham realce maior, eis que, e nunca é demais fazer-se a anotação, Roma e sua glória devem, e muito, ao seu exército.
Enquanto estes se mantiveram unidos, fortes, disciplinados, organizados, treinados, os romanos foram alargando o seu território, chegando aos confins do mundo na época conhecido, e puderam manter-se no domínio de vários outros povos por centenas de anos, bastando dizer-se que o império romano do ocidente só veio a cair em 476 d.C., e o do oriente, muito mais tarde, já no século XV, ou mais precisamente, em 1453.
Tantos anos de poder só podem ser explicados a partir de um exército forte e disciplinado o suficiente para conquistar e manter terras e gentes. se o romano também foi grande no Direito, grande também revelou-se no Direito Militar.
1.4 Roma e a Justiça castrense
Mais de três mil anos se passaram na história da Justiça Militar para se chegar a Roma. Já nesta, o período fica restrito do século II a.C. à morte de JUSTINIANO, em 565 d.C.
É com CÉSAR AUGUSTO que a jurisdição penal militar adquire características próprias de uma instituição jurídica, e a história da organização militar de Roma é dividida por LINS [12], em três períodos:
"1º - o que vai da fundação da cidade à guerra social. Durante esse largo espaço de tempo, todos os cidadãos são soldados e todos os soldados são cidadãos. Acham-se, portanto, sujeitos ao jus commune;
2º - o dos exércitos mercenários, que apareceram com as guerras civis. Estas assinalaram a decadência da República, com a qual cessaram os aludidos exércitos. Estes se achavam, igualmente, sujeitos ao mesmo jus commune; e
3º - o dos exércitos permanentes. Estes começaram nos primeiros anos do Império; sofreram, na respectiva organização, modificação essencial no segundo século; e transformaram-se, completamente, no reinado de Deocleciano".
Nesse último período, sedimentam-se as diferenças entre o crime propriamente ou impropriamente militar. Tais diferenças de entendimento doutrinário e jurisprudencial projetaram-se no tempo e no espaço até os nossos tempos.
Portanto, a Justiça Militar, contemporânea dos mais antigos povos civilizados, consolidou-se na antiga Roma, onde o DIGESTO - DE RE MILITARE - contém todas as normas do Direito Militar e da Justiça Militar que possibilitaram a coesão e a eficácia dos exércitos romanos.
A História registra que o Império de Roma só se formou graças à disciplina das legiões romanas, firmada em um rígido Direito Militar, aplicado pela Justiça Castrense [13]. E que, quando se afrouxou a disciplina, com generais pondo e depondo Imperadores, sobreveio o caos, e Roma, com sua glória, ruiu.
Caindo Roma e surgindo a chamada Idade Média, "precisa de paciência beneditina o exegeta para rastrear o crime militar nas hostes bárbaras, encontrando parcos subsídios em César e Tácito" [14].
Pretendendo-se chegar ao Brasil, busca-se logo, na história da Idade Média, a situação de Portugal em relação à organização dos seus corpos militares e sua justiça, mais especificamente com a Justiça Militar.
Colonizado por Portugal, o Brasil, até então habitado pelos indígenas, recebeu tudo de Lisboa, inclusive o Direito e os exércitos. Só após muitos anos os brasileiros puderam definir seus destinos, estabelecendo suas leis, seus documentos normativos, sua vida jurídica e seus exército e armada nacional.
Daí, a necessidade de se passar por Portugal, nesse levantamento histórico.
2. A JUSTIÇA MILITAR EM PORTUGAL
Portugal, como toda a Europa, sofreu com as transformações ocorridas logo após a queda do Império Romano do Ocidente, vendo-se todo o território, até então romano, ser dominado por hordas de bárbaros, as mais variadas.
Para a península ibérica vale mencionar os visigodos, e deles o Rei ALARICO, que em 506 d.C. mandou compor o BREVIARIUM, também chamado LEX ROMANA WISIGOTHORUM ou CÓDIGO DE ALARICO, que era uma súmula das leis do CÓDIGO GREGORIANO, das INSTITUTAS DE GAIO e das SENTENÇAS DE PAULO, ou seja de forte base romana, produzindo fácil recepção ao costume local e poucas alterações ao ordenamento jurídico anterior.
Mais tarde, em 693 d.C., o REI ÉGICA fez o CÓDIGO VISIGÓTICO (ou FORUM JUDICUM). Com o CÓDIGO VISIGÓTICO, denominado ainda de LEX WISIGOTHORUM, a LUSITÂNIA, regida pelas leis romanas, vê confirmarem-se novamente em suas terras as Leis de Roma, pois esse Código é a junção delas com a magistratura episcopal, cristãos que eram os visigodos.
Com a invasão árabe na região, em 712, e a destruição do Império Visigótico, após cinco anos de lutas, teve início essa nova dominação, que não obstante os setecentos anos de domínio sarraceno na península espânica, não logrou deixar traços consideráveis no mundo jurídico que nos antecedeu. Nenhuma via foi aberta para possibilitar a entrada do Direito mouro no FORUM JUDICIUM (ou CÓDIGO VISIGÓTICO), pois "nunca foi aceita e sempre repelida pelos vencidos subjugados e pelos visigodos refugiados nas Astúrias". [15]
Por várias razões ROMEIRO [16] já havia ressaltado que as mais variadas leis da época "demonstram que desde o período romano até os séculos atuais, os delitos militares receberam sanção de inúmeras leis que podem ser apontadas como a gênese dos atuais Códigos Militares da época contemporânea". Nota-se que ROMEIRO utiliza a expressão delitos militares como sinônimo de crime e transgressão militar, assim como Códigos Militares abrangem os Códigos Penais e os Disciplinares.
2.1 As ordenações do Reino
As fontes das ORDENAÇÕES AFONSINAS, e por via de conseqüência das demais Ordenações (MANUELINAS e FILIPINAS), "compreendem todo o direito anterior: usos e costumes, forais, leis gerais, determinações da Corte registradas no Livro Verde, concordatas com a Santa Sé, além do direito romano, canônico e visigótico" [17].
Como as outras Ordenações posteriores, as AFONSINAS estavam divididas em cinco livros, sendo o 1º, o judex (sobre o juiz); o 2º, o judicium (sobre o processo); o 3º, o clerus (sobre o clero); o 4º, o connubia (sobre o casamento); e o 5º, o crimem (sobre o crime).
Após 75 anos de vigência, ao tempo de D. Manuel, foram elas revogadas, surgindo em seu lugar as ORDENAÇÕES MANUELINAS sem alterações substanciais, mantidos os cinco livros e seus respectivos assuntos, e revogadas em 14 de fevereiro de 1569, com a entrada do CÓDIGO DE D. SEBASTIÃO.
No governo de FILIPE III, da Espanha, e II, de Portugal (e do Brasil), foram decretadas as ORDENAÇÕES FILIPINAS, em 1603, que perduraram por mais de dois séculos em Portugal, e vigoraram no Brasil até 1916, pelo menos o seu Livro IV, só revogado com o Código Civil, já que, em matéria penal e processual penal, vigorou até 1830, com a edição do Código Criminal, ou seja, 227 anos, quase a metade da existência do Brasil.
Apesar de odiadas pelos portugueses - era a época do domínio espanhol – as ORDENAÇÕES FILIPINAS fundavam-se na eqüidade e no que o direito romano tinha de melhor. O seu Livro V era o Código Criminal, tratando dos delitos e das penas em 143 títulos. O Livro V, aliás, foi denominado famigerado no sentido antigo, por ser famoso, e no sentido moderno, por suas torturas e penas cruéis, como degredo, morte etc.
Se as ORDENAÇÕES FILIPINAS, apesar de promulgadas em 1603, eram uma legislação ainda medieval, "identificável com a vingança pública, herança do Direito Visigótico, do Direito Canônico e das Estatutas de Justiniano", como bem comentou GARCEZ [18], a elas juntam-se os ARTIGOS DE GUERRA, do CONDE DE LIPPE, surgidos em 1763, assunto que mais adiante será enfocado.
2.2 As influências de Portugal
Por sua vez, o Brasil dos primeiros anos só viu a solução dos seus problemas encontrada a golpes de espada ou por uma bala de mosquete. A essa época, leciona WASHIGTON DE MELLO [19], "era o Capitão-Mor quem aplicava a Justiça do Rei, constituindo-se, muitas vezes, seu arbítrio à própria lei", e "só eram considerados em vigor as leis do Reino nos pontos em que não colidiram com os termos de doações e forais. A legislação portuguesa era, pois, subsidiária. Existiam, porém, leis peculiares que tinham ampla aplicação", só que "para o colono também não tinham as Ordenações o rigor peculiar a sua aplicação no Reino".
Os exércitos aqui existentes não possuíam unidade nacional, inclusive as tropas a serviço do Governador-Geral eram constituídas de alguns militares portugueses, geralmente os oficiais, muitos degredados, mercenários e até índios e escravos. A doutrina dos exércitos eram herdadas de Portugal e aplicadas de forma incipiente e arbitrária.
Efetivamente, para VIANNA,
"(...)a vinda da Família Real portuguesa para o Brasil, em 1808, alterou, profundamente, a situação de nosso país, que de simples colônia, embora intitulada Estado e geralmente considerada Vice-Reino, repentinamente passava à condição de sede da monarquia lusitana, deixando, portanto, de merecer aquela classificação." [20]
A referida situação exigiu:
"a necessidade de ampla reorganização administrativa, tendo em vista não só a transferência, para o Rio de Janeiro, das secretarias de Estado, tribunais e repartições antes estabelecidas em Lisboa, mas também a adaptação à nova ordem de coisas, das que aqui já existiam(...)". [21]
3. A JUSTICA MILITAR NO BRASIL
Logo após a organização dos Ministérios, foi criado, também na cidade do Rio de Janeiro, o CONSELHO SUPREMO MILITAR E DE JUSTIÇA, pelo Alvará de 1º de abril de 1808, com força de lei, assinado pelo mesmo Príncipe Regente. [22]
O CONSELHO SUPREMO MILITAR E DE JUSTIÇA acumulava duas funções, sendo uma de caráter administrativo e outra de caráter puramente judiciário. Na de caráter administrativo coadjuvava com o Governo "em questões referentes a requerimentos, cartas-patentes, promoções, soldos, reformas, nomeações, lavratura de patentes e uso de insígnias, sobre as quais manifestava seu parecer, quando consultado" e, na referente aos aspectos judiciários, "como Tribunal Superior da Justiça Militar, o CONSELHO SUPREMO julgava em última instância os processos criminais dos réus sujeitos ao foro militar." [23]
O CONSELHO SUPREMO MILITAR era composto pelos Conselheiros de Guerra e do Almirantado, e por outros oficiais que fossem nomeados como Vogais, e o CONSELHO SUPREMO DE JUSTIÇA possuía a mesma composição, acrescido de três juizes togados, um dos quais para relatar os processos, segundo o art. 7º, do Alvará de criação. [24] Foi o surgimento oficial do escabinato na Justiça Militar do Brasil.
Com o CONSELHO SUPREMO MILITAR E DE JUSTIÇA instalou-se o primeiro Tribunal Superior de Justiça instituído no Brasil, e "sua originária denominação foi mantida até o advento da República, quando, pela Constituição de 1891, passou a intitular-se SUPREMO TRIBUNAL MILITAR, com organização e atribuições definidas pela Lei nº 149, de 18-7-1893" [25], passando a integrar o Poder Judiciário pela Constituição de 1934 e, com a Constituição de 1946, vindo a ser denominado SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR.
4. OS ARTIGOS DE GUERRA DO CONDE DE LIPPE
WILHELM LIPPE, Conde de Schaumbourg, oficial alemão, foi convidado pelo Rei D. JOSÉ I, de Portugal, para reestruturar o exército português, no Século XVIII.
Apesar de alemão, alistou-se na marinha inglesa, mais tarde abandonada por motivo de saúde. Era, para PINHEIRO [26],
"profundo conhecedor da artilharia e destacou-se nas batalhas de Crefeld, Minden, Lutherbeugen, Fellinguausen, bem como nos cercos de Munster, Cassel, Wesel e Marlburgo, inclusive na cobertura da retirada de Kampsen, sempre a serviço do rei da Inglaterra".
Com uma possível guerra contra a Espanha, "Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, pediu à Inglaterra um militar que pudesse instruir as tropas portuguesas, sendo, então, indicado o Conde de Lippe".
No começo do ano de 1763, o CONDE DE LIPPE ficou, definitivamente, encarregado de reorganizar e disciplinar o exército português, formulando vários planos militares, e criando os famigerados ARTIGOS DE GUERRA,
"cujas normas, vigorantes no exército brasileiro durante tantos anos, encerram, na verdade, disposições penais criticáveis, face ao entendimento das doutrinas modernas, mas, para a época, tinham razão de ser, dada a circunstância de formação e recrutamento da tropa, mormente no que tange à necessidade de manter a ordem e a disciplina nas lutas internas e externas que o Brasil enfrentou." [27] (destaquei)
Destaque-se que, nessa época, continuavam em vigor as ORDENAÇÕES FILIPINAS e, na área militar, os recentes Regulamento do CONDE DE LIPPE. Do seu Regulamento, sobraram apenas os ARTIGOS DE GUERRA, que constituíam os Capítulos 23 e 26 desse Regulamento. BARROSO [28] diz que "ambos se referem à disciplina na arma de Infantaria, o primeiro tratando da subordinação ou obediência, o segundo do estado de guerra propriamente dito". (grifei)
O Regulamento do CONDE DE LIPPE vigorou no Exército brasileiro até 1907, quando o Ministro da Guerra, Marechal HERMES RODRIGUES DA FONSECA, fez uma reforma na sua força militar terrestre.
Como exemplos do rigor dos ARTIGOS DE GUERRA [29], destacam-se:
"artigo 4º - Todo o Militar que commeter uma fraqueza, escondendo-se, ou fugindo, quando fôr preciso combater, será punido de morte";
"artigo 15 - Todo aquele que for cabeça de motim, ou de traição, ou tiver parte, ou concorrer para estes delictos, ou souber que se urdem, e não delatar a tempo os agressores, será infallivelmente enforcado"; e
"artigo 5º - Todo o Militar que, em uma batalha, acção, ou combate, ou em outra occasião de Guerra, der um grito de espanto, como dizendo: - O inimigo nos tem cercado - Nós somos cortados - Quem puder escapar-se, escape-se -, ou qualquer palavra similhante, que possa intimidar as Tropas; no mesmo instante o matará o primeiro Official mais próximo, que o ouvir, e se por acaso isto lhe não succeder, será logo preso, e passará pelas armas (pena de morte) por Sentença do Conselho de Guerra."
O referido artigo 5º tornou-se o mais conhecido e temido, pois levava o autor desse delito à morte, seja pela espada do Oficial mais próximo, e portanto, sem qualquer julgamento, ou seja, após sentença do Conselho de Guerra, este sendo obrigado a decidir também pela morte, pela própria redação dada a esse artigo 5º.
Todo o militar de qualquer grau e sem exceção alguma, estava sujeito aos ARTIGOS DE GUERRA, e eles serviam de base ou de leis fundamentais em todos os Conselhos de Guerra, devendo "ser lidos todos os dias ou nos dias de pagamento, em frente das companhias. E nenhum soldado prestaria juramento de fidelidade à bandeira, sem que lhe fossem lidos e explicados ´´claramente´´" [30].
As penas desses ARTIGOS eram muito severas, como o arcabuzamento, a expulsão com infâmia, a morte (pelas armas), pancadas de espada de prancha, o enforcamento, a expulsão, o carrinho perpétuo (argolas de ferro nas pernas), o trabalho nas fortificações etc., todavia as penas corporais foram proscritas com o advento da República.
Note-se que, ao mesmo tempo em que os ARTIGOS DE GUERRA do CONDE DE LIPPE eram aprovados em 1763, um jovem de mais ou menos 26 anos, chamado CESARE BONESANA, MARQUÊS DE BECCARIA, lançava nessa mesma época um livro "que modificou toda a filosofia penal do mundo civilizado, pela exposição contrária a vários vícios da prova, inclusive contra as torturas e a pena de morte" [31], intitulado DOS DELITOS E DAS PENAS.
Assim, uma vez mais, a disciplina militar, tutelada pelo Direito Militar, administrativo ou penal, mostrou-se pilar base da existência e funcionamento dos Exércitos, desde a Idade Antiga, passando pelas Legiões Romanas, onde ficou historicamente consagrada, chegando as Forças Armadas contemporâneas.
Viu-se, portanto, de todo esse percurso, que não foi de agora a consagração da hierarquia e disciplina militar, como valores jurídicos, e do Direito Militar, como instrumento de tutela desses bens.
5. CONCEITUAÇÃO
CELSO ANTONIO leciona que a hierarquia pode ser definida como:
"o vínculo de autoridade que une órgãos e agentes, através de escalões sucessivos, numa relação de autoridade, de superior a inferior, de hierarca a subalterno. Os poderes do hierarca conferem-lhe, de forma continua e permanente: a) poder de comando; b)poder de fiscalização; c)poder de revisão, poder de punir;... " [32].
Para JOSÉ AFONSO DA SILVA [33], hierarquia "é o vinculo de subordinação escalonada e graduada de inferior a superior", por sua vez, disciplina "é o poder que tem os superiores hierárquicos de impor condutas e dar ordens aos inferiores. Correlativamente, significa dever de obediência dos inferiores em relação aos superiores." Partindo dessa afirmação é possível notar o fato de que a hierarquia e disciplina militar entrelaçam-se sobremaneira, que são ambas interpenetráveis e indissociáveis. Em conseqüência do referido embasamento, MACEDO SOARES assevera que "a subordinação pela obediência é a base da disciplina militar." [34] (destaquei)
Contudo, deve-se atentar para a inconfundibilidade desse bens jurídicos, como bem salienta JOSÉ AFONSO:
"Não se confundem, como se vê hierarquia e disciplina, mas são termos correlatos, no sentido de que a disciplina pressupõe relação hierárquica. Somente se é obrigado a obedecer, juridicamente falando, a quem tem o poder hierárquico. ‘Onde há hierarquia, com superposição de vontades, há, correlativamente, uma relação de sujeição objetiva, que se traduz na disciplina, isto é, no rigoroso acatamento pelos elementos dos graus inferiores da pirâmide hierárquica, as ordens, normativas ou individuais, emanadas dos órgãos superiores.’ A disciplina é, assim, um corolário de toda organização hierárquica." [35] (destaquei)
Postas essas breves noções iniciais acerca da disciplina, que se traduz na conseqüência lógica da hierarquia, cabe apresentar, à luz da Estatuto dos Militares, os respectivos conceitos de:
"Hierarquia
"Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo." [37] (destaquei)
Em complemento ao conceito do referido Estatuto, manifesta-se a disciplina militar, basicamente, pela obediência pronta às ordens do superior, utilização total das energias em prol do serviço, correção de atitudes e cooperação espontânea em beneficio da disciplina coletiva e da eficiência da instrução. [38]
Como apresentado na abordagem histórica, foram precisos séculos para chegar aos presentes conceitos legais. Assim, compreende-se que a hierarquia e a disciplina apresentam-se como elementos imprescindíveis à compreensão da estrutura militar, diferenciada da hierarquia e disciplina comum, em face das especiais missões constitucionais atribuídas às Forças Armadas.
6. A ESTRUTURA MILITAR E A FINALIDADE DA HIERARQUIA E DISCIPLINA MILITAR
As Forças Armadas constituem corpo especial da Administração, destinando-se, precipuamente, à segurança externa do Estado, bem como de forma secundária, à garantia da ordem interna, num primeiro momento a cargo das polícias (civil/militar), merecendo do legislador constituinte expressa referência e reconhecimento da magnitude de suas atribuições.
Emerge do art. 142, caput, da CF/88, que
"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da Republica, e destinam-se a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
Utilizando, mais uma vez, a lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA,
"as Forças Armadas são instituições Nacionais porque pertencem inteiramente a nação. Permanentes significando que sua dissolução só acontecerá na hipótese de exaurir-se o próprio Estado. E, sendo Regulares, significa que deverão contar efetivos suficiente ao seu funcionamento normal, por via do recrutamento constante, nos termos da lei." [39]
Sua base institucional esta estruturada na hierarquia e na disciplina militar, sem as quais seria de todo impraticável a realização da sua missão e todas as guerras estariam perdidas sem que fossem necessário disparar um tiro sequer. São, ainda, parte inalienável do Estado Democrático de Direito e, muito além disso, são, ultima ratio, os garantes materiais da sua própria sobrevivência, como bem explicitado na Carta Constitucional, que lhes atribuiu a defesa da pátria como missão maior.
Distingue-se do setor civil, e a ele até opondo-se, em virtude de sua militarização, "isto é, pelo enquadramento hierarquizado de seus membros em unidades armadas e preparadas para o combate" [40], porque são as detentoras da força pública e nelas se deposita a coação irresistível com que deve contar o Estado para manter a unidade de seu povo e de seu território sob uma ordem pacífica e justa, tal a sua relevante missão constitucional. Hierarquizadas, formam uma pirâmide quanto ao comando, regendo cada escalão superior, todos os inferiores, como é necessário para as manobras e operações bélicas. Disciplinadas formam um arcabouço de certeza operativa, que traduz-se na eficiência da pronta-resposta aos comandos recebidos do escalão superior. Se assim não o fosse, se cada ordem pudesse ser contestada ou discutida, diante do perigo real ou iminente, as tropas sucumbiriam pela inércia ou pela desordem e falta de coesão nas ações.
7. NATUREZA JURÍDICA
Como visto, hierarquia e disciplina são conceitos em que se baseiam, estruturam e organizam as Forças Armadas, encontrando-se consagrados na atual Carta Magna com verdadeiros princípios constitucionais, não por estarem inseridos no texto constitucional, mas pela sua orientação de cunho axiológico, compondo a própria essência da regulação política do Estado (acerca desta questão, analisaremos oportunamente a natureza jurídica dos princípios). Não por acaso, mas pela sua inquestionável importância, a hierarquia e a disciplina militar, inerentes a todas instituições militares, fazem jus a efetiva tutela do Direito Constitucional, Penal e Administrativo.
A natureza constitucional da disciplina militar, como já apresentada, encontra sua premissa maior no caput do art. 142, da CF/88: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, (...), organizadas com base na hierarquia e disciplina, (...)". (destaquei)
Do texto constitucional extrai-se, ainda, duas referências à disciplina militar. A primeira, contida no §2° do art. 142 - "Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares" (negritei) - faz remissão às implicações administrativas cabíveis aos transgressores da disciplina militar e, principalmente, a importância que o constituinte conferiu à punição disciplinar, como instrumento de manutenção da disciplina nas Forças Armadas, excluindo a apreciação da punição disciplinar pela via do habeas corpus. A segunda, expressa no inc. LXI do art. 5° - "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei" (destaquei) - consagra que a proteção constitucional ao bem jurídico liberdade sofre mitigação, quando houver violação ao bem jurídico disciplina militar.
Assim, identificou-se em três normas da Constituição Federal a natureza constitucional conferida na tutela dos bens jurídicos hierarquia e disciplina militar.
Por sua vez, normas infraconstitucionais tratam da tutela da hierarquia e da disciplina militar, definindo a sua aplicação. Todavia, algumas dessas normas são anteriores à CF/88, exigindo a aplicação da hermenêutica jurídica na interpretação dessa normas.
Seguindo o critério da hierarquia das leis, inicialmente encontra-se a Lei Complementar n° 97, de 9 de junho de 1999, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. Em seu art. 1°, está reproduzido o art. 142 da CF/88 - "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são (...), organizadas com base na hierarquia e disciplina, (...)". (destaquei)
No âmbito das leis ordinárias encontra-se o Código Penal Militar (Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969), Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei 1.002, de 21 de outubro de 1969), ambos decretos expedidos pelos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, no uso das atribuições que lhes conferiam os Atos Institucionais n. 5 e n. 16; Estatuto dos Militares (Lei 6.880, de 9 de dezembro de 1980); Regulamento Disciplinar da Aeronáutica – RDAer (Decreto 76.322, de 22 de setembro de 1975), Regulamento Disciplinar da Marinha – RDM (Decreto 88.545, de 26 de julho de 1983); e o Regulamento Disciplinar do Exército – R-4 (Decreto 4.346, de 26 de agosto de 2002).
O Código Penal Militar (CPM), na parte especial, Livro I (Dos crimes militares em tempo de paz), assim rubricou o Título II – "dos crimes contra a autoridade ou disciplina militar" (destaquei), dispondo de 33 artigos que descrevem condutas tipificadas, explicitamente, como contrárias à autoridade (hierarquia) e à disciplina militar, como pode-se abstrair do delito de recusa de obediência – "Recusar obedecer a ordem do superior sobre assunto ou matéria de serviço, ou relativamente a dever imposto em lei, regulamento ou instrução: Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, se o fato não constitui crime mais grave." [41]
O Código de Processo Penal Militar (CPPM), na seção "Do acusador", traz disposição sobre a "fiscalização e função especial do Ministério Público", nos termos do art. 55 – "Cabe ao Ministério Público fiscalizar o cumprimento da lei penal militar, tendo em atenção especial o resguardo das normas de hierarquia e disciplina, como base da organização das Forças Armadas." (grifei). Nesse sentido, compete ao órgão ministerial militar, alcunhado na justiça militar de parquet das armas, tutelar pela hierarquia e disciplina, como exemplo: na representação para a declaração de indignidade ou de incompatibilidade para o oficialato, ou ainda, para a perda de posto e patente (inc. II, art. 116, LC 75/93); no exercício do controle externo da atividade judiciária militar (inc. II, art. 117, LC 75/93), cuja autoridade policial é exercida pelos Comandantes, Chefes ou Diretores de Organizações Militares (art. 7°, do CPPM); e na requisição de diligências investigatórias ou na instauração de Inquérito Policial Militar (inc. I, art. 117, LC 75/93).
O Estatuto dos Militares, que será abordado oportunamente, tem como finalidade regular a situação, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas dos membros das Forças Armadas. Dispõe em capítulo próprio acerca "Da hierarquia e da disciplina", asseverando que a hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. No título II - "Das obrigações e dos deveres militares" – classifica-se como crime, contravenção ou transgressão disciplinar a violação das obrigações ou dos deveres militares, conforme dispuser a legislação ou regulamentação específica. [42]
Os regulamentos disciplinares [43], que também serão melhor enfocados em capítulo próprio, são o principal instrumento de manutenção da disciplina militar no âmbito da Administração Militar, como exemplificado no art. 6º do RDAer – "A punição disciplinar só se torna necessária quando dela advém benefício para o punido, pela sua reeducação, ou para a Organização Militar a que pertence, pelo fortalecimento da disciplina e da justiça." (destaquei). O RDM e o R-4 reproduzem a definição de disciplina do Estatuto dos Militares, enquanto RDAer, se omite a esse respeito, entretanto todos descrevem em capítulo próprio o rol das condutas consideradas contravenções ou transgressões disciplinares.