Com a edição da Lei 13.774/2018 houve substanciais alterações na Lei de Organização da Justiça Militar da União (Lei 8.457/1992). Dentre as mais relevantes, merece destaque a que atribuiu competência ao juiz federal da Justiça Militar (nomenclatura dada pela Lei) para julgar monocraticamente os crimes militares praticados por civis. Estabeleceu ainda julgamento singular por juiz civil togado para militar que comete crime militar em coautoria com o civil. Assim, qualquer crime militar que envolva civil no polo ativo será julgado monocraticamente por magistrado da Justiça Militar.
Como é cediço, no Brasil, diferentemente de outros países, existem duas Justiças Militares com competências diversas. No âmbito estadual, a Justiça Militar processa e julga crimes militares praticados por policiais militares e bombeiros militares, enquanto que, em nível federal, a Justiça Militar processa e julga militares e civis acusados da prática de crime militar.
Assim, ressalta-se a primeira diferença entre as mencionadas justiças castrenses. Somente a Justiça Militar da União (JMU) julga o civil pela prática de crime militar.
Uma das características significativas da Justiça Militar da União era o julgamento de crimes militares, qualquer que fosse o agente, perante órgãos colegiados, compostos por um juiz togado e quatro juízes militares, os chamados Conselhos de Justiça.
De fato, a competência da Justiça Militar da União para julgar civil pelo cometimento de crime militar nunca foi visto com bons olhos pela comunidade jurídica internacional, notadamente pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. O argumento é de que o julgamento de civis por cortes militares viola Direitos Humanos, uma vez que não há julgamentos imparciais por autoridades judiciais vinculadas à hierarquia de comando da própria força de segurança.
No Brasil, a competência da Justiça Militar da União para julgar civil também é contestada. Nesse sentido, tramita no Supremo Tribunal Federal, desde 2013, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, cujo objetivo é de que seja reconhecida a incompetência da JMU para julgar civis.
Constata-se, dessa forma, que os organismos internacionais bem como os nacionais olvidam de duas características marcantes das Justiças Militares do Brasil que as diferenciam das Justiças Castrenses de outros países:
a) No direito comparado, em regra, a Justiça Militar não integra o Poder Judiciário.
b) No sistema do Brasil os cargos da magistratura, do ministério público e da defensoria pública, com atuação na Justiça Militar, são exercidos exclusivamente por civis, aprovados em concurso público de provas e títulos.
O fato é que o legislador, com vistas a se adequar, em certa medida, aos anseios internacionais, estabeleceu, inicialmente, no tocante à Justiça Militar Estadual, por intermédio da Emenda Constitucional 45/2004, a competência dos juízes de direito para processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis. Dessa forma, a competência monocrática do magistrado foi, curiosamente, determinada em razão do sujeito passivo do crime e não do sujeito ativo, como normalmente é feita. No âmbito federal, a competência do juiz civil para julgar crimes militares praticados por civis foi normatizada somente no ano de 2018, pela lei ora em comento.
Ocorre que, a despeito da louvável iniciativa legislativa em foco, a qual teve por escopo se harmonizar com a tese defendida por alguns órgãos nacionais e internacionais de direitos humanos relativamente ao julgamento de civil que comete crime militar, o legislador perdeu a oportunidade, sob nossa ótica, de definir relevantes pontos que têm provocado inquietações e controversas interpretações entre os operadores de direito com atuação na Justiça Militar da União.
Para melhor compreensão, foram sistematizados os seguintes tópicos:
1 - Considerando que o art. 3º da Lei de Organização da Justiça Militar da União prevê a criação de turmas no Superior Tribunal Militar (STM), os eventuais julgamentos originários e recursos que envolvam réus civis serão julgados por turmas de ministros civis ou pelo pleno do referido Tribunal Militar, cuja composição, em sua maioria, é constituída por ministros militares?
Como cediço, embora haja previsão de criação de turmas no STM, os julgamentos originários e os recursos são atualmente realizados pelo pleno do tribunal, o qual é composto por 10 oficiais generais, sendo quatro do Exército, três da Marinha, três da Aeronáutica, e por cinco ministros civis, dentre os quais três são originários do quadro de advogados, um da magistratura e um do Ministério Público Militar.
Desse modo, a lei perderá seu sentido se os julgamentos que envolverem crimes militares praticados, por exemplo, em coautoria por um civil e por um oficial general forem julgados pelo pleno do STM. Com efeito, a não criação de turma de ministros civis no STM implicará uma notável incongruência, vale dizer, o militar que comete crime militar em coautoria com um civil é julgado em primeiro grau por juiz federal da Justiça Militar, portanto um juiz civil, enquanto que, em segundo grau, é julgado por colegiado, no qual prevalece uma larga maioria de ministros militares. O mesmo raciocínio aplica-se aos recursos interpostos nos processos cujos réus são civis.
Ressalte-se que os ministros militares do Superior Tribunal Militar, ainda que vitalícios, continuam na ativa em quadros especiais (art. 3º, parágrafo segundo, da LOJMU). O fato de integrarem o Poder Judiciário não afasta a qualidade de militar dos ministros, oriundos da Marinha, Exército e Aeronáutica. Pontue-se que os militares que integram os Conselhos de Justiça na primeira instância também pertencem ao Judiciário, quando são investidos na qualidade de juízes militares, não obstante exercerem a função de juiz militar temporariamente.
Urge assim, como necessidade premente, a criação de turmas de ministros civis no STM para que haja adequação ao espírito da lei.
2 - O julgamento do militar que foi licenciado das Forças Armadas, após o cometimento do crime, deve ser feito pelo juiz federal da Justiça Militar ou pelo Conselho de Justiça? E se o militar acusado perder a condição de militar durante o processo, ou seja, quando já instalado o Conselho de Justiça?
A lei em análise estipulou a competência do juiz federal da Justiça Militar para processar e julgar civil nos casos previstos nos incisos I e III do art. 9º do Código Penal Militar (CPM). Assim sendo, o legislador, ao estipular o julgamento dos civis com previsão nos mencionados incisos do art. 9º do CPM, provocou divergências entre os operadores de direito, com atuação na Justiça Militar da União, acerca da definição do órgão que deve julgar o militar que, ao tempo do crime, era militar, mas que, em razão de ter sido licenciado das Forças Armadas após o crime, passou à condição de civil.
O equívoco, sob nossa ótica, foi o legislador vincular a competência do Juiz federal da JMU para julgar civil às hipóteses do inciso I e III do art. 9º do CPM. Bastaria fazer referência à competência do juiz togado para julgar o civil. Com efeito, o art. 9º do CPM não deveria servir de parâmetro para aferição da competência interna de órgão da Justiça Militar, mas tão somente para aferição da tipificação indireta de crime militar, para estabelecer, quando for o caso, a competência da Justiça Militar, em razão da matéria.
Como se sabe a JMU compõe-se dos seguintes órgãos: STM, Corregedoria da JMU, Juiz Corregedor Auxiliar, Conselhos de Justiça, Juízes Federais da JMU e Juízes Federais substitutos da JMU.
Destarte, exsurge o seguinte imbróglio: o juiz federal da Justiça Militar é competente para julgar o agente que era militar à época do crime, mas que, em decorrência de seu licenciamento das Forças Armadas, passou à condição de civil?
A tese que tem prevalecido nas diversas Circunscrições Judiciárias da Justiça Militar da União (CJM), notadamente na Primeira Circunscrição Judiciária Militar (Rio de Janeiro e Espírito Santo), é a de que a competência para julgar militar licenciado das Forças Armadas é a do Juiz federal da JMU. Assim sendo, quando há entendimentos dissonantes, nesse aspecto, entre os diversos operadores da JMU de outras CJM, tem-se imterposto recurso em sentido estrito, o qual, nesse caso, tem efeito suspensivo (por envolver matéria de competência) e, desse modo, há sobrestamento do feito até que o recurso seja apreciado pelo STM. É fato que essas emblemáticas situações provocam insegurança jurídica para o réu e também para os operadores de direito.
Recorde-se que, antes da atual mudança da Lei de Organização Judiciária da Justiça Militar da União, a competência monocrática do então Juiz-Auditor restringia-se, em tempo de paz, à fase anterior ao processo e à fase de execução da pena.
Sob o nosso ponto de vista, toda polêmica em menção poderia ser evitada caso o legislador tivesse estabelecido a competência dos Conselhos de Justiça para processar e julgar apenas os crimes propriamente militares, mesmo nos casos em que os militares viessem a perder a condição de militar, em virtude de licenciamento do serviço ativo, após prática de crime.
Pontue-se que os crimes propriamente militares, ou seja, aqueles que só podem ser cometidos por militares e envolvem matérias intrínsecas às atividades da caserna, exigem conhecimentos específicos da vida militar e por isso são apreciados de forma mais técnica pelos Conselhos de Justiça, os quais são constituídos por maioria de juízes militares. Dentre eles destacam-se a deserção, o abandono de posto, o despojamento desprezível, a violência contra superior.
Perdeu ainda o legislador a oportunidade de definir por lei o conceito de crime propriamente militar, conforme prevê a Constituição Federal (art. 5º, LXI).
O certo é que, qualquer que seja a tese adotada pelos tribunais haverá situações, no mínimo, inusitadas. Vejamos o caso do insubmisso, no qual o agente pratica crime militar na condição de civil, mas que só pode ser processado após ter sido incorporado às Forças Armadas, portanto na qualidade de militar da ativa. Assim, adotada a teoria da atividade para firmar a competência do órgão julgador da JMU, teremos o juiz federal da JMU julgando monocraticamente um militar em crime tipicamente militar.
Assim, independentemente da decisão que prevalecerá nos tribunais superiores e no STF, não se pode prescindir da interpretação sistemática para o deslinde dessa questão e, nesse diapasão, é imperioso considerar o que preconiza o art.9º, no seu inciso III, do Código Penal Militar, o qual equipara o militar da reserva e o militar reformado ao civil, como sujeitos ativos de crime, bem como o art. 22 do CPM, cuja redação registra que, para efeito de aplicação do CPM, é considerado militar a pessoa incorporada às Forças Armadas para nela servir em posto ou graduação.
Nesse sentido, penso que o melhor entendimento é o de que a competência para julgar o militar que foi licenciado e que, no momento do recebimento da denúncia, era civil, deve ser do juiz federal da Justiça Militar. No caso de o licenciamento do militar ocorrer quando já tiver sido instalado o Conselho de Justiça, o colegiado deve declinar da competência em favor do Juiz civil togado.
O mesmo raciocínio, sob nossa ótica, deve ser aplicado ao militar da reserva ou reformado. Vale assinalar que o art. 12 do CPM registra que, para fins de aplicação do Código, o militar da reserva e o militar reformado só são equiparados ao militar da ativa quando forem empregados na administração militar.
Observe que o militar da reserva, bacharel em direito, pode ser inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, após aprovado em prova da OAB, sem o impedimento que existe para militar da ativa. Dessa forma, o militar da reserva, tal como o civil, é livre para concorrer a qualquer cargo público, sem os obstáculos que são inerentes aos militares da ativa.
Ademais, um crime militar praticado por militar da reserva ou militar reformado dificilmente provocará reflexo no âmbito da disciplina e hierarquia militar. Note-se que um sargento da reserva, diferentemente do sargento da ativa, não pratica o crime de violência contra superior (art. 157 do CPM) quando agride, por exemplo, um capitão da ativa.
Em conclusão, entendo, com as vênias dos que pensam em contrário, que teríamos um julgamento mais técnico pelo Juiz federal da Justiça Militar da União nos casos que envolvem crimes impropriamente militares, uma vez que tais crimes demandam conhecimentos técnicos jurídicos. Com efeito, como exigir do juiz militar conhecimentos doutrinários referentes a crimes, por exemplo, de peculato, excesso de exação, licitação e demais outros constantes no CPM, no Código Penal comum e na legislação extravagante. Por outro lado, no caso de crimes propriamente militares, o julgamento ganharia mais técnica quando julgado pelos Conselhos de Justiças.
Referências:
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 1.001, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. CÓDIGO PENAL MILITAR. BRASÍLIA. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. DISPONÍVEL EM: <HTTP://WWW.PLANALTO.GOV.BR/CCIVIL_03/DECRETO-LEI/DEL1001COMPILADO.HTM>. ACESSO EM: 09 ABR. 2019
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 1.002, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR. BRASÍLIA. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. DISPONÍVEL EM: <HTTP://WWW.PLANALTO.GOV.BR/CCIVIL_03/DECRETO-LEI/DEL1002.HTM> ACESSO EM: 09 ABR. 2019.
BRASIL. LEI Nº 13.774, DE 24 DE SETEMBRO DE 2018. BRASÍLIA. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO DE 25 DE SETEMBRO DE 2018. DISPONÍVEL EM: <HTTP://WWW.PLANALTO.GOV.BR/CCIVIL_03/_ATO2015-2018/2018/LEI/L13774.HTM>. ACESSO EM: 09 ABR. 2019.
BRASIL. LEI 8.457, DE 04 DE SETEMBRO DE 1992. BRASÍLIA. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO DE 08 DE SETEMBRO DE 1992. DISPONÍVEL EM: <HTTP://WWW.PLANALTO.GOV.BR/CCIVIL_03/LEIS/L8457.HTM>. ACESSO EM: 09 ABR 2019