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Considerações preliminares sobre a Lei nº 11.106/2005

1. RAPTO (ARTS. 219 A 222 DO CP)

            1.1. Rapto violento ou mediante fraude (art. 219)

            Dispositivo anterior

            Novo dispositivo

            "Art. 219. Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso.

            Pena – reclusão, de dois a quatro anos."

            "Art. 148. Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado:

            [...]

            § 1.º A pena é de reclusão, de dois a cinco anos:

            [...]

            V – se o crime é praticado com fins libidinosos."

            A privação da liberdade de pessoa (mediante violência, grave ameaça ou fraude), objetivando com ela praticar atos libidinosos, antes da Lei n. 11.106/2005, configurava:

            1) rapto violento ou mediante fraude (art. 219 do CP), se a vítima fosse mulher honesta (expressão abolida do CP);

            2) seqüestro ou cárcere privado na modalidade fundamental (art. 148, caput, do CP), se o ofendido fosse mulher "desonesta" (prostituta, promíscua, de vida desregrada etc.) ou homem.

            Sob a égide da nova lei, esses comportamentos receberam tratamento mais rigoroso, constituindo seqüestro ou cárcere privado qualificado (pena de reclusão, de 2 a 5 anos). Trata-se de novatio legis in pejus.

            1.2. Rapto consensual (art. 220)

            O art. 220 do CP tipificava a conduta de quem "raptasse" mulher menor de 18 anos e maior de 14, com o seu consentimento. Com a revogação do dispositivo, operou-se abolitio criminis.

            1.3. Causas de diminuição de pena no rapto e concurso de rapto com outro delito (arts. 221 e 222)

            Foram revogados também os arts. 221 e 222 do CP, os quais dispunham:

            "Art. 221. É diminuída de um terço a pena, se o rapto é para fim de casamento, e de metade, se o agente, sem ter praticado com a vítima qualquer ato libidinoso, a restitui à liberdade ou a coloca em lugar seguro, à disposição da família".

            "Art. 222. Se o agente, ao efetuar o rapto, ou em seguida a este, pratica outro crime contra a raptada, aplicam-se cumulativamente a pena correspondente ao rapto e a cominada ao outro crime".


2. SEQÜESTRO OU CÁRCERE PRIVADO QUALIFICADO (ART. 148, § 1.º, DO CP)

            Além das mudanças já destacadas no item 1.1., outras ocorreram no art. 148, § 1.º, do CP, como se verifica no quadro abaixo.

            Dispositivo anterior

            Novo dispositivo

            "Art. 148. Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado:

            [...]

            § 1.º A pena é de reclusão, de dois a cinco anos:

            I – se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge do agente ou maior de 60 (sessenta) anos;

            II – se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital;

            III – se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias."

            "Art. 148. Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado.

            § 1.º A pena é de reclusão, de dois a cinco anos:

            I – se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos;

            II – se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital;

            III – se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias;

            IV – se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos;

            V – se o crime é praticado com fins libidinosos." (grifo nosso).

            Em resumo, vê-se que:

            1) No inc. I, acrescentou-se a expressão "companheiro" como fator de exasperação, sanando a omissão anterior, que só punia mais severamente o delito praticado contra cônjuge.

            2) Acrescentou-se (além do inc. V) o inc. IV, o qual qualifica o crime cometido contra menores de 18 anos. Cabe ponderar que, pela boa técnica legislativa, a previsão da qualificadora relativa à idade da vítima (menor de 18 ou maior de 60 anos) deveria ser prevista no mesmo inciso e não em dois, como agora está posto.


3. CAUSA DE AUMENTO DE PENA NOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES (ART. 226 DO CP)

            Dispositivo anterior

            Novo dispositivo

            "Art. 226. A pena é aumentada de quarta parte:

            I – se o crime é cometido com o concurso de duas ou mais pessoas;

            II – se o agente é ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela;

            III – se o agente é casado."

            "Art. 226. A pena é aumentada:

            I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;

            II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela;

            III – (revogado)." (grifo nosso).

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            Há três alterações:

            1.ª) A primeira modificação diz respeito à quantidade do aumento da pena. Pela redação anterior, a pena era sempre aumentada de quarta parte. Agora, esse aumento só se dá na hipótese do crime sexual ser cometido por duas ou mais pessoas (concurso de agentes). O aumento, no entanto, passa a ser de metade na hipótese de o agente do crime sexual ser ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima, ou, por qualquer outro título, tiver autoridade sobre ela.

            2.ª) Além disso, fica evidente a ampliação do rol das pessoas sujeitas à repressão penal mais severa. Assim, para certos casos, como o do tio, a causa de aumento só tem incidência nos crimes praticados depois da vigência da nova lei.

            Interessante notar que o acréscimo da expressão "cônjuge" põe por termo à antiga discussão sobre a possibilidade de o marido cometer estupro (ou mero constrangimento ilegal) contra sua esposa.

            3.ª) Por fim, foi revogado o inc. III, o qual previa aumento de pena se o agente fosse casado. Todos sabem que o aumento da pena para o agente casado do crime sexual estava vinculado ao fato de não poder reparar o mal pelo casamento. Com o fim da indissolubilidade do casamento, esse argumento não mais procede (confira voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF – Cezar Peluso[1], em que ele já sinalizara a inconstitucionalidade do inc. III). Lembre-se, ainda, de que o aumento também se fundamentava na lesão moral à família do réu (esposa e filhos), conseqüência não mais amparada pela norma penal (que deve dedicar-se à proteção exclusiva de bens jurídicos).


4. POSSE SEXUAL E ATENTADO AO PUDOR MEDIANTE FRAUDE (ARTS. 215 E 216 DO CP)

            Dispositivos anteriores

            Novos dispositivos

            "Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude:

            Pena – reclusão, de um a três anos.

            [...]

            Art. 216. Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

            Pena – reclusão, de um a dois anos.

            Parágrafo único. Se a ofendida é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos:

            Pena – reclusão, de dois a quatro anos."

            "Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude:

            Pena – reclusão, de um a três anos.

            [...]

            Art. 216. Induzir alguém, mediante fraude, a praticar ou submeter-se à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

            Pena – reclusão, de um a dois anos.

            Parágrafo único. Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (quatorze) anos:

            Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos." (grifo nosso).

            4.1. Posse sexual mediante fraude

            Antes da mudança, o crime em questão tratava da conduta do homem o qual, mediante fraude, mantivesse conjunção carnal com mulher honesta. Agora, com redação mais ampla, o crime consiste no comportamento do homem que, por meio de fraude, mantém conjunção carnal com mulher. Foi extirpado o requisito da honestidade de mulher para poder figurar como sujeito passivo do delito. Qualquer mulher, inclusive a promíscua em matéria de sexualidade, está amparada pelo novo dispositivo.

            No tocante aos demais aspectos, o crime, para sua caracterização, exige os mesmos requisitos.

            4.2. Atentado ao pudor mediante fraude

            Significativa a alteração do crime previsto no art. 216 do CP. A redação anterior cuidava da conduta daquele que induzisse mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se praticasse ato libidinoso diverso da conjunção carnal.

            Agora, o sujeito passivo do crime pode ser qualquer pessoa, porque o texto fala em induzir alguém (novamente foi extirpada a expressão "mulher honesta"). Além disso, o verbo induzir (criar no pensamento de alguém algo ainda não existente) continua fazendo menção à postura da vítima – a praticar ou submeter-se à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal. O sujeito passivo – seja mulher ou homem – é levado, pela fraude, a praticar, na pessoa do sujeito ativo, ato libidinoso diverso da conjunção carnal ou então a suportar que nele seja praticado o ato de conteúdo sexual, com exceção da conjunção carnal.

            A alteração constante do parágrafo único decorre do fato de o sujeito passivo ser qualquer pessoa e não mais só a mulher honesta. Não houve alteração na idade da vítima para fins do crime se apenado de forma mais grave – menor de 18 e maior de 14 anos.


5. DEMAIS DISPOSITIVOS SUPRIMIDOS

            O art. 5.º da Lei n. 11.106/2005 dispõe:

            "Ficam revogados os incs. VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inc. III do caput do art. 226, o § 3.º do art. 231 e o art. 240 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal".

            5.1. Casamento subseqüente como causa extintiva da punibilidade

            Os incs. VII e VIII do art. 107 do CP, revogados pela nova lei, tratavam do subsequens matrimonium (da vítima com o agente e dela com terceiro) como causa extintiva da punibilidade. A supressão, certamente inspirada, entre outros fatores, nas fraudes existentes, nas quais se viam casamentos arranjados com o único escopo de evitar punições criminais, não tem efeito retroativo, não atingindo fatos anteriores à sua entrada em vigor (29 de março de 2005).

            Na hipótese do inc. VII (casamento da vítima com o agente), a extinção da punibilidade ocorria com a celebração do matrimônio.

            Em relação ao inc. VIII (casamento da vítima com terceiro), a extinção do jus puniendi acontecia após o decurso do prazo de 60 dias da celebração do casamento, sem que o sujeito passivo requeresse o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal.

            A nova lei não se aplica aos crimes sexuais ocorridos antes de sua entrada em vigor, independentemente da data na qual o matrimônio ocorreu. Vale dizer, a lei não retroage, posto que gravosa, atingindo fatos anteriores a 29 de março de 2005. Nesses, o casamento da vítima com o agente ou dela com terceiro, nas condições dos dispositivos revogados, extinguirá a punibilidade, ainda que o matrimônio ocorra após a entrada em vigor da Lei n. 11.106/2005[2].

            Cabe ponderar que a alteração, notadamente no que se refere ao casamento da vítima com o agente, poderá acarretar situações injustas. Nos crimes contra a liberdade sexual de ação pública, como o estupro praticado mediante violência real (Súmula n. 608 do STF), ainda que a ofendida se case com o autor do fato, deverá o Estado puni-lo. A proteção à família cede espaço ao jus puniendi estatal.

            Esse problema é amenizado nos delitos acima mencionados que se processam por ação privada, já que nesses a iniciativa da ação penal e da continuidade do processo dependem da vontade da vítima.

            5.2. Sedução e adultério

            O art. 217 do CP punia a conduta do homem o qual praticasse conjunção carnal completa ou incompleta com mulher virgem que tivesse entre 14 e 18 anos, aproveitando-se de sua inexperiência ou da justificável confiança nele depositada. Esse comportamento não configura mais ilícito penal; houve, portanto, abolitio criminis.

            Isso também ocorreu com o adultério (art. 240 do CP), o qual possuía a seguinte descrição:

            "Art. 240. Cometer adultério:

            Pena – detenção, de quinze dias a seis meses.

            § 1.º Incorre na mesma pena o co-réu.

            § 2.º A ação penal somente pode ser intentada pelo cônjuge ofendido, e dentro de 1 (um) mês após o conhecimento do fato.

            § 3.º A ação penal não pode ser intentada:

            I – pelo cônjuge desquitado;

            II – pelo cônjuge que consentiu no adultério ou o perdoou, expressa ou tacitamente.

            § 4.º O juiz pode deixar de aplicar a pena:

            I – se havia cessado a vida em comum dos cônjuges;

            II – se o querelante havia praticado qualquer dos atos previstos no art. 317 do Código Civil".

            Essa conduta, após 29 de março de 2005, representa apenas ilícito civil.


6. LENOCÍNIO E TRÁFICO DE PESSOAS

            O legislador alterou, com coerência lógica, a denominação do Capítulo V, do Título IV, do CP. Agora, no referido capítulo do título relativo aos crimes contra os costumes, estão previstos, além da mediação para servir à lascívia de outrem (art. 227), o crime de tráfico internacional de pessoas (não mais só de mulheres) no art. 231 e o tráfico interno de pessoas no art. 231-A. A ampliação do art. 231 do CP para tráfico de homens e a punição do tráfico interno constituem reclamos antigos da doutrina e recomendações das Nações Unidas, uma vez que o tráfico de pessoas representa parcela da criminalidade organizada a qual movimenta cifras bilionárias no mundo, perdendo somente para o tráfico internacional de armas e tóxicos.

            Ressalte-se, por fim, ter sido revogado o § 3.º do art. 231, em que se via a imposição de multa, além da pena privativa de liberdade, quando o tráfico internacional era praticado com fim de lucro.


Notas

             [1] STF, RHC n. 82.959, rel. Cezar Peluso, Informativo STF n. 334.

             [2] Nesse sentido: JUNQUEIRA, Gustavo O. Diniz. As recentes reformas do CP. Carta Forense, São Paulo, ano III, n. 23, p.15, abr. 2005.

Sobre os autores
André Estefam Araújo Lima

promotor de Justiça, professor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

Pedro Franco de Campos

procurador de Justiça em São Paulo, professor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, André Estefam Araújo; CAMPOS, Pedro Franco. Considerações preliminares sobre a Lei nº 11.106/2005. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 822, 3 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7366. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Título original: "Considerações preliminares sobre a Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005".

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