CONCLUSÃO
É de se verificar que, mesmo antes do advento da Constituição da República de 1988, já pairava divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade ou não de a prova ilícita ser admitida ao Processo Penal. Referida divergência foi estancada pelo legislador constituinte de 1988 que vedou, de modo categórico, a admissão processual da prova obtida por meios ilícitos, porém, a doutrina e os Tribunais mantém viva a controvérsia e permanecem suscitando a relevante questão.
Assim, continua o entendimento de que a vedação estatuída no art. 5º, inciso LVI da Carta Magna não se dá de modo absoluto, eis que diante de casos concretos a doutrina e a jurisprudência pátrias admitem a sua relativização.
Uma explicação para tanto está na fronteira muito tênue entre a preservação dos direitos fundamentais que o mencionado dispositivo almeja proteger, e a preservação de direitos de terceiros ou da coletividade. Deste modo, somente quando a invasão na esfera dos direitos fundamentais se mostrar indispensável, poder-se-á fazer uso deste tipo de prova. Por isso mesmo é que se torna impossível afirmar, sem o exame do caso concreto à luz dos princípios da proporcionalidade ou razoabilidade, se determinada prova pode ou não ser utilizada no Processo Penal.
Com efeito, o objetivo do legislador constituinte, ao vedar a admissão das provas obtidas por meios ilícitos ao processo, é estabelecer limitação à atividade de persecução penal do Estado, eis que aludida atividade não pode se dar a qualquer preço, extrapolando direitos e garantias individuais, sob pena de inconstitucionalidade.
Por isso, faz-se possível afastar de um processo prova, ainda que relevante e eficaz, que possa levar o julgador à certeza dos fatos alegados, desde que tal prova tenha sido colhida com afronta à norma de direito material ou processual. A doutrina majoritária entende que a prova ilícita ou ilegítima não pode ser produzida pela parte, tampouco valorada pelo julgador, de modo que descabe falar, como pensam alguns juristas, na possibilidade de utilização irrestrita da prova ilícita, com a punição da parte que a produziu, pelo ilícito civil, penal ou administrativo verificado na sua obtenção.
Destarte, não poderá o juiz fundamentar sua decisão ou sentença em prova deste modo produzida, eis que estaria valorando prova que a Constituição da República considera inadmissível a provar os fatos e, ao considerar inadmissível, tem-na como não-prova, ou seja, como prova inexistente juridicamente.
Atualmente, porém, desenvolve-se enfaticamente posicionamento advogando que a prova proibida, ilícita ou ilegitimamente adquirida, pode ser utilizada processualmente e valorada pelo magistrado, desde que seja essa prova a única existente ou mesmo a prova hábil a promover a absolvição do acusado. Admite-se, então, que o réu faça uso da prova ilícita ou ilegítima, de vez que a proibição estabelecida pela Carta Magna existe para assegurar respeito a direito individual do acusado, de modo que se lhe abre a possibilidade de fazer uso deste tipo de prova se conseguir, por meio dela, demonstrar sua inocência, sendo certo que estaria seu agir acobertado por causas excludentes de ilicitude, como o estado de necessidade ou legítima defesa.
Importante também é mencionar que a doutrina e a jurisprudência vêm relativizando a proibição da utilização da prova ilícita ao Processo Penal, invocando, para tanto, os princípios da razoabilidade ou proporcionalidade. Assim, permite-se a utilização da prova obtida de forma ilícita, em vista da relevância do interesse público a ser protegido pela prova obtida, de modo que, se em casos extremamente graves a obtenção da prova viciada for a única forma, possível e razoável, de proteção a valores outros, tidos por mais urgentes na concreta avaliação do caso em questão, pode a prova viciada ser utilizada.
Por isso é de se entender que nenhum juiz, em sã consciência, deverá se animar cometendo a enorme injustiça de condenar o réu, apenas por medo de fundamentar sua sentença em prova supostamente ilícita, já que a conduta do acusado, ao utilizar a prova viciada em seu favor, denota exclusão de ilicitude, para o que a prova produzida não será tida por ilícita, eis que admitida sua produção pelo próprio ordenamento jurídico.
Se, contudo, a prova ilícita, sem que se exclua dela esse vício, ingressar no processo, vulnerando norma constitucional, deverá o magistrado proceder ao seu desentranhamento dos autos, já que não poderá levar em consideração mencionada prova em decisão ou sentença que venha a proferir. Se isso ocorrer, poderá o acusado requerer ao julgador que determine a exclusão da prova ilícita dos autos. Isso porque a prova ilícita é tida por prova inexistente juridicamente e não hábil à comprovação dos fatos.
Conclui-se, assim, que, se de um lado é certo que o Estado-Juiz deve solucionar, de modo mais justo quanto possível, o conflito que lhe é colocado à apreciação, para o que deverá estar convencido dos fatos alegados, não se pode olvidar que essa busca pela certeza tem limites que devem ser observados, sob pena de imprestabilidade da prova colhida em desrespeito a direito individual, assegurado em sede constitucional. Não se deve esquecer, entretanto, de que os formalismos processuais não podem ser exaltados a ponto de sufocar direitos fundamentais, como a liberdade, bem maior em jogo no Processo Penal.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
1 Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.
2 Ibidem, p. 31-33.
3 Ibidem, p. 34.
4 Ibidem, p. 53-54.
5 Ibidem, p. 54.
6 Idem.
7 Idem.
8 Alves, José Carlos Moreira. Direito romano. v. I. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 222-226.
9 Silva, Ovídio Baptista da; Gomes, Fábio. Teoria geral do processo civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 11.
10 Foucault, op. cit., p. 56.
11 Ibidem, p. 58.
12 Ibidem, p. 59.
13 "Havia (…) provas como o ordálio da água, que consistia em amarrar a mão direita ao pé esquerdo de uma pessoa e atirá-la na água. Se ela não se afogasse, perdia o processo, porque a própria água não a recebia bem e, se ela se afogasse, teria ganho o processo visto que a água não a teria rejeitado." Foucault, op. cit., p. 60.
14 Silva; Gomes, op. cit., p. 12.
15 Foucault, op. cit., p. 62.
16 Ibidem, p. 64-66.
17 Ibidem, p. 78.
18 RUBIO, David Sánchez; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de. (coord.) Anuário Ibero-Americano de direitos humanos (2001/2002). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 178.
19 Por todos, Paulo Rangel aduz que o Processo Penal estaria mesmo a buscar a verdade real, vide RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 281.
20 RUBIO; FLORES; CARVALHO, op. cit., p. 175.
21 Ibidem, p. 176.
22 Ibidem, p. 177.
23 RANGEL, op. cit., p. 245.
24 MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 256.
25 RANGEL, op. cit., p. 246
26 MIRABETE, op. cit., p. 257-258.
27 Ibidem, p. 266.
28 RANGEL, op. cit., p. 251.
29 MIRABETE, op. cit., p. 266.
30 RANGEL, op. cit., p. 279.
31 Ibidem, p. 281
32 Ibidem, p. 252.
33 PEDROSO, Fernando de Almeida. Prova penal. Rio de Janeiro: Aide, 1994. p. 161.
34 Ibidem, p. 161.
35 SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil. v. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 301.
36 MENDES, Maria Gilmaise de Oliveira. Direito à intimidade e interceptações telefônicas. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999. p. 105.
37 BARROSO, Luis Roberto apud SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. 1. ed. 3. tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 180.
38 PEDROSO, op. cit., p. 166. O autor se reporta a julgado americano, em que os juízes Brandeis e Holmes repudiaram prova formada e produzida ilegalmente, em homenagem à integridade jurídica.
39 STF, Ação Penal 307-3 DF, Plenário, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU, 13 out. 1955; RTJ 162/03-340 apud MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 119.
40 SARMENTO, op. cit., p. 77-96.
41 SARMENTO, op. cit., p. 182.
42 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 88.
43 HAMILTON, Sérgio Demoro. Processo penal – reflexões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 79
44 GUERRA FILHO, Willis Santiago apud HAMILTON, op. cit., p. 75.
45 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 116.
46 Afrânio Silva Jardim e Paulo Rangel filiam-se à corrente que assevera que a conduta do réu, ao utilizar a prova colhida com aparente infringência às normas legais, é lícita, já que há exclusão de ilicitude quando este, para demostrar sua inocência, intercepta ligação telefônica sem autorização judicial, por exemplo. Afirmam que o acusado estaria, então, diante de verdadeiro estado de necessidade justificante, sendo sua conduta, deste modo, conforme o direito. RANGEL, op. cit., p. 260.
47 SARMENTO, op. cit., p 182.
48 HAMILTON, op. cit., p. 73.
49 CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de. O processo penal em face da Constituição: princípios constitucionais do processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 47-57
50 RANGEL, op. cit., p. 256-259.
51 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A ilicitude na obtenção da prova e sua aferição. Disponível em <https://www.jus.com.br> Acesso em: 18 out. 2002.
52 RANGEL, op. cit., p. 259
53 SARMENTO, op. cit., p. 179.
54 RANGEL, op. cit., p. 257.
55 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 50.
56 Idem.
57 Idem. A autora cita o número da revista em que referido acórdão foi publicado: RTJ 110/798.
58 Idem. Decisão publicada na RTJ 122/47.
59 Idem.
60 MENDES, op. cit., p. 127. A autora traça um retrospecto, em que aponta as correntes doutrinárias que entendiam pela admissibilidade e pela não admissão da prova ilícita no processo, quer civil, quer criminal, antes do advento da Constituição da República de 1988.
61 GUERRA, Cordeiro apud MENDES, ibidem, p. 128.
62 MONTEIRO, Raphael de Barros apud MENDES, idem.
63 FERNANDES, op. cit., p. 85-86.
64 PEDROSO, op. cit., p. 161.
65 Ibidem, p. 162.
66 OMES FILHO, Antonio Magalhães apud MOURA, op. cit.
67 FERNANDES, op. cit., p. 90.
68 GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, op. cit., p. 121.
69 Sobre o tema em comento, FERNANDES, op. cit., p. 91.
70 TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 263. Em tradução livre do teor do art. 191. do Código de Processo Penal italiano, tem-se que: Art. 191.1. A prova adquirida com violação aos deveres estabelecidos em lei não pode ser utilizada. 2. A proibição de utilização é reconhecível de ofício em qualquer estado e grau de procedimento.
71 Ibidem, p. 77-79.
72 SARMENTO, op. cit., p. 178.
73 GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, op. cit., p. 121
74 Idem.