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Reflexões sobre a desmilitarização da polícia

Agenda 04/06/2019 às 15:24

Estudo dos efeitos da militarização da polícia na sociedade brasileira e no próprio papel da corporação no combate à criminalidade.

1 INTRODUÇÃO

A origem das polícias militares no Brasil está relacionada à vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808. Nesse contexto, em 13 de Maio de 1809, foi criada através de decreto a “Guarda Real de Polícia”, a primeira polícia militar no Brasil.

Após a abdicação de Dom Pedro I ao trono imperial brasileiro, o país passou a ser governado por regentes, uma vez que Dom Pedro II, sucessor ao trono, tinha apenas seis anos de idade.

O Período Regencial (1831-1840) foi marcado por grande descontentamento popular, e nesse ínterim, eclodiram pelo país vários movimentos revolucionários, como a Cabanagem, no Pará, a Balaiada, no Maranhão, a Sabinada, na Bahia e a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul.

O Poder Central considerou esses movimentos nocivos à estabilidade do Império e à ordem pública. Assim, o padre Antônio Diogo Feijó, então Ministro da Justiça, sugeriu a criação do Corpo de Guardas Municipais Permanentes para atuar no Rio de Janeiro.

O decreto regencial que fez surgir a referida corporação permitia o estabelecimento de instituições semelhantes nas demais províncias do país. Com isso, as províncias, acuadas com a instabilidade popular, aderiram à formação de suas próprias polícias. Essas corporações provinciais passaram a ser denominadas de Polícia Militar a partir da Constituição Federal de 1946. Dessa forma, cada unidade da nação passou a ter sua própria corporação.

Com o breve histórico, podemos constatar que a intensificação do militarismo se deu com o advento dos movimentos sociais. A própria criação da Polícia Militar remonta ao surgimento da opressão como um todo no Brasil, sempre atrelada aos interesses das classes dominantes e ao seu poder político, o qual permitiu e ainda permite a elas utilizar a máquina estatal da forma mais conveniente. A Polícia Militar, como braço armado do Estado elitista brasileiro, sempre participou da criminalização dos movimentos sociais e das minorias.


2 CONSEQUÊNCIAS DA MILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA

À Polícia Militar sempre coube o papel de fazer uso da força em nome da proteção do Estado. Esse quadro se intensificou na Ditadura Militar, onde o modelo de segurança pública adotado pela organização militar era o de repressão.

Entretanto, mesmo passada a Ditadura Militar, verificamos que a polícia continua a fazer uso da repressão, das técnicas de combate ao inimigo e das práticas belicistas. Antes eram os subversivos, hoje os “inimigos” são aqueles que se adequam ao estereótipo dos criminosos – os negros, os pobres e aqueles que questionam a conjuntura política e social do País.

Os mais de vinte anos que o Brasil viveu sob um regime militar antidemocrático podem ter terminado nas eleições presidenciais civis de 1984, mas a influência que as Forças Armadas exercem no imaginário popular continua até hoje. Para além do lobby na Assembléia Nacional Constituinte, que garantiu a manutenção de ministérios militares e da Justiça Militar, a própria Polícia Militar se perfaz como uma lembrança recorrente do período que começou em 1964 e que foi marcado pelo autoritarismo e pelo uso do terror como arma.

Isso fica mais evidente a partir do momento em que parcela da população hoje não confia na Polícia Militar, como demonstra pesquisa de 2009 realizada pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS) com mil cidadãos em todo o estado do Rio de Janeiro, em que 49% dos entrevistados afirmaram que sentiriam medo de uma abordagem numa blitz da Polícia Militar por motivos que variam de despreparo dos policiais a violência.

Faz-se indispensável ressaltar que, de acordo com o 5º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, em 2010, 42,7 civis morreram para cada policial durante confrontos no Rio de Janeiro, número que subiu para 43,6 em 2012 enquanto o índice de outras cidades pesquisadas, como São Paulo, diminuiu durante o mesmo período.

É interessante notar que o despreparo dos policiais militares para lidar com membros da sociedade civil e a violência característica da corporação – mesmo que esta última seja, muitas vezes, ratificada pelos ecos conservadores de uma sociedade civil frustrada por políticas ineficazes de segurança pública – estão intimamente ligadas com a contradição existente entre as noções de Polícia e Exército. Nas palavras de Souza (p. 71-72):

Embora saibamos que a polícia procura manter a ordem pública e a paz social, trabalhando contra o crime e na gestão dos conflitos sociais de forma permanente e com vigilância constante, o exército, de outra forma, procura manter a soberania de um determinado país contra a intervenção externa de um inimigo. Sempre se fala que a polícia e o exército detêm o monopólio estatal da força física por meio do uso autorizado e legal da arma. Entretanto, embora a autorização para o uso da força seja uma característica fundadora destas duas instituições, é importante ressaltar que a polícia é caracterizada pela ausência do uso sistemático da força enquanto que o exército preconiza o uso da arma como instrumento dissuasório por excelência. Além do mais, a doutrina, armamento, instrução e treinamento da Polícia e do Exército são necessariamente distintos.

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A existência da Polícia Militar ainda hoje só é explicada pela estagnação na cultura policial depois do fim da ditadura militar (VALENTE, 2012), e, como já foi dito, o modelo de segurança pública que ela representa, baseado na repressão como única forma de solução para a criminalidade, foi validado pela Assembléia Nacional Constituinte, assim como pela mídia diariamente em seus programas policiais, que fortalecem as mesmas idéias.

Como suposta alternativa a este modelo de segurança pública, que encontra respaldo na lógica do pavor e serve como arma aos autocratas burgueses contra as classes ditas perigosas – “se presume que as classes superiores devem ser protegidas e não policiadas” (VALENTE, 2012, p. 205) –, o Governo Federal brasileiro tem apoiado as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Embora com isso o Poder Público pudesse ter tentado aproximar os agentes da segurança pública das comunidades, o que viria a criar uma polícia mais cidadã, os atuais acontecimentos apontam que os reais objetivos devem ser outros.

Depois da chegada das UPPs às comunidades cariocas, foi observado um aumento no número de desaparecimentos, o que teve bastante destaque nas redes sociais com o caso do pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido após ser detido por policiais da UPP para interrogatório. Segundo Valente (2012, p. 205), a causa principal desse recrudescimento na ação da Polícia Militar nas comunidades cariocas se deveu à realização de dois megaeventos no Rio de Janeiro (e em outras cidades do Brasil) nos próximos anos – a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Essa criminalização da pobreza não atinge apenas os moradores das comunidades, como também mendigos e vendedores ambulantes, tratados com medidas nitidamente higienistas, objetivando a remoção desses grupos dos espaços urbanos que interessam aos donos do capital.

Em sentido contrário, defendem Nascimento e Brasil (2008, p. 41-43) que a simples fusão das Polícias Militar e Civil numa única corporação com a natureza da segunda não resolveria o problema da segurança pública, visto que há várias diferenças entre as duas atualmente. Por outro lado, os autores são a favor de pautas que coadunam com a desmilitarização da polícia, como a unificação de carreiras e a desvinculação das Polícias Militares das Forças Armadas.

Concordamos com os autores que uma simples fusão não seria suficiente para resolver a crise de segurança pública, visto que há problemas de abuso de autoridade e desrespeito aos direitos humanos também na Polícia Civil, mas discordamos que a existência de uma Polícia Militar seja compatível com Forças de Seguranças congruentes com os fins da democracia. É necessário que haja uma conscientização da polícia como um todo sobre a noção de cidadania e detenção de direitos; mesmo que possa haver mais propostas progressistas por parte da Polícia Militar do que da Polícia Civil, o militarismo não condiz com a função da polícia na sociedade, qual seja, nas palavras do próprio Nascimento (2008, p. 37):

Ora, ao contrário, o que se almeja contemporaneamente é que a instituição policial seja concebida como uma organização a serviço da cidadania, o que pressupõe a vigência, desde seus procedimentos mais corriqueiros, de métodos de ação, conteúdos e objetivos orientados para a salvaguarda dos Direitos Humanos. Não se trata, então, de se articular a exigência por uma organização policial capaz de – como se tornou usual dizer – “respeitar os Direitos Humanos”. Não, porque tal construção pressupõe que a polícia tenha outra atividade a desempenhar que não, precisamente, a de proteger aqueles Direitos. O respeito aos Direitos Humanos não é algo que se possa agregar à função policial. Antes disso, trata-se da própria substância da ação policial fazer respeitar os Direitos Humanos. Ou a polícia serve para isso ou não se deve esperar dela qualquer resultado efetivo quanto à segurança pública.


3 CONCLUSÃO

A problemática na militarização da polícia não está no uso da farda, ou mesmo na utilização de armas, e sim na sua formação, na sua percepção maniqueísta de que a sociedade é dividida entre cidadãos de bem e criminosos, percepção esta que cria a idea de que há um inimigo a ser combatido diretamente. O cidadão de boa índole precisa ser protegido, enquanto quem está do outro lado merece ser policiado e repreendido.

Atualmente, o inimigo e alvo da repreensão policial é o indivíduo concebido pela sociedade brasileira como potencialmente perigoso, estereotipado no homem negro, morador de favela, pobre e sem estudo. A segregação social e racial arraigada nas classes dominantes encontra expressão na polícia militar, que é utilizada para sobrepujar os que o Estado e classes dominantes considerarem nocivos.

As manifestações que ocorreram durante a Copa das confederações revelaram para muitos brasileiros que o aparato policial é usado não apenas para aprofundar a segregação social, mas também para oprimir as ações que questionam os arranjos políticos e sociais sob os quais vivemos.

A formação de cunho militar é desnecessariamente rígida e impõe restrições de direitos ao próprio policial, o que repercute no tratamento que o profissional dá à sociedade civil. O princípio da Hierarquia presente no militarismo oprime os profissionais de posto mais baixo e limita sua liberdade de expressão, criando um ciclo no qual o maior abusa do menor, até chegar à base: a sociedade civil.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Hanrrikson de. Desaparecimentos em favelas do Rio aumentam após início das UPPs. UOL, Rio de Janeiro, 3 ago. 2013. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/08/03/desaparecimentos-aumentaram-em-favelas-do-rio-apos-inicio-das-upps.htm>. Acesso em: 24 out. 2013.

BONIS, Gabriel. É possível desmilitarizar a polícia brasileira? Carta Capital, 21 ago. 2013. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/por-uma-policia-desmilitarizada-1509.html>. Acesso em: 20 out. 2013.

MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Polícia Militar, 200 anos de distância. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 mai. 2009. Disponível em: <http://www.jb.com.br/capa/noticias/2009/05/12/policia-militar-200-anos-de-distancia>. Acesso em: 20 out. 2013.

NASCIMENTO, Isaac Rodrigues do; BRASIL, Maria Glaucíria Mota. A doutrina dos direitos humanos nas instituições policiais. 2008. TCC (Graduação) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008.

SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Militarização da segurança pública no Brasil: respostas recentes a um problema antigo. Forum, Medellín, n. 2, p. 69-90, jul./dez. 2011.

VALENTE, Júlia Leite. “Polícia Militar” é um oximoro: a militarização da segurança pública no Brasil. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP, Marília, ed. 10, p. 204-224, dez. 2012.

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