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Fiscalização do trânsito pela Guarda Municipal:

possibilidade jurídica

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Agenda 15/11/2005 às 00:00

1.APRESENTAÇÃO: definindo o problema objeto de estudo.

            Nosso estudo tem como base os fundamentos de precedentes judiciais que determinaram a suspensão dos efeitos de todas as multas lavradas pela guarda municipal e declararam nulidade da norma municipal que regulamentava a atuação destes agentes públicos.

            Alguns precedentes têm principalmente como fundamento constitucional o fato de o art. 144 § 8º da Magna Carta não se referir ao exercício do poder de polícia para apuração de infrações de trânsito como competência da guarda municipal, inclusive para aplicação de multas.

            Da análise da polêmica emerge a questão fundamental: pode a guarda municipal investir-se de competência para fiscalizar o trânsito e para aplicar multas?

            Pretendemos com este modesto estudo responder à questão suscitada com objetividade e ampla fundamentação de modo a colaborar efetivamente com as discussões acerca do tema.


2.Pode a guarda municipal investir-se de competência para fiscalizar o trânsito e aplicar multas?

            2.1.– A concepção do perfil constitucional do Município: uma questão fundamental - a resistência em tratar o Município como ente político autônomo na Federação Brasileira.

            Em outros estudos nossos concernentes a Direito Municipal e, em especial deste, percebemos que muitas posições teóricas quanto ao caráter jurídico – constitucional dos municípios brasileiros estão permeados por uma visão jurídica estrábica, viciada por uma falsa noção deste ente federativo.

            O município brasileiro teve como embrião histórico os municípios portugueses. No Brasil-Colônia o município brasileiro ganhou caracteres particulares não obstante as diretrizes da Coroa Portuguesa.

            A Constituição de 1824 dispôs em seus artigos 167 a 169 sobre a administração das cidades e criou câmaras municipais compostas por membros eleitos, possuindo certa autonomia.

            Em 1834, a lei n. 16 de 12/08 reduziu a autonomia municipal, transferindo para a esfera de competência das assembléias da província boa parte das atribuições municipais. Foi um golpe na autonomia dos municípios.

            A Constituição do 1891, no art. 68, restabelece a autonomia, dispondo que "os estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia municipal em tudo quanto respeite ao peculiar interesse".

            A Constituição de 1934 manteve a autonomia, entretanto a Constituição de 1937 concebida pelo regime ditatorial de Vargas a reduz. A Constituição seguinte de 1946 devolveu em parte a autonomia municipal mantida com mitigações pela Carta Política de 1964 e pela Emenda nº 1 de 1969.

            A Constituição vigente definitivamente traçou o perfil autônomo dos municípios brasileiros de modo categórico. Não poderia dispor a Constituição Cidadã de 1988 diferentemente.

            Vejamos:

            "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

            Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

            Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

            (...)

            VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

            (...)

            c) autonomia municipal;

            (...) ". Destacamos.

            A interpretação sistemática das disposições transcritas não deixa dúvidas: o Município brasileiro integra a federação e lhe é assegurada uma esfera de competências que não pode ser invadida pela União ou pelos Estados-membros, sustentando a medida extrema da intervenção em caso de desrespeito.

            Esta apertada síntese da evolução histórica revela que, quanto mais autoritário é o regime político, menor é a autonomia municipal.

            2.1.1.– As competências municipais.

            Referimo-nos à expressão autonomia várias vezes. Aqui é o ponto em que cabe definir seu conceito.

            Autonomia, no âmbito da relação federativa, é a faculdade jurídica de governar a si mesmo política e administrativamente. Ou nas palavras do professor Michel Temer " é a capacidade conferida a certos entes para a) legislarem sobre b) negócios seus c) por meio de autoridades próprias" [01].

            A autonomia política é a capacidade de certas entidades se organizarem segundo as leis que adotarem e comandarem politicamente os rumos de uma sociedade.

            Autonomia administrativa diz respeito à capacidade de auto-organização das estruturas para gestão do interesse público no âmbito de suas competências: serviços públicos locais, estrutura da administração municipal, servidores, etc.

            Neste âmbito de atuação autônoma, estabelecem-se delimitações legais a que se denominam competências. A definição do mestre José Afonso da Silva é precisa. Competência é "a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade, ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões [02]".

            Sistemas de repartição de competência tradicionalmente adotam o critério da predominância do interesse. Assim, as matérias pertinentes ao interesse nacional serão atribuídas ao órgão central, enquanto aos Estados-membros e aos Municípios são reservadas as matérias relativas aos interesses regionais ou locais respectivamente

            Tais competências se classificam em legislativa e administrativa. A competência legislativa se expressa no poder de a entidade estabelecer normas gerais. Enquanto a administrativa, ou material, cuida dos atos concretos do ente estatal, ou seja, da atividade administrativa.

            Fixadas estas noções cabe atentar que é, no espaço da administração municipal, que se apresentam os problemas do cotidiano das pessoas. É o Município que é fiscalizado mais diretamente pela sociedade. Esta natureza dinâmica da vida municipal justifica a ampliação de seu âmbito de atuação.

            Como observa Temer:

            "Os Municípios titularizam competências próprias. Di-lo o art. 30. Tudo o que disser com a administração própria no que respeite ao seu interesse local. Caracterizada a matéria como sendo de interesse local só o legislador dela poderá cuidar.

            (...)

            Doutrina e jurisprudência, ao tempo da Constituição anterior, se pacificaram no dizerem que é peculiar interesse aquele que predomina o do Município no confronto com os interesses do Estado e da União. Peculiar interesse significa interesse predominante. Interesse local é expressão idêntica a peculiar interesse" [03].

Grifos originais.

            Observa o mestre HELY LOPES MEIRELES:

            "(...) o assunto de interesse local se caracteriza pela predominância ( e não pela exclusividade) do interesse para o Município, em relação ao do Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância"

[04].

            A competência do Município para organizar e manter serviços públicos locais está reconhecida constitucionalmente como um dos princípios asseguradores de sua autonomia administrativa (art. 30). A única restrição é a de que tais serviços sejam de seu interesse local. O interesse local, como já definimos, não é o interesse exclusivo do Município, porque não há interesse municipal que o não seja, reflexamente, do Estado-membro e da União. O que caracteriza o interesse local é a predominância desse interesse para o Município.

            Conclusivamente, podemos afirmar que matéria de interesse local ou peculiar não é aquela que interessa exclusivamente ao Município, mas aquela que predominantemente afeta aos munícipes. Logo não se pode excluir matérias do rol dos temas a serem legislados pelo Município. Basta que haja interesse local para fixar-se a competência municipal.

            2.2.– O Sistema Nacional de Transito.

            2.2.1. Trânsito, direito à vida e à cidadania: fiscalização do trânsito, um serviço público essencial.

            Transitar livre e seguramente é em última análise garantir o direito à vida. É direito de todos e dever do Poder Público assegurá-lo. Para tanto devem os entes públicos administrar este interesse de modo eficiente.

            Administrar é gerir interesses alheios. Em seu sentido objetivo, administração Pública é a gestão de bens e de interesses públicos. Em outras palavras é:

            "(...) a gestão de bens e interesses do povo, com um mínimo de sacrifício dos direitos e garantias individuais, visando o bem comum. A função administrativa compreende, fundamentalmente, o planejamento, a tomada de decisões e a execução para alcançar os fins estatais [05]

."

            Conforme definição do professor MEIRELLES, serviço público é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, com fim de satisfazer necessidades da coletividade ou conveniências do Estado.

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            Essenciais são aqueles serviços que a Administração presta diretamente à comunidade, por reconhecer ser necessário para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado.

            O controle do trânsito pelo Poder público é serviço de relevante interesse social. É serviço que, por sua natureza, é essencial. Neste sentido, as considerações da resolução do CONTRAN n. 166/2004 são categóricas:

            (...) "Um trânsito ruim e no limite criminoso, por falta de consciência dos seus perigos e por falta de punição, aproxima-nos da barbárie e do caos. Por outro lado, um trânsito calmo e previsível estabelece um ambiente de civilidade e de respeito às leis, mostrando a internalização da norma básica da convivência democrática: todos são iguais perante a lei e, em contrapartida, obedecê-la é dever de todos.

            Diferentemente de algumas outras normas sociais, que podem ser rompidas ou ignoradas sem que ninguém perceba, as normas de trânsito produzem um efeito imediato, levando, sua obediência ou não, à manutenção da qualidade de vida do cidadão e da coletividade, ou a resultados desastrosos. Com isso, o trânsito configura-se em uma notável escola de e para a democracia.

            O Código de Trânsito Brasileiro e a legislação complementar em vigor vieram introduzir profundas mudanças no panorama institucional do setor. Para sua real implementação em todo o País, muito é preciso ainda investir, principalmente no que diz respeito à capacitação, fortalecimento e integração dos diversos órgãos e entidades executivos de trânsito, nas esferas federal, estadual e municipal, de forma a produzir efeito nacional, regional e local e buscando contribuir para a formação de uma rede de organizações que constituam, verdadeiramente, o Sistema Nacional de Trânsito. [06]

            Uma política de trânsito deve ter o cidadão brasileiro como foco de todas as ações. Dentro desta visão cidadã, sendo a segurança no trânsito uma questão mundial grave e urgente e tendo em conta que as estatísticas alarmantes de mortes prematuras em ocorrências de trânsito são assustadoras; faz-se necessário uma intervenção efetiva das esferas estatais e não há como negar a essencialidade do serviço de policiamento do trânsito.

            2.2.2.– Competências dos Municípios no Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

            O Código de Trânsito Brasileiro (lei nº 9503/1997) estrutura o Sistema Nacional de Trânsito, estendendo aos Municípios as competências executivas de gestão do trânsito.

            O Sistema Nacional de Trânsito - SNT, é o instrumento de efetivação da política nacional e é formado pelo conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, objetivando o planejamento, administração, normalização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e educação continuada de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de penalidades.

            O CTB fixou a competência municipal expressamente nos artigos 21 e 24, não restando dúvidas quanto à competência municipal nesta esfera.

            Entretanto se não o fizesse, a matéria não estaria fora do alcance da competência municipal para legislar e administrar o trânsito municipal em tudo quanto se referir ao interesse local. É do professor MEIRELES a conclusão:

            "Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre os quais dispõem União (regras gerais: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual) e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização etc; regulamentos sanitários municipais) [07].

Destacamos.

            Também TEMER assentou:

            "Exemplificando: é de competência da união legislar sobre tráfego e trânsito nas vias terrestres (art. 22, XI). Entretanto, não se põe em dúvida a competência do Município para dispor sobre tais matérias nas vias municipais. Estacionamento, locais de parada, sinalização, mão e contramão de direção corporificam matérias de peculiar interesse municipal. Afastam a legislação estadual e federal [08]".

Grifos nossos.

            Além disso, há previsão legal expressa de competências em matéria de trânsito exercitável pelo Município. Dispõe o art. 21 do CTB sobre competências gerais dos órgãos e entidades integrantes do SNT. No art. 24, o CTB fixa as competências municipais dentre as quais destacamos os itens respeitantes ao nosso estudo.

            Vejamos:

            Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

            I - cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições;

            VI - executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as medidas administrativas cabíveis, por infrações de circulação, estacionamento e parada previstas neste Código, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito;

            VII - aplicar as penalidades de advertência por escrito e multa, por infrações de circulação, estacionamento e parada previstas neste Código, notificando os infratores e arrecadando as multas que aplicar;

            VIII - fiscalizar, autuar e aplicar as penalidades e medidas administrativas cabíveis relativas a infrações por excesso de peso, dimensões e lotação dos veículos, bem como notificar e arrecadar as multas que aplicar;

            Os preceitos legais destacados fixam competência para o exercício do poder de polícia pelo Município. Para exercê-lo a Administração Municipal necessita de estruturas e equipar de recursos materiais, técnicos e humanos para desempenhar seu múnus.

            Como já anotamos:

            (...), "conclui-se correto afirmar que a competência para agir deve corresponder igualmente à competência para legislar sobre a matéria"

            (...) Somente pode a Administração agir quando previamente autorizada por lei, a diferença entre competência legislativa e administrativa fica muito reduzida de conteúdo, porquanto a ação administrativa sempre será necessariamente precedida de legislação [09].

Grifamos.

            É pertinente aqui registrar a lição de IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, para quem:

            "A dificuldade, todavia, que se coloca é que, regido o país pelo princípio da legalidade, nenhuma entidade federativa pode agir, sem ter legislação anterior que a autorize, de tal forma que tanto o art. 21 quanto o art. 22 cuidam, em verdade, de competência para legislar sobre aquelas matérias. O mesmo se pode dizer no que concerne à competência comum e/ou concorrente, visto que a ação é sempre precedida de legislação (...)" [10].

            Há de se observar as noções dos mestres aqui transcritas. Delas concluímos que, ao fixar a competência administrativa municipal para fiscalizar o trânsito, implícita e indubitavelmente, também se estabeleceu competência legislativa que deve ser exercida de modo autônomo, respeitando-se os limites estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual pertinente. Delas também extraímos fundamento para a conclusão no sentido de que o múnus municipal determinado pelo CTB implica a necessidade de o Município estruturar-se administrativamente para bem desempenhá-lo.

            A integração do Município ao SNT pressuposto para o exercício das competências legais imputáveis ao ente municipal conforme dispõem o CTB arts. 24 § 2º e 333 e Resoluções do CONTRAN (Conselho Nacional de Trânsito).

            "Art. 24, § 2º - Para exercer as competências estabelecidas neste artigo, os Municípios deverão integrar-se ao Sistema Nacional de Trânsito, conforme previsto no art. 333 deste Código.

            Art. 333. Art. 333. O CONTRAN estabelecerá, em até cento e vinte dias após a nomeação de seus membros, as disposições previstas nos arts. 91 e 92, que terão de ser atendidas pelos órgãos e entidades executivos de trânsito e executivos rodoviários para exercerem suas competências.

            § 1º Os órgãos e entidades de trânsito já existentes terão prazo de um ano, após a edição das normas, para se adequarem às novas disposições estabelecidas pelo CONTRAN, conforme disposto neste artigo.

            § 2º Os órgãos e entidades de trânsito a serem criados exercerão as competências previstas neste Código em cumprimento às exigências estabelecidas pelo CONTRAN, conforme disposto neste artigo, acompanhados pelo respectivo CETRAN, se órgão ou entidade municipal, ou CONTRAN, se órgão ou entidade estadual, do Distrito Federal ou da União, passando a integrar o Sistema Nacional de Trânsito.

            Compete, pois ao CONTRAN estabelecer as normas e padrões exigidos pelos entes estaduais ou municipais que se integrarem ao Sistema Nacional de Trânsito e a serem praticados por todos os órgãos e entidades do Sistema(CTB art 91).

            Especificamente em relação à integração dos Municípios ao sistema nacional o CONTRAN, através da Resolução nº 166 de 15 de setembro / 2004, no item 2.1.4.1, dispôs que:

            "A integração do município ao Sistema Nacional de Trânsito independe de seu tamanho, receitas e quadro de pessoal. É exigida a criação do órgão de trânsito e da Junta Administrativa de Recursos de Infrações - JARI, à qual cabe julgar os recursos interpostos pelos presumidos infratores".

            Como se vê. não se condiciona a integração do município ao SNT à existência de quadro de pessoal especializado. Ilação que nos leva ao centro da questão objeto de nossa análise sintetizada na indagação seguinte: podem os Municípios utilizar estruturas já existentes como a Guarda Municipal para fins de policiamento do trânsito?

            O exposto até agora nos conduz à resposta positiva. Nos itens subseqüentes apresentamos os fundamentos intrínsecos de nossas conclusões.

            2.3.– O tratamento constitucional dispensado às Guardas Municipais.

            Ao analisar os precedentes jurisprudenciais, sobretudo sob o prisma constitucionalista, à prima vista chama atenção o fato de a decisão apresentar como fundamento constitucional, singelamente, o art. 144 § 8º da Constituição Federal / 1988 a partir de uma interpretação literal e isolada do dispositivo.

            Como advertimos, em estudo por nós publicado é imperativo estudar a Constituição Federal cuidadosa e sistematicamente. No mesmo sentido é a lição do professor Paulo Bonavides:

            "A interpretação de todas as normas vem regida basicamente pelo critério valorativo de natureza mesma do sistema. Faz-se assim suspeita ou falha a análise interpretativa de normas consideradas insularmente, à margem do amplo contexto que deriva do sistema constitucional. De modo que nenhuma liberdade ou direito, nenhuma norma de organização ou constituição do Estado será idônea, fora dos cânones da interpretação sistemática, única apta a iluminar a regra constitucional em todas as suas possíveis dimensões para exprimir-lhe corretamente o alcance e grau de eficácia.

[11]".

            Ora a declaração de inconstitucionalidade pelo Judiciário de atos de seus órgãos ou dos demais Poderes requerer solidez extraordinária exigida pela Constituição. Isto porque a imputação de inconstitucionalidade é decisão de graves repercussões nas relações jurídico - constitucionais.

            Exemplificando o afirmado, basta mencionar o preceito do art. 85 da CF / 1988 que tipifica genericamente como crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal.

            Dentro de um sistema constitucionalista como o nosso, é evidente que qualquer decisão declaratória de inconstitucionalidade de atos deve se revestir de fundamentação reforçada. Não pode ser proferida como decisões outras em que a preservação da autoridade de normas constitucionais não está em jogo.

            Obviamente toda decisão judicial deve ser fundamentada como dispõe o art 93, IX da CF / 1988. Entretanto no que tange à declaração de inconstitucionalidade, para garantir cautela por parte do Poder Judiciário, a Carta Magna vigente determinou:

            "Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público".

Destacamos.

            O dispositivo transcrito não exige expressamente uma fundamentação reforçada, mas dá indicativos seguros de que decisão em matéria de controle de constitucionalidade se distingue das demais. Tal exigência, por nós referida, decorre de uma análise sistemática e da percepção da Constituição como norma fundamental de toda ordem jurídica.

            Feitas estas observações, pomos em relevo nossa crítica aos precedentes relativamente à fundamentação desprovida de argumentação substanciosa e à afoiteza interpretativa do § 8º do art 144 da Lei Maior.

            Textualmente dispõe a CF / 1988:

            Art. 144 (...)

            § 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

            A CF, como se vê, apenas faculta a criação da Guarda Municipal por isso não a listou nos incisos do mesmo art. 144 como órgão do sistema de segurança pública..

            O dispositivo transcrito situa-se no capítulo III referente à segurança pública do TÍTULO V (Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas). A segurança pública consiste em serviços destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. A Guarda Municipal segundo a letra do dispositivo em exame é a segurança ou proteção dos bens, serviços e patrimônio municipais.

            Observe-se que as expressões constitucionais são genéricas. A nosso ver, a CF fê-lo assim propositalmente para respeitar as realidades diversas.

            O problema que aqui sobressai é perquirir qual o âmbito de competência da Guarda Municipal e se a lei pode ampliá-lo.

            No item seguinte, apresentamos argumentos para responder afirmativamente à questão.

            2.4.– A possibilidade do exercício do poder de policia de trânsito pela Guarda Municipal.

            2.4.1. – Inexistência de veto expresso pela Constituição e pelo CTB.

            Como já destacamos, ao dispor sobre a Guarda Municipal, a CF em vigor limitou-se a facultar à criação e, genericamente, a referir à missão de proteger bens, serviços e o patrimônio da municipalidade.

            Observamos primeiro que não há dispositivos constitucionais que vetem expressa e taxativamente a possibilidade de além de atribuir à Guarda Municipal outra função que não seja a segurança dos interesses do Poder Público Municipal referidos pelo preceito constitucional do § 8º do art. 144 da CF.

            A primeira leitura do dispositivo pode levar à conclusão de que a competência ali enunciada é restrita e insuscetível de ampliação. Concluir assim sem maior investigação é por de lado o sistema constitucional, seus princípios e valores mais amplos e fundamentais à integridade constitucional.

            Para ilustrar a pertinência de nossa crítica e preocupação expressa no item anterior quanto aos cuidados com interpretação literal e isolada de normas constitucionais, lembramos a polêmica quanto à sobrevivência do jus postulandi na Justiça do Trabalho e nos Juizados de Pequenas Causas. Discutiu-se nos tribunais a não recepção constitucional da regra celetista que garantia o acesso à Justiça Trabalhista sem a presença do advogado. O fundamento era a interpretação do art. 133 da CF / 1988 que dispõe textualmente que o advogado é indispensável à administração da justiça. No entanto a Jurisprudência dos Tribunais Trabalhistas e do Supremo Tribunal Federal superaram a textualidade da expressão legal (indispensável à administração da justiça) por meio de interpretação sistemática.

            A citada jurisprudência habilita nossa ilação de que o tratamento constitucional dado à Guarda Municipal não pode se resumir à letra do referido dispositivo.

            Evidente é que a finalidade para que foi pensada a Guarda é proteção do patrimônio e serviços municipais, mas não há empecilho constitucional para alargamento da competência por força de lei. Deve-se atentar para o enunciado da cláusula de discricionariedade legislativa (conforme dispuser a lei) e investigar o grau de liberdade para a atuação normativa municipal.

            O âmbito da discricionariedade normativa delimita-se pela matéria e pelo princípio da razoabilidade. Ora imputar às Guardas Municipais o exercício de policiamento de trânsito está dentro do linde material, pois não se deve esquecer a localização normativa do dispositivo que é o capítulo da segurança pública.

            Aliás, isto não passou despercebido pelo STF. Em 12 de novembro de 2003, a Suprema Corte, através de decisão monocrática do Ministro Maurício Correia, julgou liminar antecipatória de tutela concedida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

            "(...) 9. A liminar concedida não merece subsistir, tendo em vista os valores que o artigo 4º da Lei 8437/92 visa proteger e o dano efetivo que o seu cumprimento imediato causará à segurança pública e à disciplina de trânsito, além dos eventuais malefícios aos munícipes." (Proc.: Classe / Origem - STA 9 / RJ - SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA - Min. MAURÍCIO CORRÊA DJ DATA- 26/11/2003 P - 00009) Grifamos.

            A Lei Magna textualmente refere-se à proteção do patrimônio municipal, mas a segurança pública consiste nos serviços de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (art. 144, caput da CF). Assim afigura-nos razoável a atribuição à Guarda Municipal do múnus já mencionado por não fugir do campo da matéria segurança pública uma vez que o policiamento do trânsito visa preservar a incolumidade das pessoas. Respeitadas as esferas de competências dos outros entes integrantes do Sistema Nacional de Trânsito, as medidas neste sentido são, a nosso ver, constitucionais.

            2.4.2. – O caso da Polícia Militar.

            Nesta discussão, intriga-nos o caso da Policia Militar que também tem dispositivo constitucional no mesmo capítulo da segurança pública. A Lei Maior preceitua que a segurança pública será exercida através, inclusive, das polícias militares e corpos de bombeiros militares (CF art 144, V).

            No § 5º do mesmo artigo, determina a CF que às polícias militares cabem a preservação da ordem pública e aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

            O CTB no art. 7º, VI dispõe que as Polícias Militares dos Estados e Distrito Federal integram o SNT. E, em respeito à autonomia político - administrativa, dos Estados –membros, estabelece no art. 23:

            "Art. 23. Compete às Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal:

            III - executar a fiscalização de trânsito, quando e conforme convênio firmado, como agente do órgão ou entidade executivos de trânsito ou executivos rodoviários, concomitantemente com os demais agentes credenciados; "

            O curioso é que o exercício de polícia de trânsito pelas Polícias Militares não tem sofrido oposição dos tribunais. No entanto se para estas estruturas o exercício é legítimo, também o será para as Guardas Municipais.

            Esta nossa observação causa certa perplexidade, autorizando concluir que a interpretação constitucional restritiva adotada para as Guardas dos Municípios por alguns tribunais estaduais não tem motivação consistente.

            2.4.3.– A essencialidade do serviço de fiscalização do trânsito e os princípios da razoabilidade e da eficiência.

            No item 2.2.1, assentamos o caráter de essencialidade do serviço de controle do tráfego de pessoas e veículos.

            Com espeque neste traço de essencialidade do serviço, entendemos que a imputação de competência de policiamento do trânsito é solução que se respalda nos princípios da eficiência e da razoabilidade.

            A CF/1988 fixa como principio de observância obrigatória por todas as esferas e níveis da administração, dentre outros, o princípio da eficiência.

            Como posto por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:

            "Quanto ao princípio da eficiência, não há nada a dizer sobre ele. Trata-se, evidentemente, de algo mais do que desejável. Contudo, é juridicamente tão fluido e de tão difícil controle ao lume do Direito, que mais parece um simples adorno agregado ao art. 37 ou o extravasamento de uma aspiração dos que burilam no texto. De toda sorte, o fato é que tal princípio não pode ser concebido (entre nós nunca é demais fazer ressalvas óbvias) senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais suma suposta busca de eficiência justificaria postergação daquele que é o dever administrativo por excelência. Finalmente, anote-se que este princípio da eficiência é uma faceta de um princípio mais amplo já superiormente tratado, de há muito, no Direito italiano: o princípio da ‘boa administração’" [12].

            Precisa é a definição de UBIRAJARA COSTODIO:

            "(...) identifica-se no princípio constitucional da eficiência três idéias: prestabilidade, presteza e economicidade. Prestabilidade, pois o atendimento prestado pela Administração Pública deve ser útil ao cidadão. Presteza porque os agentes públicos devem atender o cidadão com rapidez. Economicidade porquanto a satisfação do cidadão deve ser alcançada do modo menos oneroso possível ao Erário público. [13]" Grifamos.

            Atento ao princípio constitucional o CTN preceitua expressamente:

            "Art. 25 - Os órgãos e entidades executivos do Sistema Nacional de Trânsito poderão celebrar convênio delegando as atividades previstas neste Código, com vistas à maior eficiência e à segurança para os usuários da via."

            Ora a imputação da competência para fiscalizar o trânsito à Guarda Municipal é decisão administrativa que encontra sustentação no princípio da eficiência uma vez que assim:

            a) será prestado pela Administração Pública serviço público de utilidade essencial ao cidadão;

            b) atende-se com presteza ao direito ao trânsito seguro;

            c) a satisfação do cidadão é alcançada do modo menos oneroso ao Erário Municipal.

            A decisão administrativa de fixar já tão referida competência ás Guardas Municipais também se assenta no principio da razoabilidade abrigado no artigo 1º da Constituição Federal, que deu ao Brasil status de Estado Democrático de Direito.

            O princípio referido possui três elementos conceituais: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

            A adequação é conseqüência da exigência de compatibilidade entre o fim pretendido pela norma e os meios por ela enunciados para sua consecução. Os atos dos Poderes Públicos somente devem ser afastados se absolutamente incapazes de alcançar o resultado pretendido.

            A necessidade revela-se na indispensabilidade à preservação de direitos e interesse do bem comum.

            A proporcionalidade em sentido estrito diz respeito a um sistema de valoração de situação juridicamente aceitável sob a ótica dos fins pretendidos pelo Estado. O exame da proporcionalidade permite um equilíbrio entre o fim almejado e o meio utilizado.

            A razoabilidade é, em suma, padrão valorativo dos atos dos Poderes Públicos.

            Aplicando o conceito à hipótese em exame, é compreensível prontamente que o aproveitamento de estrutura já existente é legítima, não constituindo violação ao principio constitucional da razoabilidade.

            Neste sentido, é eloqüente a passagem transcrita logo a seguir da decisão já referida do STF em que o Ilustre Ministro Maurício Corrêa ponderou:

            "(...) Subsistentes, por conseguinte, os fundamentos da decisão de primeira instância que indeferiu o pedido de liminar, não obstante tenha sido reformada pelo Tribunal de Justiça. A título ilustrativo, trago à colação o seguinte excerto daquela decisão: "(...) Não narra a inicial qualquer prejuízo decorrente da prática do poder de polícia por ente da administração indireta, devendo preponderar o supremo interesse da manutenção da ordem e regularidade do trânsito, elemento essencial da qualidade de vida nos centros urbanos, sobre meros interesses patrimoniais dos particulares que violam as regras cogentes de trânsito ou sobre questões formais secundárias ao interesse público. (...) As questões trazidas na inicial são meramente formais, não se questionando o exercício da atividade administrativa ou mesmo sua eficiência"(fl. 39).

            - Proc.: Classe / Origem - STA 9 / RJ - SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA - Min. MAURÍCIO CORRÊA DJ DATA- 26/11/2003 P – 00009. Grifamos.

            Irracional é exigir dos municípios a criação de nova estrutura administrativa cujo custo financeiro nem sempre é suportável pela municipalidade e ainda que haja recursos para tanto ainda assim entendemos ser razoável a medida. Ora a Guarda Municipal ao exercer a incumbência de proteger o patrimônio e serviços municipais ao mesmo tempo pode colaborar com o sistema nacional de trânsito, fiscalizando trânsito de veículos, pessoas e animais nas vias terrestres.

            Irrazoável é o impasse criado pelos precedentes judiciais, ao impor aos municípios a inércia diante de danos à vida e integridade física de inúmeros cidadãos.

Sobre a autora
Roseniura Santos

bacharela em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, especialista em Direito do Trabalho e Processo Administrativo-Fiscal Trabalhista pela UnB, professora de Direito Constitucional e Administrativo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Roseniura. Fiscalização do trânsito pela Guarda Municipal:: possibilidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 865, 15 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7450. Acesso em: 26 dez. 2024.

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