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Direitos autorais em tecnologias emergentes:

a exploração de obras musicais através do podcasting

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Agenda 24/10/2005 às 00:00

Para os efeitos legais, a tecnologia do "podcasting" não envolve propriamente "radiodifusão", mas sim a "reprodução" de obras sonoras.

            "O progresso tecnológico na reprodução dos sons não pode ensejar a apropriação do labor alheio e da criação intelectual, merecedores da proteção jurídica." [01]

            "Digital technology could enable an extraordinary range of ordinary people to become part of the creative process. To move from the life of a ‘consumer’ […] of music – and not just music, but film, and art, and commerce – to a life where one can individually and collectively participate in making something new." [02]


1.Introdução: O que é podcasting?

            As tecnologias emergentes continuam a apresentar polêmicas em relação ao que se enquadra como objeto de proteção de direitos autorais, e o que poderia ser admitido como uso permitido de obra de terceiro. Uma vez convertidas para o formato digital, obras artísticas, literárias e científicas podem ser extensivamente reproduzidas a custo praticamente zero. Comparemos a progressiva degradação na qualidade de cópias musicais subseqüentes realizadas em fitas cassete, com a reprodução e execução digital de músicas no padrão MP3 [03]. Ao contrário de cópias efetuadas em formato analógico, arquivos digitais são reproduzidos sem que ocorra comprometimento de sua qualidade. Além da facilidade de reprodução, as tecnologias emergentes possibilitaram a qualquer pessoa com acesso à internet tornar-se um distribuidor de músicas em âmbito internacional.

            Por outro lado, a tecnologia digital também pode ser utilizada para resguardar obras autorais a níveis anteriormente inimagináveis. Com o auxílio da criptografia, arquivos digitais podem ser programados para, por exemplo: prevenir cópias, serem acessados por um número específico de vezes, apagar depois de certa data, ou cobrar automaticamente do cartão de crédito do usuário em cada oportunidade de acesso [04]. Críticos dessa tecnologia advertem que ela proporciona controle demasiado aos titulares de direitos autorais, colocando em risco o delicado balanço entre o reconhecimento de direitos autorais e o direito de utilização e acesso ao que se encontra no domínio público [05].

            É neste cenário de conflito entre as facilidades para a cópia não-autorizada, e a criação de mecanismos técnicos capazes de prevenir usos inclusive legítimos que surge uma nova forma de transmitir e reproduzir áudio, o podcasting. Trata-se de um sistema que permite ao usuário programar o download de arquivos de áudio, denominados podcasts, para serem ouvidos quando for conveniente. A vantagem característica do podcasting frente a outras formas de obtenção de arquivos via internet está relacionada ao fato do internauta não precisar visitar um web site todas as vezes que um novo arquivo é carregado. Valendo-se de tecnologia baseada no formato RSS [06], o usuário cadastrado recebe automaticamente os podcasts de interesse, sempre que o conteúdo é atualizado pelo programador (ou podcaster).

            As origens da tecnologia são creditadas ao programador Dave Winer, reconhecido também pelo desenvolvimento de ferramentas que propiciaram a origem dos weblogs [07], e pelo empresário de mídia Adam Curry, famoso nos Estados Unidos como o ex-VJ da MTV que desenvolveu o primeiro agregador de podcasts, chamado iPodder [08]. O termo podcasting faz referência à junção de elementos da marca "iPod" [09] com a palavra inglesa "broadcasting", que significa radiodifusão ou a transmissão através do rádio ou da televisão. Entretanto, como versaremos a seguir, para os efeitos legais a tecnologia do podcasting não envolve propriamente "radiodifusão", mas sim a "reprodução" de obras sonoras. Também é importante ressalvar que, apesar da relação de origem etimológica com o termo "iPod" [10], os podcasts podem ser reproduzidos em qualquer dispositivo eletrônico com capacidade técnica para tanto (e.g., computadores com software apropriado ou outros aparelhos de MP3) [11].

            A maioria dos arquivos de podcasting tratam de áudio captado de eventos no formato "talk show", mas sua utilização pode ser estendida a músicas e outras situações como trechos sonoros de programas na televisão, cinema, grupos de conversação, notícias, informações de interesse específico, aulas e palestras [12]. Os podcasts constituem, assim, suporte material para a fixação de composições musicais, conferências, alocuções e outras obras intelectuais protegidas pela Lei de Direitos Autorais – LDA (Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998) [13].

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            Pelo menos na atual fase, mais incipiente, os podcasts são normalmente disponibilizados sem custo para o usuário final, e não costumam apresentar anúncios publicitários. Não obstante, dada sua crescente popularidade, – pesquisa divulgada em abril de 2005 revelava que 29% dos 22 milhões de estadunidenses que possuem tocadores de MP3 faziam o download de podcasts [14] – é de se esperar que empresas de radiodifusão e outras atuantes no setor de entretenimento, passem a explorar as potencialidades comerciais desta tecnologia [15].

            Na análise sobre a legitimidade de inclusão de obras de direitos autorais em podcasts, mister identificar quais as modalidades de utilização e, potencialmente, as espécies de violações em que o programador e o usuário do arquivo podem estar incorrendo. Nesse sentido, prosseguimos nosso estudo diferenciando o podcasting de outra forma popular de transmissão de conteúdo através da internet, o streaming.


2.Podcasting x streaming

            Em termos técnicos, o podcasting difere de outras formas de transmissão de conteúdo através da internet, como o streaming e o webcasting. O streaming é uma tecnologia de transmissão de dados em tempo real, que proporciona a execução dos dados ao mesmo tempo em que são recebidos na máquina do usuário. Depois que o conteúdo é acessado através da internet, nenhum traço é deixado no computador do receptor, exceto se o titular de direitos sobre o conteúdo houver permitido seu download. O webcasting é uma espécie de streaming para a retransmissão de obras audiovisuais executadas ao vivo, ou para a transmissão digital de um sinal de radiodifusão de forma concomitante através da internet.

            No podcasting, conforme detalhado acima, executa-se o download de um único e completo arquivo digital de áudio para ser ouvido em momento posterior, quando for conveniente. Ou seja, não existe a possibilidade do usuário ouvir a execução ao vivo de uma obra. Além disso, depois que o podcast é armazenado no computador do receptor, o usuário geralmente detém mecanismos técnicos para redistribuir cópias digitais desse arquivo a outras pessoas com acesso à internet.

            Essas características são fundamentais para definir a melhor forma de exploração das obras executadas em ambos os processos. Um arquivo digital obtido através de download é essencialmente o mesmo que o original em termos de qualidade, e tais cópias podem ser criadas ao toque de um botão. Um internauta que obtém um arquivo digital pode concorrer no mercado da obra original ao distribuir cópias criadas por ele mesmo. Para se resguardar da reprodução e redistribuição não-autorizadas de seus conteúdos, muitos titulares de direitos autorais não disponibilizam suas obras para o download e preferem transmiti-las utilizando-se de tecnologias como o streaming, que não permitem a gravação do arquivo na máquina do destinatário.

            Por conta dessas particularidades, o regime de licenças e autorizações para obras autorais usufruídas através de podcasting difere dos arranjos para a exploração via streaming. Enquanto o streaming assemelha-se à utilização de obra intelectual mediante radiodifusão, o podcasting se equivale à pelo menos outras três modalidades de uso, quais sejam, reprodução, inclusão em fonograma e distribuição. Como veremos no próximo capítulo, em todas essas hipóteses a exploração dependerá do consentimento dos respectivos titulares de direitos autorais e conexos, sejam eles os autores originais ou seus representantes (e.g., gravadoras e produtores fonográficos). A violação de direitos autorais sujeita o infrator a sanções cíveis [16] e criminais [17], aplicáveis numa esfera sem prejuízo às condenações eventualmente ocorridas na outra.


3.Exploração econômica de obras musicais: modalidades legais de utilização através do podcasting e potenciais violações

            Um dos temas mais consistentes na história da proteção legal de direitos autorais dita que, por conta de adventos tecnológicos, os tipos de atividade que se enquadram no domínio do titular desses direitos se expandiram de maneira progressiva [18]. O primeiro instrumento legislativo a tratar formalmente da proteção de direitos autorais foi o Estatuto da Rainha Ana, concebido na Inglaterra em 1710 [19]. Essa lei conferia a autores ou adquirentes de livros o direito exclusivo de cópia (impressão e re-impressão), limitados a dois períodos de 14 anos. Foi dessa época que se originou a terminologia inglesa "copyright" ("direito de cópia") para designar os direitos reconhecidos ao autor.

            No começo do século XIX as legislações dos países que já previam o resguardo aos direitos do autor foram estendidas para reconhecer não apenas o direito de cópia, mas também exclusividade na representação pública de obras musicais e dramáticas [20]. A Convenção de Berna de 1886 [21] obrigava, em sua versão original, os países signatários a honrar dois dos direitos geralmente protegidos por leis nacionais da época: direitos de tradução e de interpretação/execução pública. A chegada do século XX foi marcada pela consolidação do reconhecimento aos direitos exclusivos de adaptação, tradução e pela ampliação do conceito de cópia para o de reprodução, em dimensões que extrapolam a simples impressão/re-impressão. Em tempos mais recentes, com a otimização das formas de comercialização de obras autorais, bem como a partir do desenvolvimento do rádio e da televisão, aos titulares de direitos autorais também foram reconhecidas exclusividades na distribuição, transmissão e retransmissão de suas obras.

            Os direitos patrimoniais do autor constituem a essência econômica da titularidade sobre obras autorais [22]. São direitos exclusivos que podem ser subdivididos infinitamente, cada qual sendo adquirido e tutelado de forma independente. Por exemplo, o titular de direitos autorais sobre uma obra musical pode conceder licenças não-exclusivas para reprodução, distribuição e execução pública, a diferentes licenciados, cada qual possuindo a prerrogativa de resguardar seus direitos na medida ajustada no contrato com o titular original [23]. No Brasil, a regra geral de duração dos direitos patrimoniais é de 70 anos, contados a partir de 1o. de janeiro do ano subseqüente ao falecimento do autor [24].

            Nossa Lei de Direitos Autorais expõe de forma genérica quais são os direitos de exploração econômica que o titular de direitos autorais possui em relação à obra. Nos termos do art. 28, "[c]abe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica" (grifou-se). O art. 29 enaltece que "[d]epende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades [...]", e relaciona em seus incisos uma lista não-exaustiva de usos exclusivos do autor em relação à obra. Dentre essas modalidades de utilização, destacam-se, para fins do presente estudo, a reprodução, a distribuição e a inclusão em fonograma [25].

            3.1.Podcasting e reprodução de obras intelectuais

            Analisado sob o aspecto técnico-jurídico em foco, o termo "reprodução" possui sentido específico, restrito à "produção de exemplares" [26]. O inciso VI, do artigo 5º, da Lei nº 9.610/98 define reprodução como "a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido". Como se verifica, a fixação não autorizada pode infringir o direito exclusivo de reprodução, ainda que resulte em apenas um exemplar e mesmo que ele não seja vendido ou distribuído a terceiros [27].

            A cópia digital de uma obra musical em formato MP3 se enquadraria na definição legal de reprodução, especialmente se considerarmos a hipótese prevista no art. 5º, VI, in fine (armazenamento por meio eletrônico). Diferencia-se, portanto, da entrada efêmera de arquivo no computador, que permite ao usuário usufruir imediatamente de obra intelectual protegida, como ocorre no streaming. Ressalvadas as hipóteses de obras "podsafe", isto é, obras sem restrições para distribuição via podcasting [28], não pode o programador, sob a alegação de estar exteriorizando obra nova, utilizar em seus podcasts obras musicais de terceiros sem as devidas licenças ou autorizações (do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonograma, ou de quem os represente). Do mesmo modo, incorreria em violação de direitos autorais o usuário que reproduzisse o arquivo digital sem autorização do podcaster ou dos titulares das obras nele fixadas.

            Sobre a questão de utilização de obra de terceiro para fins de anotação ou comentário, o podcaster estaria, a princípio, impedido de reproduzi-la integralmente, por força dos dispositivos comentados acima e também por conta de previsão expressa no art. 33 da LDA: "[n]inguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor." Restaria ao programador publicar seus comentários de forma apartada, sem reprodução alguma [29], ou então citar trechos da obra comentada, com as devidas indicações de autoria, na medida justificada para o fim de estudo ou crítica [30].

            3.2.A distribuição através do podcasting

            O direito de distribuição consubstancia-se basicamente na colocação em circulação comercial de exemplares de obras intelectuais ao público. Enquanto o direito de reprodução envolve a produção de cópias, o direito de distribuição compreende o direito de transferir a propriedade ou posse sobre exemplares da obra autoral. Não deve, contudo, ser confundido com o direito moral do autor [31] de publicar ou divulgar sua obra. Só o autor tem condições de determinar quando seu trabalho está pronto, resguardado inclusive o direto de conservá-lo inédito [32]. Do mesmo modo, é preciso enaltecer que o direito de distribuição não abrange o controle subseqüente dos exemplares. Depois de colocadas em circulação pela primeira vez, e desde que este ato tenha sido legítimo e autorizado pelo titular da obra fixada, a revenda dos exemplares não pode ser impedida por suposta violação de direitos autorais [33].

            A Lei de Direitos Autorais classifica como distribuição "a colocação à disposição do público do original ou cópia de obras literárias, artísticas ou científicas, interpretações ou execuções fixadas e fonogramas, mediante a venda, locação ou qualquer outra forma de transferência de propriedade ou posse." [34] Faz-se mister citar que a LDA possui dispositivo específico sobre o direito patrimonial de distribuição realizada por sistema sob demanda, que permita ao usuário selecionar a obra e percebê-la em tempo e lugar por ele determinados [35].

            Portanto, ao disponibilizar os arquivos de podcasting através da rede mundial de computadores, o criador também realiza um trabalho de distribuição de exemplares de trabalhos protegidos. Se o podcaster não corresponder ao autor das obras reproduzidas e fixadas no arquivo digital, e não haver tomado todas as medidas necessárias para a obtenção de autorização dos legítimos titulares, poderá ser responsabilizado por violação ao direito exclusivo de distribuição do titular de direitos autorais. Essa mesma conclusão vale para o receptor que re-distribui os podcasts sem autorização do podcaster ou dos titulares dos trabalhos incluídos no respectivo arquivo digital.

            3.3.O podcast como fonograma digital

            Para os fins da Lei nº 9.610/98, considera-se fonograma "toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual" [36]. A partir desse conceito de "fixação de sons" é que se infere a natureza análoga entre arquivos de podcasting e fonogramas. O consentimento escrito do artista ou da gravadora (dependendo do arranjo contratual) é necessário antes da inserção de seu trabalho em um podcast, pois, como vimos, a inclusão em fonograma constitui uma das espécies de direitos patrimoniais do autor.

            O podcast não deve ser entendido como trabalho protegido, nos termos do art. 7º da Lei de Direitos Autorais, mas tão somente como meio de fixação de obras intelectuais. Não obstante, mesmo sem poder demandar o assegurado aos autores através do art. 28 et seq da LDA, o podcaster detém a prerrogativa de reclamar direitos conexos aos direitos autorais [37], por se equivaler a um produtor fonográfico [38]. A produção de um fonograma pode implicar ou não uma utilização de obra protegida por direitos autorais, mas ele será protegível mesmo que só tenham sido incluídos sons e ruídos naturais. Há, portanto, regimes de proteção apartados para o podcast/fonograma e para as obras intelectuais nele incluídas [39].

            Preenchido o requisito de legitimidade para fixar os trabalhos intelectuais nesse formato (como autor ou como licenciado dos trabalhos), o programador poderá impedir que terceiros reproduzam, distribuam ou realizem outra forma de utilização do podcast. A duração dos direitos de exclusividade em relação ao fonograma é de 70 anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subseqüente à fixação [40].

            Ressalte-se que nossa lei autoral também indica obrigações para a pessoa qualificada como produtor de fonograma. Na hipótese em que o criador do arquivo digital for licenciado, terá a obrigação de arrecadar os rendimentos provenientes de sua execução pública, e compartilhá-los com os respectivos titulares de direitos sobre as obras fixadas, de acordo com o que for pactuado entre eles ou as suas associações [41]. Além disso, de acordo com o art. 80, o produtor fonográfico deve mencionar em cada exemplar publicado: a) o título da obra incluída e seu autor; b) o nome ou pseudônimo do intérprete; c) o ano de publicação; e d) seu nome ou marca que o identifique.

Sobre o autor
Alysson Hautsch Oikawa

associado do Escritório Bhering Advogados, mestre em Direito pela University of Illinois (EUA), bacharel em Comunicação pela PUC/PR, professor da Pós-Graduação em Comunicação Empresarial da PUC/PR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OIKAWA, Alysson Hautsch. Direitos autorais em tecnologias emergentes:: a exploração de obras musicais através do podcasting. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 843, 24 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7460. Acesso em: 17 nov. 2024.

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