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A litigância de má-fé e a efetividade da tutela jurisdicional

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Agenda 30/11/2005 às 00:00

4- LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ E PROCESSO DE EXECUÇÃO

            O processo de execução é uma excrescência que deve ser banida. A necessidade de ajuizamento de nova demanda é virtualmente inevitável, pois poucos casos registram o atendimento do obrigado à exortação contida no decisum. O que é uma sentença condenatória então? Apenas uma etapa para a demanda onde verdadeiramente o resultado prático do processo surgirá (talvez). [14]

            Também o processo de execução presta-se à farta gama de atos e incidentes malsinados no desiderato de proteção do feito quanto for possível. De par com a aplicação subsidiária das disposições pertinentes ao processo de conhecimento (art. 598 do CPC), o processo executivo contempla medidas próprias de repressão à litigância de má-fé especificadas no âmbito desta espécie de tutela. Para tanto, o artigo 599 cuida da possibilidade de chamamento do devedor a comparecer em juízo para que o magistrado o advirta acerca de procedimento atentatório à dignidade da justiça, o qual vem definido no artigo seguinte com as seguintes hipóteses: fraude à execução; oposição maliciosa à execução, mediante ardis e artifícios; resistência injustificada à ordens judiciais; e por fim, não indicação de bens passíveis de ensejar a execução.

            Vejamos resumidamente cada qual.

            4.1- Fraude à execução

            A disciplina da fraude à execução encontra-se no artigo 593 do CPC. Tem ocorrência na alienação ou oneração de bens em uma das circunstâncias a saber: quando sobre eles pender ação fundada em direito real; quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência; nas hipóteses previstas expressamente em lei.

            Se sobre o bem pende ação fundada (de conhecimento ou execução) em direito real, alienação frustra diretamente a satisfação do direito de que se busca a efetivação. Na alienação há a transmissão da propriedade ou posse, e na oneração, redução do conteúdo jurídico da primeira, atingindo exatamente os objetos do direito real, inviabilizando, total ou parcialmente a satisfação do credor, atual ou futuro. Logo, não é necessário que o devedor seja reduzido à insolvência pela alienação ou oneração, pois em caso de direito real, ainda assim estará frustrada a exata satisfação do credor.

            O rol de direitos reais deve ser buscado no CC. (artigo 1.225) e na legislação esparsa que eventualmente contemple algum. Para que se opere a fraude, mister, neste caso, a presença de execução ajuizada. Perante o devedor, devemos aplicar, analogicamente, o artigo 219, parágrafo primeiro, do CPC, de modo que, operada a citação, o efeito desta retroage à data do ajuizamento da demanda. A partir de então, não mais poderá alegar desconhecer a execução. O terceiro, adquirente, em linha de princípio, deverá ter ciência da presença de direito real, visto que sua constituição se dá com o registro junto à matrícula do imóvel [15]. Já adquire, por conseguinte, o bem menos o direito real constituído.

            A dificuldade surge, porém, quando há apenas titulus adquirendi não registrado e o terceiro alega boa fé, quiçá através de embargos de terceiro. Há que se partir do pressuposto de que não pode alegar boa-fé se agiu com incúria. [16] Prevalece o direito de seqüela. Calha invocação neste passo, o julgamento da Apelação Cível nº 70007699556, 17ª Câmara Cível do TJRS [17], onde ficou assentado que: "A hipoteca vem a ser o direito real de garantia que grava coisa imóvel ou bem que a lei entende por hipotecável, pertencente ao devedor ou a terceiro, sem transmissão de posse ao credor, conferindo a este o direito de promover a sua venda judicial, pagando-se preferentemente, se inadimplente o devedor. Não paga a dívida, cabe ao credor o direito de excutir o bem dado em garantia, para com o produto apurado em praça, obter a sua satisfação. A hipoteca segue o imóvel e este é a garantia do credor, sendo que a lei não impõe ao credor hipotecário o cumprimento das condições que ora estão a lhe ser exigidas, e sim concede-lhe o direito à execução, garantido que é pelo próprio imóvel. Assim, o negócio firmado por terceiro com a devedora hipotecária não pode ser oposto ao credor, que não participou da avença e em momento algum comprometeu-se à liberação do ônus, até porque ainda não recebeu o valor alcançado e cujo imóvel objeto é garantidor."

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            Com o registro da penhora, em relação a imóveis, gera-se presunção absoluta de conhecimento pelo terceiro, nos termos do artigo 659, parágrafo quarto, do CPC, elidindo a possibilidade de invocação de boa-fé. Com efeito, "aquele que não adquire do penhorado não fica sujeito à fraude ‘in re ipsa’, senão pelo conhecimento ‘erga omnes’ produzido pelo registro da penhora." [18]

            A segunda hipótese é a que se configura quando ao tempo da alienação ou oneração pendia contra o devedor demanda capaz de conduzi-lo à insolvência. Que espécie de demanda? Qualquer uma, não necessariamente aquela na qual se dá a execução.

            A insolvência, de seu turno, como é curial, caracteriza-se pela situação na qual, excluídos os bens impenhoráveis, o patrimônio do réu ou devedor é incapaz de cobrir as obrigações.

            Mas e o terceiro, é imprescindível que tenha conhecimento desta circunstância? No julgamento do Recurso Especial nº 439418/SP, relatado pela Min. Nancy Andrighi [19], diz-se que sim. Na ementa consta que "para a caracterização da fraude de execução prevista no inciso II do art. 593 do CPC, não basta a simples existência de demanda contra o vendedor (devedor da execução) capaz de reduzi-lo à insolvência, é necessário também o conhecimento pelo comprador de demanda com tal potência. Presume-se esse conhecimento na hipótese em que existente o devido registro da ação no cartório apropriado, ou, então, impõe-se ao credor da execução a prova desse conhecimento".

            Discordo, o elemento subjetivo do terceiro é irrelevante [20]. Não se trata de perquirir a presença de concilium fraudis. Aliás, pouco importa o elemento subjetivo que compele o próprio devedor à alienação. [21] A boa-fé do terceiro somente será pertinente nos eventuais embargos de terceiro que venham a ser opostos por este.

            Diversamente, é diferencial a presença de citação válida. Alguns precedentes jurisprudenciais a julgam indispensável para caracterização da fraude à execução [22], o que não é correto, pois os efeitos da citação retroagem e é ingenuidade crer-se que o devedor não sabe que tem obrigação não adimplida em vias de execução. Mas após a citação válida, há presunção iuris tantum de conhecimento, por parte do alienante, da existência da demanda, e no caso de penhora de imóvel registrada, também em relação ao adquirente.

            Antes da penhora, há necessidade de comprovação da insolvência, após não [23].

            Há outras hipóteses de fraude previstas em lei, como, por exemplo, no artigo 185 do CTN.

            4.2- Oposição maliciosa à execução

            O dispositivo em testilha fala em oposição com emprego de "ardis e meios artificiosos". Logo, estes atos devem dizer diretamente com o feito executivo. A oposição de embargos à execução ou de terceiro com notório propósito de protelação da execução deverá ser analisada dentro do processo de conhecimento incidental, pois não constitui em si emprego de ardil ou meio artificioso. A hipótese deverá encontrar tipificação dentre uma das previsões de litigância de má-fé relativas ao processo de conhecimento, embora o prejuízo deva ser aferido tendo em mira o feito executivo.

            A oposição maliciosa à execução pode se dar de várias formas, mas as mais comuns são a indicação de endereços falsos e a indicação de bens inexistentes ou alienados à penhora.

            Com indicação de endereços falsos ou freqüentes mudanças de endereço, o devedor logra sustar a natural tramitação do feito às vezes por vários meses. Remete-se precatória para outro Estado e lá chegando o oficial de justiça, outro endereço é indicado a assim sucessivamente. Logrando encontrar-se o executado, ou procedendo-se a sua citação por edital, há indicação de bens embaraçados ou inexistentes, e lá se vai mais um longo e precioso tempo até que o ardil seja descoberto e se proceda, se possível, a substituição. Estas práticas são correntias.

            Outra forma de oposição reside na formulação de incidentes absolutamente infundados, como impugnações de avaliações de forma genérica, sem indicação de fundamentos.

            Comportamentos deste jaez evidentemente caracterizam práticas diretamente atentatórias à dignidade da Justiça e devem ser reprimidas com severidade exemplar, pois além de prejudicar a parte contrária, tomam irrecuperável tempo de magistrados e servidores.

            4.3- Resistência injustificada à ordens judiciais

            Em diversas oportunidades são expedidas ordens judiciais no âmbito do processo executivo, determinando por exemplo, a juntada de documentos ou determinando certa providência em relação aos bens penhorados.

            Uma vez que a ordem foi devidamente comunicada e o seu destinatário, o devedor, sem justificativa plausível, demora na execução ou não cumpre corretamente com o que lhe fora determinado, está incidindo em comportamento atentatório à dignidade da justiça, e assim ocorrerá a cada nova oportunidade em que se repetir ação assemelhada.

            À evidência que deve ser assegurada a apresentação de justificativa, sendo de todo conveniente que o exeqüente também possa fazer os apontamentos que desejar.

            A resistência também poderá ser em relação a ordens que tenham de ser cumpridas por terceiros, como o oficial de justiça.

            4.4- Não indicação de bens

            Pode parecer estranho, mas a não indicação de bens não é uma defesa lícita do executado. Não pode ser feito um paralelismo com o princípio do "nemo tenetur se detegere", do processo penal.

            A priori, o exeqüente indica os bens a serem penhorados na inicial, ou então o oficial de justiça se dirige à residência do executado, seja ele pessoa física ou jurídica, e leva a efeito a constrição. Mas se ele não encontra bens penhoráveis ou arrestáveis, o devedor deve indicar, se tiver, bens desembaraçados. É um dever seu a bem da boa-fé processual. Toda vez que ele deixar de fazer esta indicação, conhecendo a existência de bens (conhecimento que se presume) incidiu em comportamento atentatório à dignidade da justiça.

            A não indicação e mesmo a ocultação de bens, é comum, mas raramente alguma medida é tomada para reprimi-la.


5- SANÇÃO PROCESSUAL E PROCESSO CAUTELAR

            As hipóteses de configuração de litigância de má-fé no processo cautelar são as mesmas do processo de conhecimento. Isto se deve ao fato de que estruturalmente o processo cautelar não tem grande diferença com o processo de conhecimento, pois temos as mesmas fases e quase todos os mesmos princípios. A diferença fundamental está na finalidade apenas, porque o processo cautelar declara e sanciona o direito subjetivo, apenas sob ótica diversa, própria da cognição que lhe é peculiar (sumária), visando a garantia da eficácia de outra demanda.

            Mas o processo cautelar carece de maior cautela, pois a natureza da cognição que nele é desenvolvida se presta com maior facilidade à fraude e ao ardil. Em vista disto, o artigo 811 do CPC prevê, sem prejuízo do disposto no artigo 16, hipóteses nas quais tem aplicação a responsabilização do autor. Nestes casos não há litigância de má-fé. São sanções específicas decorrentes de obrigações próprias do processo cautelar.


6- LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ E ELEMENTO SUBJETIVO

            Vistas quais as configurações objetivas da litigância de má-fé, insta perquirir acerca de sua conformação subjetiva. A caracterização depende de dolo, ou são admitidas as formas de culpa? Há precedentes que admitem as duas formas. [24]

            Por outro lado, há arestos nos quais se afirma que "não se pode subtrair da parte o direito de demandar e de alegar, em sua defesa, o que melhor lhe aprouver desde que sustentável. Não demonstrada a ocorrência de dolo processual, não se justifica a condenação em litigância de má-fé." [25], ou, ainda, que "para a configuração de litigância de má-fé, com a conseqüente aplicação dos arts. 17 e 18, do CPC, é imprescindível que se prove, de forma cabal, que a parte estava agindo imbuída de dolo processual." [26]

            Na verdade, não se pode excluir, a priori, a culpa como elemento subjetivo, tudo dependendo da espécie de ato que se considera. No processo de conhecimento, a dedução de pretensão contra texto expresso de lei pode ocorrer por culpa. Já quando em voga fato incontroverso, a hipótese culposa é de ocorrência mais difícil. A alteração da verdade dos fatos, desde que não seja relacionada à sua interpretação, somente admite forma dolosa. O uso do processo para obtenção de fim ilegal também é incompatível com a forma culposa. Neste caso, na dúvida, diante da lógica e da razoabilidade, é de se presumir a presença do dolo.

            A oposição de resistência injustificada e o proceder de forma temerária admitem a culpa, mas a provocação de incidentes manifestamente infundados não. É que a manifesta falta de suporte é indicativo do dolo, do agir livre, consciente e deliberado. O mesmo raciocínio vale para a interposição de recurso com intuito protelatório.

            Aliás, no caso do recurso, um bom aporte para base da análise da litigância de má-fé reside nas construções doutrinárias e jurisprudenciais relativas à fungibilidade, segundo as quais o erro grosseiro é indicativo de má-fé.

            Mas nada pode substituir a análise do caso concreto, a qual deverá levar em conta o agir do litigante no curso do deito e suas condições pessoais.

            O dolo, quando presente, não precisa ser específico, ou seja, não há necessidade da intenção certa de prejudicar a parte contrária.

            No processo de execução, a fraude à execução é objetivamente aferida, sem necessidade de buscar a motivação ou o conhecimento. A oposição maliciosa, com emprego de ardis ou artifícios evidentemente é dolosa, sempre, ainda que com dolo presumido em caso de determinados atos que evidenciem a intenção. A resistência injustificada carece de dolo, assim como a não indicação de bens. Neste último caso, o dolo se presume.

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A litigância de má-fé e a efetividade da tutela jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 882, 30 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7481. Acesso em: 22 dez. 2024.

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