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A razoabilidade como legitimadora da moralidade administrativa

Agenda 31/07/2019 às 07:06

Estudo de caso com base em princípios constitucionais que norteiam a Administração Pública.

O presente artigo visa a circunscrever a avaliação da legitimidade da ação estatal em princípios e regras, em que se destaca o princípio da razoabilidade quando utilizado como informador, ou auxiliar, do princípio da moralidade, mormente quando se pretende aferir se a administração está atuando legitimamente dentro de suas atribuições, afastando-se, assim, inquinações de nulidade por uso abusivo do poder de polícia que tem, quando age visando alcançar sua meta de realizar o interesse público. Em uma primeira aproximação tão intuitiva quanto técnica, define-se:

“O princípio da razoabilidade é uma diretriz de senso comum, ou mais exatamente, de bom-senso, aplicada ao Direito. Esse bom-senso jurídico se faz necessário à medida que as exigências formais que decorrem do princípio da legalidade tendem a reforçar mais o texto das normas, a palavra da lei, que o seu espírito. Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida”. (https://www.jusbrasil.com.br/topicos/292526/principio-da-razoabilidade)

Após esta inicial colocação, impende auscultar a doutrina proeminente no “thema”. Assim, o douto Procurador de Justiça José dos Santos Carvalho Filho (in Manual de Direito Administrativo. 31ª ed. São Paulo: GEN/Atlas, 2017, p.42) propugna: “Alguns estudiosos indicam que ‘a razoabilidade vai se atrelar à congruência lógica entre as situações postas e as decisões administrativas’ (LUCIA VALLE FIGUEIREDO). (...) Por outro lado, quando a falta de razoabilidade se calca em situação na qual o administrador tenha em mira algum interesse particular, violado estará sendo o princípio da moralidade ou o da impessoalidade.”

Por seu turno, o emérito Prof. Dr. Diogo de Figueiredo Moreira Neto (in Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2009, p.109) aduz:  “Realmente, na perquirição da razoabilidade, não se trata de compatibilizar causa e efeito, estabelecendo uma relação racional, mas de compatibilizar interesses e razões, o que vem a ser o estabelecimento de uma relação razoável.” Este eminente jurista obtempera com extrema percuciência (op.cit.,p.110): “À luz do princípio da razoabilidade, de caráter substantivo, o Direito, em sua aplicação administrativa ou jurisdicional contenciosa, não se exaure em ato puramente técnico, neutro e mecânico, não se esgota no racional e nem prescinde de valorações e de estimativas, pois a aplicação da  se realiza por atos humanos, interessados na justiça e na imposição concreta de seus valores, nela estabelecidos em abstrato.”

 O célebre Procurador do Município e Prof. Dr. Rafael Carvalho Oliveira Resende (in Curso de Direito Administrativo. 7ª ed. São Paulo: GEN/Forense, 2019, p.46) aborda a questão do ponto de vista da aplicação do princípio como parâmetro de legalidade pelo Judiciário: “O princípio da razoabilidade vem sendo utilizado como forma de valoração pelo Judiciário da constitucionalidade das leis e dos atos administrativos, consubstanciando um dos mais importantes instrumentos de defesa dos direitos fundamentais.”  

A atuação escorreita dos agentes públicos é tão importante social e economicamente que a tessitura legal que os envolve é densa, com matriz constitucional e reflexos na legislação ordinária. Esse vasto acervo doutrinário acerca do tema espelha a necessidade de revestir os cidadãos, num Estado Democrático de Direito, de proteções expressas contra desvios de finalidade ou excesso de poder do Estado, mas praticado pelos seus agentes. Tão arraigada é esta noção que a Lei de Improbidade Administrativa foi editada em 1992, pouco tempo depois da Constituição, mas em estreita consonância com esta. A maior dificuldade na aplicação dessas leis é a tradução de sua incidência, no caso concreto, dos princípios que regem a Administração. Não obstante isso, a principiologia citada vem embasando uma grande quantidade de julgados onde a Administração é parte.

Com o propósito de limitar o poder do Estado e seus agentes temos ainda a atuação independente das CPI’s e dos Tribunais de Contas, Lei das Licitações (lei nº 8.666/93), Lei da Ação Civil Pública (Lei 7347/85), a Lei do Processo Administrativo  (Lei nº 9.784/99), a LC 135/10 (“Lei Ficha Limpa”), a Lei Anticorrupção (Lei 12846/13), a Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público (Lei nº 13.460/17), assim como alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 13.655/18).

 Princípio da moralidade: “A Constituição Federal elegeu como um de seus princípios fundamentais a moralidade como um todo, abrindo o caminho para a superação da impunidade que campeia na Administração Pública, podendo-se confiar em uma nova ordem administrativa baseada na confiança, na boa-fé, na honradez e na probidade. O princípio da moralidade pública contempla a determinação jurídica da observância de preceitos éticos produzidos pela sociedade, variáveis segundo as circunstâncias de cada caso.” (https://www.jusbrasil.com.br/topicos/290007/principio-da-moralidade)

A Constituição Federal de 1988, sedimentou em seu texto, de forma inédita, a moralidade jurídico-administrativa, assim erigida a patamar de um importante princípio reitor da Administração Pública e cuja origem remonta Roma Antiga, pressupondo que nem tudo o que é legal é honesto. De acordo com Hauriou, hermeneuta francês do século passado, a moralidade administrativa seria um conjunto de regras de conduta emanadas de boa e útil disciplina interna da Administração. A moralidade serve como esquadria de comportamento decente, íntegro, reto e íntegro dos agentes públicos, estão sujeitos, por uma complexidade legislativa, às mais diversas iniciativas de controle e correção. Pelo teor de abstração do princípio, é necessário haver uma integração com o princípio da razoabilidade para aferir se determinada conduta atende ao princípio da moralidade. A conduta do Administrador que foge à razoabilidade vai desaguar na ofensa à moralidade, por existir um sistema de ‘vasos comunicantes’ entre ambos os princípios. 

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Há verdadeiros sistemas políticos de promoção de administrações que mitigam ambos os princípios, todavia, são rotulados de avanços administrativos, eliminação de procedimentos burocráticos que, no entanto, aparentemente lícitos, não sobrevivem a uma triagem principiológica. A maior dificuldade de identificar condutas administrativas imorais consiste justamente em cotejar o caso concreto e a complexidade legislativa reguladora do assunto. É significativo considerar que a intensidade legiferante para controle da coisa pública apresenta-se como o maior entrave à regularidade auditora da Administração, devido à multiplicidade de atitudes retificadoras possíveis. Para obter eficiência, faz-se mister conjugar os dois princípios matrizes aqui tratados para obter uma solução factível para coibição de condutas administrativa, conforme se verá adiante.

Dirley da Cunha Junior (in Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p.916) assim explica: “A Administração Pública submete-se a sujeições ou restrições, decorrentes da necessidade de proteção dos direitos dos administrados, que limitam sua atividade a determinados fins e princípios que, se não observados, implicam desvio de poder e consequente nulidade dos atos da Administração.”

Rafael Carvalho Oliveira Rezende (in Curso de Direito Administrativo. 7ª ed. São Paulo: GEN/Forense, 2019, p.41) traz a seguinte definição: “O princípio da moralidade, inserido no art. 37 da CRFB, exige que a atuação administrativa seja ética, leal e séria. Neste sentido, o art. 2º, parágrafo único, IV, da Lei 9.784/99, mormente nos processos administrativos, a ‘atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé’.”

Pedro Lenza (in Direito Constitucional Esquematizado. 22ª ed. São Paulo: Saraivajur, 2018, p.1587) acrescenta: “importante notar que o controle da moralidade não se confunde com o mérito administrativo e, por isso, pode ser fundamento autônomo para invalidação de ato administrativo, por meio da ação popular [CF/88, art. 5º, LXXIII].”

A esse respeito Nelson NERY JUNIOR (in Constituição Federal Comentada e Legislação Comentado. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p.612) aponta para o seguinte aresto do STF, acerca dos princípios que norteiam a Administração Pública: “Seu cumprimento faz-se num devido processo legal, vale dizer, num processo disciplinado por normas legais. Fora daí tem-se violação à ordem pública, considerada esta em termos de ordem jurídico-constitucional, jurídico-administrativa e e jurídico-processual.” (STF, Pleno, AgRgPet 2066-SP, rel. Min. Carlos Velloso, j.19.10.2000, m.v., DJU 28.2.2003)

Sob o ponto de vista do STJ importa considerar como a dogmática constitucional serve de fundamento motivador do importante aresto: “PROCESSUAL CIVIL E  ADMINISTRATIVO.  RECURSO ESPECIAL. CONCURSO DE REMOÇÃO. EXIGÊNCIA MÍNIMA DE TRÊS ANOS. OFENSA AO ART. 1.022 DO CPC. INEXISTÊNCIA.    ACÓRDÃO    RECORRIDO    ASSENTADO   EM   FUNDAMENTO EMINENTEMENTE CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO EM RECURSO ESPECIAL. 1. Constata-se que não se configura a alegada ofensa ao artigo 1.022 do Código de Processo Civil de 2015 uma vez que o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e solucionou, de maneira amplamente fundamentada, a  controvérsia,  em  conformidade  com o que lhe foi apresentado. 2.  O  Tribunal  de  origem,  para decidir a controvérsia dos autos, adotou    fundamentação   eminentemente   constitucional,   deixando consignado,  a  propósito,  que  "a  Administração  Pública não deve pautar  sua conduta apenas no princípio da legalidade, mas também em outros  princípios  constitucionais  de idêntica hierarquia, como os princípios  da  impessoalidade,  da  moralidade,  da publicidade, da eficiência,  da  proporcionalidade e da razoabilidade e da segurança jurídica (arts. 1º, 5º e 37, da CF)" (fl. 312, e-STJ). 3. Nesse contexto, considerando a fundamentação adotada, sob enfoque estritamente constitucional, resulta inviável sua apreciação em Recurso Especial, destinado à uniformização do direito federal infraconstitucional. 4.  Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.” (STJ, 2ª. T., REsp  nº 1.694.848/RS, rel. Min. Herman Benjamin, j. 16.11.17)

 Vejamos, ainda, um trecho de paradigmático decisum do E.STF: “(...) 2. Atos de improbidade administrativa são aqueles que, possuindo natureza civil e devidamente tipificados em lei federal, ferem direta ou indiretamente os princípios constitucionais e legais da administração pública, independentemente de importarem enriquecimento ilícito ou de causarem prejuízo material ao erário; podendo ser praticados tanto por servidores públicos (improbidade própria), quanto por particular - pessoa física ou jurídica - que induzir, concorrer ou se beneficiar do ato (improbidade imprópria).” (STF, AO 1833/AC, j. 10.04.18). Este Acórdão é consectário lógico da aplicação ao caso da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) nº 8.429/92, art. 4º, muito afeto aos briosos Promotores de Justiça. Eis o seu teor: “Art. 4 – Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.”

Ainda, assim já julgou o STF:

 “EMENTA Direito Constitucional e Processual Civil. Ação popular. Condições da ação. Ajuizamento para combater ato lesivo à moralidade administrativa. Possibilidade. Acórdão que manteve sentença que julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, por entender que é condição da ação popular a demonstração de concomitante lesão ao patrimônio público material. Desnecessidade. Conteúdo do art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal. Reafirmação de jurisprudência. Repercussão geral reconhecida. 1. O entendimento sufragado no acórdão recorrido de que, para o cabimento de ação popular, é exigível a menção na exordial e a prova de prejuízo material aos cofres públicos, diverge do entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal. 2. A decisão objurgada ofende o art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal, que tem como objetos a serem defendidos pelo cidadão, separadamente, qualquer ato lesivo ao patrimônio material público ou de entidade de que o Estado participe, ao patrimônio moral, ao cultural e ao histórico. 3. Agravo e recurso extraordinário providos. 4. Repercussão geral reconhecida com reafirmação da jurisprudência. (STF-Pleno, ARE 824781, RG/MT, publ. 09.10.15 - Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo)

O emérito magistrado do TJRJ Alexandre Guimarães Gavião Pinto (in Revista da EMERJ, v. 11, nº 42, 2008) aduz que “O princípio da moralidade evita que a atuação administrativa se distancie da moral, que deve imperar com intensidade e vigor no âmbito da Administração Pública. Tal princípio obriga que a atividade administrativa seja pautada cotidianamente não só pela lei, mas também pelos princípios éticos da boa-fé, lealdade e probidade, deveres da boa administração. Mister se faz registrar que boa-fé, lealdade, razoabilidade e proporcionalidade são princípios gerais, que ditam o conteúdo do princípio da moralidade administrativa.”

O ínclito Procurador de justiça e Prof. Dr. Fabio Medina Osório (in Teoria da Improbidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p.281) obtempera: “Já sabemos que muitos são os deveres [dos agentes], mas cabe lembrar que eles estão no caput do art. 4º, ambos da LGIA, além do art. 37, caput, da CF, sem falar de outras possíveis fontes normativas difusas, subjacentes à LGIA [Lei Geral da Improbidade Administrativa].”

O servidor público deve ter a consciência de que a sua atuação perante a sociedade deve ser moldada pelos elementos éticos e morais. Os seus atos causam sensível impacto na sociedade, pois estão diretamente ligados ao interesse público. Não é por outra razão que a sociedade editou uma série de diplomas legais visando coibir desvios, como as Leis de Abuso de Autoridade, Improbidade Administrativa, Ação Popular, Ação Civil Pública e o também imponente Ministério Público.

O insigne Procurador de Justiça José Guilherme Giacomuzzi (in A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. São Paulo: Malheiros, 2002, p.25) exemplifica: “O TJMG já entendeu por invalidar Resolução aprovada pela Câmara de Vereadores de Montes Claros a qual reajustava, em época de congelamento de preços, os subsídios do prefeito, vice-prefeito e vereadores. Referindo-se aos edis, consta do Acórdão: ‘(...) violaram a moralidade administrativa os apelados quando fixaram seus subsídios, em época de congelamento de preços e salários, fixados em um plano federal, em quantia exorbitante” (TJMG, 4ª C., Ap. 1.039-7, j. 29.12.92, rel. Des. Alves de Mello, RT 699/140)

Este autor, ao qualificar funcionalmente o aparente conflito entre regras e princípios, assim perlustra o assunto (op.cit., p.212): “O art. 37 da CF/88 traduz a opção do legislador em orientar a Administração Pública e vincular o administrador por meio de princípios jurídicos setoriais, os quais querem – não só, mas também –, em última análise, limitar o poder.”  Há, porém, uma situação no caso concreto que, cremos, é imperioso analisar, à luz dos princípios acima.

O art. 5º, inciso IV, da CF/88, veda expressamente o anonimato. Todavia, este tema é controvertido na doutrina no que tange à licitude da denúncia anônima. É sabido que os procedimentos preliminares de investigação policial admitem a denúncia anônima (vide o “disque-denúncia”) como fonte. Recentes leis estaduais do RJ e SP (respectivamente leis 6.528/13 e 50/14) vedando o anonimato, proibiram o uso de máscaras ou de qualquer outra forma de ocultar o rosto para impedir a identificação pessoal em manifestações populares.

A Ouvidoria do MPRJ também admite o anonimato em suas denúncias on line (http://www.mprj.mp.br/comunicacao/ouvidoria), embora, naturalmente, o IP do denunciante incauto fique acoplado ao teor da denúncia, numa espécie de anonimato mitigado. Na esfera administrativa, as prefeituras têm admitido, como ferramenta de eficiência administrativa, denúncias anônimas de supostos ilícitos administrativos, tais como funcionamento em dissonância com o Alvará ou mesmo sua ausência, a desordem urbana como mola propulsora da atuação administrativa. No caso da Prefeitura do Rio de Janeiro, foi criado o 1746, fonte de auditagem de denúncias de ilícitos administrativos e sua apuração, bem como pedidos de providências no espectro de atuação da Prefeitura. Decreto Municipal nº 33.530/2011.

Uma das melhores críticas doutrinárias sobre anonimato provém de Juliano Taveira Bernardes e Olavo Augusto Viana Alves Ferreira (in Direito Constitucional. Tomo II. 8ª ed. Salvador: JusPodivm, 2019, p.141): “Denúncias caluniosas ou inverídicas não estão protegidas pela liberdade de manifestação do pensamento. Daí a preocupação quanto às denúncias anônimas, cujo objetivo possa ser prejudicar desafetos, de modo inescrupuloso e injustamente, sem permitir a responsabilização do denunciante”.

Ou seja, o cidadão não pode ter acolhida uma denúncia anônima contra seus vizinhos ou desafetos, pois isto interfere e deturpa o espírito do Decreto criador do sistema 1746, desviando recursos humanos e materiais escassos não no atendimento do interesse público, mas, ao invés, no acobertamento de interesses individuais escusos, em autêntico deturpação funcional da Administração. Excluem-se deste segmento pedidos de providências quanto a desabamento de prédios coleta de lixo, estacionamento irregular, queda de árvores na via pública que, não mirando em indivíduos certos (“desafetos”), resgate de animais, miram na administração do espaço público urbano, no ordenamento da urbe.

A mobilização de recursos públicos como instrumento de vendetta privada via uso da Administração para fins iníquos vulnera a ordem constitucional e viola os especificamente os princípios da razoabilidade, moralidade e da vedação ao anonimato. Exemplificando com casos concretos, elegeríamos os seguintes: denúncia anônima de venda de esterco em área de favela sem endereço preciso; denúncia anônima de suposto aviário em residência em área carente cujo proprietário criava umas poucas galinhas de estimação; denúncia anônima de aluguel de artigos para festa em residência de condomínio de luxo, fechado, em área nobre; a loteca que funciona embaixo de um sobrado não paga a conta de luz ao locador, etc.

O que se deve levar em consideração para aferir a juridicidade da apuração destes relatos é que para averiguar cada uma é necessário empregar uma viatura oficial com motorista e agente fiscal, significando custo efetivo da cara máquina pública em evidente desvio de finalidade pois a Administração e suas ações não deve ser pautada por atendimento robotizado oriundo de queixas individuais anônimas e de menor relevância, na maioria delas sem resultado efetivo, mas, ao invés, deveriam resultar de políticas oficiais racionais e ponderadas, consistindo em metas específicas consideradas prioritárias.  A real efetividade é realizada quando metas traçadas com fim de atender ao interesse público são estabelecidas hierarquicamente, após passar pelo crivo do tirocínio do escalão superior. A inefetividade do atendimento cego e robotizado aos chamados da central 1746 carece de análise prévia de racionalidade antes que seja tramitada pela capilaridade da Administração e até chegar à ponta do sistema (verificação no local).

É evidente, neste contexto, o mal direcionamento dos recursos públicos que, assim, suga recursos públicos caros e escassos para apurar denúncias anônimas descabidas enquanto são preteridas ações efetivas de controle social e uso eficiente do poder de polícia administrativa. À luz do que acima se expôs, até mesmo o princípio da eficiência fica mitigado, mas certamente o contexto de desperdício narrado viola também os princípios da moralidade e razoabilidade, podendo ainda configurar desvio de poder.

Enquanto o campo privado é dominado pela ideia de “propriedade” o direito administrativo é dominado pela finalidade. Quando uma ação administrativa visa atender necessidades particulares descabidas ou de má-fé que se ocultam no anonimato, ao invés da satisfazer primariamente o interesse público (pois o que se pretende é passar uma imagem de pseudo-eficiência), estamos diante da patologia intitulada “desvio de poder”.

José Cretella Junior (in O Desvio de Poder na Administração Pública. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.264) assinala: “A jurisprudência pátria, em muitos e significativos julgados, principalmente em matéria expropriatória, no âmbito do funcionalismo, no setor do poder de polícia e, atualmente no campo das licitações, é pacífica e unânime em consagrar a anulação dos atos administrativos por desvio de poder.”

É possível concluir que o Sistema 1746 admite iniciativas detratoras de cunho exclusivamente privado, já que permite a fustigação anônima de desafetos, e substituindo com ações casuístas e dispendiosas o que o ordenamento impõe que deve decorrer de políticas públicas que contemplem a equidade, a razoabilidade, a moralidade e excluam o desvio de poder.

Sobre o autor
Eduardo de Souza Coelho

Advogado. Pós-Graduado em Direito Penal

Informações sobre o texto

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