3. RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE
Primeiramente, cabe dizer que a perda de uma chance não é considerada, de forma unânime, um dano individual indenizável. Segundo Nerilo (2016, p. 127), “há duas correntes a respeito: uma que a inclui como espécie de dano, e outra que a classifica como mitigação do nexo de causalidade, mormente em se tratando de perda da chance de evitar um dano”.
Contudo, desde 2011 há o enunciado doutrinário nº 444, aprovado na V Jornada de Direito Civil, que traz o seguinte entendimento:
A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial [...].
Esse enunciado acabou reconhecendo ampla reparação da teoria da perda de uma chance no Brasil, e colocou-a como uma espécie única, que pode ocorrer tanto atrelada a um dano material, quanto a um dano imaterial.
A respeito disso, a presente pesquisa se desenvolveu no sentido de analisar os aspectos que constituem o dano pela perda de uma chance e, após, apresentar qual é a posição teórica dos diversos autores consultados, no tocante a sua classificação.
3.1 A PERDA DE UMA CHANCE COMO MOTIVADORA DE RESPONSABILIDADE
A perda de uma chance se caracteriza nas situações em que a vítima tinha a oportunidade de obter um lucro ou evitar um prejuízo, e isso lhe é tirado. Sobre o conceito de chance, Silva (2013, p. 13-14) sustenta que:
A chance representa uma expectativa necessariamente hipotética, materializada naquilo que se pode chamar de ganho final ou dano final, conforme o processo aleatório. Entretanto, quando esse processo aleatório é paralisado por um ato imputável, a vítima experimentará a perda de uma probabilidade de um evento favorável.
Nesses casos, o impedimento do dano final, ou o sucesso da vantagem esperada, nunca são certos, tratando-se, portanto, apenas de uma possibilidade. Assim expõe Nerilo (2016, p. 128): “na perda de uma chance, não há certeza sobre o ganho, mas há certeza quanto à oportunidade que já era da vítima”.
Um exemplo clássico, seguidamente usado pela doutrina, é o advogado que perde o prazo para interpor um recurso. Como destaca Savi (2009, p. 2):
[...] se fosse possível afirmar que o recurso seria provido pelo Tribunal, teríamos a prova da certeza do dano final e, com isso, o ofensor seria condenado ao pagamento de todos os benefícios de que o cliente iria auferir com a vitória no processo judicial. Se, por outro lado, fosse possível demonstrar que o recurso não seria provido, teríamos a certeza da inexistência do dano final e, assim, o advogado negligente estaria liberado da obrigação de indenizar.
Por óbvio, nunca se saberá o resultado do recurso que não foi interposto. No final, o dano experimentado pelo cliente é: a improcedência de seus pedidos. E não há qualquer espaço para a busca da indenização em razão da perda desta vantagem, já que não há como responsabilizar o profissional sem saber qual seria a decisão do Tribunal. Este é o motivo pelo qual o dano decorrente da perda de uma oportunidade foi ignorado pelo Direito por tanto tempo.
Não obstante, no momento em que se considera a chance como um bem jurídico único, é possível responsabilizar o ofensor por esta perda. A modalidade da perda de uma chance vem, portanto, suprir uma necessidade que não se enquadrava em nenhum tipo de dano indenizável admitido até então.
3.2 A PERDA DE UMA CHANCE E O LUCRO CESSANTE
É importante destacar que há distinção entre a perda de uma chance e o lucro cessante, até porque, como assinala Savi (2009, p. 15), se não existisse, um estaria inserido no outro, de forma com que não haveria qualquer interesse prático no assunto.
“A perda de uma chance decorre de uma violação a um mero interesse de fato, enquanto o lucro cessante deriva de uma lesão a um direito subjetivo”. (SAVI, 2009, p. 15, grifo do autor). No caso do lucro cessante, o autor do pedido de indenização deve fazer prova dos pressupostos e requisitos necessários para a verificação do lucro que se perdeu por conta do dano final. Enquanto nas hipóteses de perda de uma chance, não é possível demonstrar o dano final, sendo que não é sabido se ele de fato ocorreria (caso a chance da vítima não fosse tolhida).
3.3 REQUISITOS DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE
Para existir a possibilidade de aplicação da perda de uma chance em um caso concreto, faz-se mister observar os requisitos gerais da responsabilidade civil – ação ou omissão, culpa, nexo de causalidade e dano – e, ainda, os requisitos específicos dessa teoria.
Não é qualquer oportunidade perdida que pode gerar a responsabilidade civil pela perda de uma chance. No caso concreto é preciso averiguar se a chance perdida era séria e real. “Desse modo, para que uma demanda com base na teoria da perda de uma chance seja procedente, o autor deverá demonstrar muito mais do que uma simples esperança subjetiva”. (SILVA, 2013, p. 138). Não fosse assim, haveria uma banalização na aplicação desta teoria.
Esse também foi o entendimento apresentado pela Ministra Fátima Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial 965758/RS, feito pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, publicado em 2008:
Com razão, há possibilidades e probabilidades diversas e tal fato exige que a teoria seja vista com o devido cuidado. No mundo das probabilidades, há um oceano de diferenças entre uma única aposta em concurso nacional de prognósticos, em que há milhões de possibilidades, e um simples jogo de dado, onde só há seis alternativas possíveis. Assim, a adoção da teoria da perda da chance exige que o Poder Judiciário bem saiba diferenciar o ‘improvável’ do ‘quase certo’, a ‘possibilidade da perda’ da ‘chance de lucro’, para atribuir a tais fatos as consequências adequadas.
(STJ, REsp 965.758/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, DJe 03.09.2008)
Dito isso, vale destacar que o problema da responsabilização do dano pela perda de uma oportunidade paira no seguinte questionamento: como distinguir quais são chances sérias e reais e quais não são? Savi (2009, p. 113) esclarece que: “Essa tarefa é do juiz, que é obrigado a fazer um juízo prognóstico sobre a probabilidade concreta que o sujeito tinha de conseguir o resultado”. Esse autor entende que o magistrado deve valorar as possibilidades, para escolher quais são relevantes para o ordenamento, fazendo com que cada caso concreto deva ser analisado em particular.
3.4 NATUREZA DO DANO PELA PERDA DE UMA CHANCE
Como já dito anteriormente, há divergências na definição da natureza da teoria da perda de uma chance. Em sua tese, Glenda Gonçalves Gondim esclarece que isso ocorre porque a existência dessa modalidade depende de uma interpretação mais flexível do nexo de causalidade (GONDIM, 2010).
Trata-se de vítimas que necessitam ser ressarcidas, mas que sofreram um dano que não guarda relação causal com a conduta culposa. Para solucionar esse problema, surgiu uma nova interpretação da causalidade, resultando na criação da teoria da reparação da perda de uma chance. Essa novidade ocasionou a divisão doutrinária entre correntes: uma que acata a chance perdida como dano autônomo; e outras que interpretam a “possibilidade de ocorrer algo” como uma subespécie híbrida, estando no caminho entre dano emergente e lucro cessante.
Silva (2013, p. 215-216), um dos pioneiros no estudo aprofundado do assunto no Brasil, entende que:
[...] a aceitação da perda de uma chance como espécie de dano certo aparece como o caminho que o direito nacional segue e continuará a seguir, eis que, no ordenamento brasileiro não se encontra qualquer dispositivo que possa tornar-se um óbice para a aplicação da teoria da perda de uma chance.
No mesmo sentido, conforme lição de Noronha (2007, p. 672):
[...] o dano da perda de chance é ainda um dano certo, que pode dizer respeito à frustração de uma vantagem que poderia acontecer no futuro (dano futuro) ou à frustração da possibilidade de ter evitado um prejuízo efetivamente verificado (dano presente); esse dano da perda de chance contrapõe-se a um dano final que, este sim, nas situações aqui consideradas, é dano meramente hipotético, eventual, incerto.
Ao separar o dano final incerto, da chance perdida, os dois autores acima citados conferem caráter de certeza à perda da possibilidade, entendendo-a como um dano em si mesma.
Dessa forma, é possível identificar nos casos da teoria da perda de uma chance todos os pressupostos caracterizadores da responsabilidade civil: a ação (conduta omissiva ou comissiva do ofensor), o dano (a retirada da oportunidade de ocorrência de um resultado final vantajoso), a culpa (manifestada através de um dolo direito ou de negligência, imperícia ou imprudência) e, por fim, o nexo de causalidade (que acertadamente reside na ligação entre o ofensor e o dano individual, independentemente do dano final).
Em oposição, a outra corrente é defendida por Stoco. Esse autor critica veementemente a aplicação da perda de uma chance para responsabilizar profissionais liberais. “[...] A maior heresia será admitir que o profissional, em uma obrigação contratual de meio, seja responsabilizado pelo resultado. (STOCO, 2007, p. 512). É evidente que fica impossível admitir a chance perdida como uma nova espécie de dano quando não se considera esta independente do dano final.
Essa questão é controvertida tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. É corriqueiro haver pedidos pleiteando a reparação integral de danos finais, quando na verdade se tratava claramente de perda da oportunidade de obter vantagem. É comum também, a indenização pela perda de uma chance ser tratada nas decisões judiciais como se dano moral fosse, ou ainda como lucro cessante.
A confusão pode se dar no fato de que muitas vezes um mesmo acontecimento aparentemente gera dano material, dano moral e dano pela perda de uma chance. A cumulação desses três pedidos indenizatórios individuais pode ser observada na seguinte apelação cível, apreciada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em 2016:
INDENIZAÇÃO. DANOS PATRIMONIAIS E EXTRAPATRIMONIAIS. EXTRAVIO DE BAGAGEM. ALEGADAS DESPESAS IMPREVISTAS A PARTIR DO EVENTO DANOSO. ABALO ANÍMICO DECORRENTE DO SENTIMENTO DE IMPOTÊNCIA E DA FRUSTRAÇÃO DAS EXPECTATIVAS DO AUTOR EM RELAÇÃO AO TORNEIO DE FUTEBOL DE MESA PARA O QUAL SE INSCREVERA. IMPOSSIBILIDADE DE COMPETIR PELA FALTA DO UNIFORME DA DELEGAÇÃO. ALEGADA PERDA DE UMA CHANCE DE SAGRAR-SE CAMPEÃO NA MODALIDADE. PARCIAL PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. APELO DA EMPRESA AÉREA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA PELA FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. EXISTÊNCIA DE PROVAS SUFICIENTES A EMBASAR O RESSARCIMENTO DETERMINADO. NEXO DE CAUSALIDADE A LIGAR A PRESTAÇÃO DEFEITUOSA DOS SERVIÇOS COM O PREJUÍZO PATRIMONIAL RECONHECIDO NA SENTENÇA E COM OS DANOS EXTRAPATRIMONIAIS SOFRIDOS. RECURSO ADESIVO DO DEMANDANTE. DESPESAS TELEFÔNICAS REALIZADAS NA TENTATIVA DE RECUPERAR SEUS PERTENCES. OBRIGAÇÃO DE RESSARCIR INCONSTESTE. MAJORAÇÃO DA COMPENSAÇÃO DO ABALO ANÍMICO INDEVIDA. VERBA FIXADA COM PROPRIEDADE, ALBERGANDO, TAMBÉM, A REPARAÇÃO DA CHANCE PERDIDA. CORREÇÃO, DE OFÍCIO, DOS JUROS DE MORA. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. CONSECTÁRIO QUE DEVE CORRER A PARTIR DA CITAÇÃO. RECURSOS CONHECIDOS, PROVIDO PARCIALMENTE O DO AUTOR E DESPROVIDO DA RÉ.
(TJSC, Apelação Cível n. 2015.040289-1, de Criciúma, rel. Des. Ronei Danielli, Terceira Câmara de Direito Público, j. 15-03-2016).
O requerente da demanda adquiriu passagens aéreas para Salvador, com objetivo de participar de um torneio esportivo. Chegando no destino, percebeu que sua mala havia sido extraviada. O fato ensejou à vítima a privação de seus pertences por três dias, e impediu sua participação no torneio por não ter os acessórios, roupas e demais objetos imprescindíveis para tal.
Por este motivo, o autor da ação alega ter sofrido danos patrimoniais oriundos dos gastos com remédios, roupas, transporte para ir até os lugares realizar as compras necessárias, entre outros devidamente reconhecidos em sentença proferida em 1º grau, e mantidos no julgamento do recurso. Alegou também danos morais decorrentes do abalo, inconvenientes e frustração experimentados nos dias em que ficou sem seus objetos. E, por fim, também pediu danos pela perda de uma chance, argumentando que o extravio da bagagem foi responsável pela sua não participação no campeonato, o que ocasionou a perda da chance de ser campeão na modalidade de futebol de mesa.
Os danos de ordem moral foram reconhecidos e confirmados na apelação, no entanto, os danos pela perda da chance de ganhar o campeonato foram entendidos pelos julgadores do TJSC como mais uma faceta contemplada pelo dano moral, não podendo ser indenizáveis a título de dano autônomo. De acordo com o relatório do acórdão, é possível perceber que a chance perdida e o nexo causal desta com a perda da bagagem foram reconhecidos, mas que na hora de fixar a indenização houve a concepção de que um estaria inserido no outro.
Savi (2009, p. 82-83) explica que, conforme entendimento adotado pelo STJ, a aplicação da teoria da perda de uma chance pode resultar em dano moral. Partindo desse ponto, não seria prudente que uma ação gerasse dano pela perda de uma chance cumulado com dano moral. Ao mesmo tempo, esse autor é da opinião de que a perda de uma oportunidade tem natureza de subespécie de dano emergente, portanto, imediato e mensurável.
O problema da cumulação do dano pela perda de uma chance com danos de ordem moral, parece esclarecido em trecho do Informativo nº 513, publicado pelo Superior Tribunal de Justiça, em 2013, com a seguinte redação:
[...] A perda da chance, em verdade, consubstancia uma modalidade autônoma de indenização, passível de ser invocada nas hipóteses em que não se puder apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final. [...]
REsp 1.254.141-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/12/2012.
Este importante informativo, se analisado conjuntamente com o Enunciado da V Jornada de Direito Civil (devidamente referido no tópico 3 do presente artigo), resulta no entendimento de que, para o Superior Tribunal de Justiça:
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A aplicação da teoria da perda de uma chance é um dano autônomo da responsabilidade civil, passível de indenização individual.
A perda de uma oportunidade pode ocasionar tanto danos patrimoniais, quanto danos extrapatrimoniais, como por exemplo: o dano moral.
Quando for possível apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final –assim como na jurisprudência acima citada – não será plausível encontrar decisões que cumulem dano material, dano moral e dano pela perda de uma chance, sob pena de se exigir, duas vezes, o pagamento de indenização por um dano de mesma natureza.
Porém, quando não se puder apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final, a única forma de responsabilização é a aplicação da teoria da perda de uma chance, e aí sim, esta aparecerá como um direito subjetivo da vítima, passível de indenização autônoma e perfeitamente aferível.
Como verificado até então, a pesquisa deste ponto específico do presente artigo revelou diversas posições existentes: há quem considere a perda de chance como espécie intermediária entre o dano emergente e o lucro cessante; há quem defenda que se trata de derivação de dano emergente; há quem acredite ser uma concepção mitigada do nexo causal; há quem afirma ser uma ampliação do conceito de dano e, portanto, um dano autônomo.
Apesar disso, foi possível verificar que nas doutrinas mais recentes e nos trabalhos mais aprofundados sobre essa teoria, a classificação predominante é a de que se trata de uma nova espécie de dano que atinge tanto a esfera patrimonial quanto a extrapatrimonial. Hora ou outra se percebe que o dano moral e dano material não conseguem, sozinhos, abarcarem a chance perdida por completo. Consequentemente, há cada vez maior incorporação desta teoria no ordenamento brasileiro, juntamente com a consciência de que é única, com características muito particulares.