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A responsabilidade pré-contratual pela quebra dos deveres acessórios:

admissibilidade no direito brasileiro

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Agenda 18/11/2005 às 00:00

O mandamento da boa-fé objetiva não se limita aos momentos da conclusão e da execução do contrato, admitindo-se a existência de uma responsabilidade civil fora destes limites.

RESUMO

O presente trabalho foi impulsionado pela importância da situação havida a partir de fatos que ensejam a responsabilidade pré-contratual pela quebra dos deveres acessórios. A partir de uma concepção diferenciada do conceito de obrigação, em que esta passa a comportar diferentes tipos de prestações, surgem os deveres acessórios de conduta, diretamente ligados à satisfação integral dos interesses das partes envolvidas na relação. Com o advento do Código Civil de 2002, o mandamento da boa-fé objetiva vem expressamente referido no artigo 422. Entretanto, do modo como foi redigido, o dispositivo tratou apenas dos momentos da conclusão e da execução do contrato. Isto não significa, todavia, que não seja possível admitir, dentro do direito brasileiro, a existência de uma responsabilidade civil fora destes limites. Como o trabalho se ocupa em demonstrar, mesmo antes do advento do Código Civil de 2002, a jurisprudência nacional já fora capaz de operar construções que comprovam a possibilidade de responsabilização por fato ocorrido em momento anterior ao da contratação propriamente dita. Isto porque, ao ter se utilizado da técnica conhecida como "cláusula geral", o legislador possibilitou a que o intérprete possa fazer a adequação da norma ao caso concreto, ainda que este extrapole os limites daquela.


1 INTRODUÇÃO

Como as ciências humanas de um modo geral, ao Direito também incumbe o estudo e a análise dos sucessivos fenômenos sociais, surgidos a partir das transformações ocorridas no seio da sociedade contemporânea, notadamente capitalista.

Neste contexto e sempre tendo em vista a necessidade de que o Direito atue como um meio instrumentalizador da Justiça, é necessário a preservação de um equilíbrio que subsista em todas as fases das relações sociais, e em particular, das relações contratuais, e não apenas durante o momento da conclusão do negócio.

Assim, adquire grande relevância atualmente a tutela jurídica do período que antecede a conclusão do contrato propriamente dito, a que a doutrina tem se referido como pré-contratual.

Desta forma, o presente trabalho se ocupa em demonstrar o reconhecimento deste fenômeno notadamente dentro do contexto do Direito brasileiro, a partir de fatos que motivaram sua apreciação pelos tribunais pátrios.

Em um primeiro momento, faz-se necessário demonstrar de que modo o princípio da boa-fé, mais propriamente o da boa-fé objetiva, passou a figurar no rol das diretrizes que norteiam as relações contratuais de acordo com o ordenamento jurídico nacional. Sob esta ótica, no primeiro capítulo busca-se abordar as funções tradicionalmente acometidas pela doutrina ao instituto, bem como o tratamento legislativo que lhe é dedicado pelos principais diplomas normativos em nosso país.

Na seqüência, ocuparemo-nos em situar o princípio da boa-fé dentro do âmbito do Direito obrigacional, a partir do instante em que se visualiza um conceito mais flexibilizado dos deveres reciprocamente considerados pelas partes no momento da contratação. Assim, ao se contrapor as concepções estática e dinâmica da obrigação, torna-se viável compreender como é possível levar em conta outros fatores além daqueles expressamente acordados pelos entes contratantes.

Por fim, o terceiro e derradeiro capítulo deste estudo tratou de investigar a questão especificamente no que concerne à fase pré-contratual, ou como preferem alguns autores, pré-negocial, a qual tem início desde os primeiros contatos entre os entes interessados. Dentre os pontos analisados neste momento, estão os elementos a partir dos quais operou-se a construção doutrinária em torno desta espécie de responsabilidade, a grande discussão travada em torno de sua natureza jurídica, bem como os diversos deveres de conduta violados quando de sua ocorrência.

Para concluir, procuramos demonstrar, através de uma incursão pelos tribunais europeus, notadamente em países como Alemanha e Portugal, algumas das decisões que merecem destaque relativamente à responsabilidade pré-contratual. A partir daí, a constatação da existência de uma repercussão trazida por estes casos no cenário do Direito brasileiro, fez com que a parte final deste trabalho se ocupasse em promover uma análise cronológica das principais decisões proferidas nos tribunais brasileiros, demonstrando assim que a responsabilidade pré-contratual de fato conta com um lugar próprio dentro do estudo da responsabilidade civil como um todo.


2 A BOA-FÉ OBJETIVA COMO NOVO PRINCÍPIO DAS OBRIGAÇÕES

2.1 A AUTONOMIA DA VONTADE COMO PRINCÍPIO BÁSICO DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

O Direito, assim como a generalidade das ciências humanas, não é possível de ser compreendido em sua real magnitude se não quando situado dentro de um contexto sócio-econômico, que o circunda. Assim sendo, cumpre ressaltar a importância que o contrato, enquanto instrumento hábil a promover a circulação de riquezas, assumiu dentro do contexto europeu do século XIX.

Nesta época, assistia-se ao surgimento e ascensão de uma nova classe hegemônica: a burguesia, ao mesmo tempo em que se presenciava o declínio do sistema feudal, no qual despontavam o clero e a nobreza. Como detentora dos meios de produção e do Capital, era interessante e necessário à classe burguesa a existência de um meio que pudesse viabilizar e facilitar as operações econômicas por ela empreendidas. E sob esta ótica, o contrato se colocava como figura de essencial importância. Daí ser possível afirmar que o contrato, àquele tempo, se apresentava como "veste formal das operações econômicas." [01]

Neste patamar, nota-se em toda a Europa, a partir do ano de 1800, uma tendência à elaboração de diplomas normativos basilares: os Códigos, daí porque tal movimento ter se notabilizado como o processo da Codificação. No estudo da figura em apreço, cabe em particular, ressaltar o tratamento destinado por dois dos principais códigos daquele período: o Code Napoleón francês de 1804 e o BGB alemão de 1896, cujos textos, vieram a "[informar] as grandes codificações daquele século (...) tornando-se como que modelos para grande parte dos outros sistemas nacionais." [02] Tanto em um sistema como no outro, era conveniente à época sustentar que a liberdade de contratar estava calcada na consideração de que todos eram iguais perante a lei (igualdade formal), o que maculava, logicamente, a existência de profundas disparidades no seio da sociedade capitalista.

Aos franceses coube a elaboração daquele que hoje é considerado como o "primeiro grande código da idade moderna, o primeiro dos códigos burgueses." [03] Editado em meio à efervescência dos ideais almejados pela burguesia, refletia diretamente, os interesses que impulsionaram a vitória obtida na Revolução de 1789.

Neste sistema, o contrato era visto, antes de mais nada, como modo de aquisição da propriedade, de modo a estar verdadeiramente a ela subordinado, e que atuava preponderantemente como meio de circulação de riqueza. Assim sendo, o direito à propriedade revestia-se em uma nova forma de utilização de terras, em detrimento do antigo regime de produção feudal.

Para melhor compreensão do papel desempenhado pelo instituto do contrato em França, célebres são as palavras de Enzo ROPPO. Segundo ele:

Em toda uma tradição do pensamento jurídico oitocentista, destinada a perpetuar a sua influência também no século seguinte, liberdade e propriedade estavam, de facto, associadas à maneira de um binômio indissolúvel: a propriedade (privada) é o fundamento real da liberdade, o seu símbolo e a sua garantia relativamente ao poder público, enquanto, por sua vez, a liberdade constitui a própria substância da propriedade, as condições para poder usá-la conformemente com a sua natureza e com as suas funções; sem propriedade, em suma, não há liberdade, mas inversamente, não pode haver propriedade dissociada da liberdade de goza-la, de dela dispor, de transferi-la e fazê-la circular sem nenhum limite (e portanto dissociada da liberdade de contratar). [04]

Diverso, por sua vez, foi o desenvolvimento alcançado pelo contrato no âmbito do Direito germânico, em que se encontrava inserido como espécie dentro de uma categoria muito mais ampla que o precede: a do negócio jurídico.

Trata-se, segundo aquela concepção, de uma categoria notadamente mais abstrata e genérica, tanto assim que se encontravam sobre o seu manto não apenas as múltiplas espécies de operações econômicas, mas também aquelas concernentes, como dissemos, ao Direito sucessório e de família.

Dentro deste contexto, adquire destaque preponderante o elemento volitivo, tanto assim que passou-se a se conceber a existência de um "dogma da vontade". De fato, esta se apresentava como elemento determinante na constituição de direitos e obrigações. Preocupados em protegê-la e de modo a poder ser manifestada de forma livre e espontânea, a doutrina germânica se ocupou em tipificar uma série de vícios, que uma vez presentes impediriam a vontade de ser validamente considerada.

Dentro deste panorama histórico, depreende-se que tudo tinha origem na vontade das partes, daí ser possível afirmar que constituía seu elemento determinante.

Hodiernamente, é muito comum se ouvir falar em autonomia da vontade e autonomia privada indistintamente, como se representassem a mesma coisa. Na verdade, embora a referência à expressão "autonomia privada" seja posterior àquela primeira, ambas possuem significados diversos.

A autonomia privada compreende uma noção mais bem fundamentada. [05] A partir de seu conceito, é possível distingui-la como algo mais voltado aos aspectos econômicos [06] que envolvem os negócios jurídicos. Na definição de Vera de FRADERA, "o princípio da autonomia privada [expressa] a autodeterminação de que é dotado todo o indivíduo capaz de agir no ordenamento jurídico e que pode estabelecer, pela vontade, efeitos jurídicos reconhecidos pela lei." [07]

Feitas essas considerações, já é possível partir para a conceituação de tão importante princípio. Na célebre definição de Henry DE PAGE [08], este deve ser entendido como:

o poder que tem as vontades particulares de regularem elas próprias todas as condições e modalidades de seus ajustes (...), de decidirem sozinhas e sem tutela legal, da matéria e da extensão de suas convenções, numa palavra, de darem aos seus contratos o conteúdo, o objeto que entenderem conveniente e que lhes é permitido escolherem com toda a liberdade, inspirando-se nos seus únicos interesses, e sob a única garantia de seus consentimentos recíprocos validamente trocados.

Falou-se até aqui de algo que, como visto, encontra suas raízes no campo jurídico-filosófico. Este trabalho, contudo, se desenvolverá sob a perspectiva do Direito obrigacional. Incumbe, portanto, empregar uma visão mais pragmática, dentro de seu âmbito de incidência. É o que se faz a partir de agora.

2.1.1 Liberdade Contratual

Fundada no princípio da autonomia da vontade, a liberdade contratual manifesta-se através da "amplitude deixada aos particulares para disciplinarem (...) seus [próprios] interesses." [09] Em outras palavras, é a faculdade que as partes têm de se "auto-vincularem" [10], conforme melhor lhes convier, "suscitando os efeitos tutelados pela ordem jurídica." [11]

Deste modo, a regra vigente em sede de contratos privados consiste em que os particulares são livres para "poderem agir por sua própria e autônoma vontade". [12]

Doutrinariamente, reconhecem-se algumas faculdades que a sua manifestação envolve, dentre elas liberdade de celebração [13] que quer significar a possibilidade de querer ingressar ou não em uma relação contratual qualquer, conforme os próprios interesses. E pouco importará se já houve uma manifestação receptícia de vontade ou não (negócios jurídicos unilaterais), ou se a operação visada pelo negócio conta ou não com previsão legal. Sob uma outra ótica é possível afirmar-se ainda que assim como a ninguém é dado o direito de impor coercitivamente ao outro a obrigação de contratar, também não se pode estipular qualquer medida sancionatória pela opção que fez em não contratar.

Em um segundo momento, uma vez se tendo optado pela sua celebração, cumpre considerar que também há liberdade quanto à seleção do tipo contratual, isto é, a determinação em torno da livre de fixação do conteúdo, através da escolha do instrumento jurídico mais apropriado à sua conformação. Vale dizer também que, em regra, não se exige a observância de formalidades específicas para sua constituição. [14]

Muito embora a massificação das relações sociais e os usos do comércio tenham feito com que a imensa maioria dos negócios se efetive através de modelos pré-existentes, isto não significa que haja impedimento para que novos tipos negociais sejam criados.

Atualmente, tais contratos, ditos atípicos, encontram-se amplamente difundidos. São assim denominados uma vez que, em relação a eles, não há a possibilidade de serem aplicadas as regras de uma única espécie de contrato, justamente por conterem traços pertencentes a diversos tipos.

Enquanto instrumento destinado à realização das necessidades sociais, é necessário que o contrato se adapte à finalidade econômica visada pelos participantes. De nada adianta contar com regras estanques para certas operações econômicas se tais regras não são capazes de atender à realidade social. [15]

Por fim, cogita-se ainda de uma terceira faculdade, relativa à liberdade de estipulação [16], que quer representar a deliberação em torno do efetivo conteúdo existente dentro da espécie negocial eleita, ressalvada a preservação da ordem pública e dos bons costumes de que trataremos com mais esmero a seguir.

2.1.1.1 Limitações ao princípio

Embora não se discuta que a referida diretriz se apresente como traço fundamental do Direito obrigacional, não se pode esquecer que os efeitos emanados desta manifestação repercutem dentro de um contexto social. Há que se considerar o interesse coletivo, que muitas vezes pode estar em oposição à finalidade visada pelo acordo de vontades.

Isto porque a supremacia da autonomia privada vigente no Estado liberal do século XIX, calcava-se no triunfo do Iluminismo e do liberalismo político e econômico. [17] Com o declínio do Absolutismo e o surgimento dos Estados independentes, o dogma da autonomia da vontade começava a se enfraquecer, ou dito de outro modo, a se relativizar.

Atualmente, tais restrições são de três ordens: as regras jurídicas de natureza cogente, as normas de ordem pública e finalmente as que decorrem dos ditames da moral e dos bons costumes.

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Quanto as primeiras, correspondem a normas "que estabelecem princípios cuja manutenção é necessária à ordem social e, por isso, impõe-se obrigatoriamente a todos os indivíduos, inderrogáveis que são pela vontade privada". Distinguem-se das não cogentes uma vez que estas últimas se caracterizam pela "inafastabilidade de incidência da norma pela vontade humana." [18]

De outro modo, tem-se entendido que a norma de ordem pública é a que"se relaciona com os interesses essenciais do Estado ou da coletividade, ou que fixa, no Direito Privado, as bases jurídicas sobre as quais repousa a ordem econômica ou moral de determinada sociedade". [19]

Outrossim, a noção de moral confunde-se com um juízo subjetivo, o qual, dirigindo-se ao sentimento pessoal, influi profundamente na vida do homem. Obviamente que com o decorrer do tempo acaba sofrendo diversas transformações. Sua subjetividade é de tal ordem que uma conduta pode, ao mesmo tempo, ser conforme o Direito e contrária à moral, ou vice-versa. [20]

Finalmente, pode-se dizer que a dificuldade em se conceituar o que sejam "bons costumes" decorre daquilo que Kelsen já afirmava: na verdade tanto estes quanto a moral aproximam-se muito mais de uma norma social do que propriamente de uma norma jurídica. [21] Tanto é assim que a sanção para os casos em que há sua violação corresponde à "aprovação ou desaprovação da conduta." [22]

Dito isto, traz-se a partir de agora os outros meios pelos quais a autonomia da vontade se apresenta.

2.1.2 Pacta sunt servanda

O princípio da obrigatoriedade dos pactos, como é mais conhecido, constitui sem dúvida um dos mais sólidos pilares sobre o qual se assenta a disciplina jurídica contratual.

A idéia de que os contratos foram feitos para ser cumpridos tem como principal finalidade conferir segurança jurídica às partes, tornando possível às mesmas suscitar os efeitos pretendidos mas não alcançados em virtude da ruptura.

Embora a expressão consagrada seja de origem romana, tem como seu nascedouro a Grécia Antiga. Lá, o valor da palavra dada e as severas conseqüências em caso de descumprimento - os castigos corporais, quando não a própria vida -, tornavam raridade os casos de transgressão de que se tinha notícia. [23]

Sabe-se entretanto que a massificação das relações contemporâneas tornou freqüente os casos de violação do conteúdo estipulado. O Direito contratual, acompanhando estas mudanças, passou a regular muitas destas hipóteses, como é o caso da resolução por inadimplemento, rescisão por denúncia, anulação por vícios de consentimento, dentre outras. [24]

Não se pode esquecer ainda que a aparente incompatibilidade entre a cláusula rebus sic stantibus e o vetor em estudo deve ser desde logo afastada. Nestes casos a modificação superveniente das circunstâncias impossibilita qualquer previsão neste sentido.

De todo modo, a jurisprudência tem demonstrado mais uma vez que as exceções apenas confirmam a regra, reafirmando assim o caráter excepcional das hipóteses em que a teoria da imprevisão pode ser aplicada. [25]

2.1.3 Relatividade dos Efeitos

Essencialmente, sua idéia central pode ser resumida através da definição segundo a qual "o contrato assume força de lei, (...), todavia, sua eficácia é, ordinariamente, limitada às partes contratantes. Seus efeitos produzem-se exclusivamente entre os contratantes, vinculando tão-somente aqueles que dele participam, não aproveitando nem prejudicando a terceiros." [26]

É definido pela expressão latina "res inter alios acta, aliis neque prodest neque nocent", em vernáculo: "coisa havida entre as partes a terceiros não ajuda nem prejudica." Dito de outro modo, "os efeitos do contrato só se manifestam entre as partes, não aproveitando nem prejudicando terceiros." [27]

Embora a definição dê a entender que se refira apenas aos sujeitos envolvidos, não se pode olvidar que também se aplica quanto ao conteúdo estipulado, o qual se constitui sempre em uma prestação da qual emergem obrigações de dar, de fazer ou de não fazer. Não se poderia mesmo admitir que "a lei interna do contrato" vá além do "objeto que as partes vincularam ao negócio jurídico". [28]

Tanto é assim que Humberto THEODORO JÚNIOR [29] considera que "uma convenção não tem efeito senão a respeito das coisas que constituem seu objeto; e somente entre as partes contratantes".

Dito isto, não resta dúvida de que este vetor representa, em primeiro lugar, "elemento de segurança, a garantir que ninguém ficará preso a uma convenção, a menos que a lei o determine, ou a própria pessoa o delibere." [30]

Entretanto como toda regra, esta também possui exceções [31]. Basta considerar a posição do herdeiro necessário, que, não podendo juridicamente ser considerado terceiro, fica vinculado ao cumprimento da obrigação, tendo em vista que, "sua posição jurídica deriva da do contratante a que sucedeu" [32] e que por este motivo com ela se confunde. Logicamente que tal não poderá ocorrer além das forças do patrimônio que herdou. O mesmo se pode dizer dos contratos tidos como "estipulação em favor de terceiro", cujo exemplo típico é o seguro de vida. Em casos como este, é bom que se diga, conferem-se não apenas vantagens ao terceiro, mas também obrigações, ou seja, prestações exigíveis a seu rogo. Isto porque, como lembra Elsita C. ELESBÃO, "a existência de um contrato produz efeitos no meio social, repercutindo em face de terceiros, que deles não podem escapar por força de lei ou da vontade das partes". [33]

2.1.4 Consensualismo

Também se constitui em desdobramento fundamental do princípio da autonomia da vontade na medida em que, a par da vontade individual conjugada em que se assenta a relação negocial, as partes não se vinculam senão porque lhes interessa.

Assim, "quando o agente, no exercício de sua autonomia, constitui relações que à ordem jurídica interessam, a vontade é pelo Direito realizada, pois dele recebe a força de produzir efeitos jurídicos de conformidade com a norma atributiva". [34]

Isto porque, ao contrário do que ocorria no Direito romano, em que os negócios restringiam-se a alguns tipos contratuais fixos, hoje a complexidade das relações sociais impõe a necessidade de se estabelecer negócios específicos, adequados às particularidades de cada negócio.

Precisando ainda mais este vetor, Elsita C. ELESBÃO nos traz a antiga lição de um doutrinador italiano, para quem esta faceta da autonomia da vontade significa "a manifestação recíproca do acordo completo de duas ou mais pessoas, em relação ao objeto, de cada uma obrigar-se a uma prestação em relação à outra; ou ainda, no obrigar-se uma ou algumas, unicamente em face de outra ou outras, que aceitam, sem assumir qualquer obrigação respectiva." [35]

Daí porque, diante do acordo firmado pelas partes, o magistrado pouco pode fazer. A ele não é dado o direito de alterar a base sobre a qual se assentou o negócio, porque esta é a concretização da vontade soberana das partes. Permite-se apenas que se reconheça, caso algum interessado assim pretender, a existência de vícios de consentimento, ou então que declare a nulidade da avença por afronta às normas de ordem pública.

Formalmente a doutrina admite que a materialização deste princípio pressupõe três importantes condições [36]: a existência de ao menos duas manifestações distintas de vontade, a serem posteriormente conjugadas em um único negócio e que estas vontades se exteriorizem à parte com qual se pretende contratar. Finalmente é necessário que haja uma integração destes intuitos, de maneira que se ajustem mutuamente.

A respeito da primeira das condições elencadas é necessário que haja uma correspondência entre a convicção interna do agente e a declaração de vontade por ele emitida. Do contrário, ou seja, se a parte fizer uso de reserva mental, o negócio firmado pode vir a ser anulado. [37]

Vimos assim os diversos contornos que o princípio da autonomia da vontade admite em face do Direito obrigacional. Sob o manto de uma proteção excessiva do elemento volitivo, uma eventual confiança gerada entre as partes a partir do início das tratativas de negociação, não faz nascer qualquer espécie de vínculo entre elas, não sendo possível, desta forma, se cogitar de qualquer tipo de responsabilidade pré-contratual.

2.2 A BOA-FÉ COMO PRINCÍPIO GERAL DAS OBRIGAÇÕES

Vistos ainda que de forma breve os princípios contratuais admitidos tradicionalmente, passa-se a demonstrar de que modo o vetor em estudo adentrou no rol das diretrizes que hoje norteiam os negócios jurídicos, de modo a flexibilizar sobremaneira o antigo e rígido caráter obrigacional de outros tempos.

Da conjugação dos quatro vetores anteriormente referidos, vale lembrar - o da liberdade contratual, o da obrigatoriedade das convenções, o da relatividade dos efeitos e o do consensualismo, infere-se essencialmente que a grande importância do elemento volitivo erigia como idéia nuclear.

Esta concepção de autonomia plena, que tomou forma principalmente a partir da Revolução Francesa, foi suficiente para se compreender, por muito tempo, os fenômenos abrangidos pelo vínculo negocial. Com o tempo, porém, esta passou a sofrer sensíveis modificações, tendo em vista as sucessivas transformações ocorridas principalmente a partir da Revolução Industrial.

Isto porque a supremacia da autonomia privada vigente no Estado liberal do século XIX, calcava-se no triunfo, de um lado, do Iluminismo e de outro do liberalismo político e econômico. [38] Através de um processo histórico que se inicia com o declínio do Absolutismo e o surgimento dos Estados independentes, a autonomia da vontade afirma-se como um dogma, para, mais tarde, ser relativizada, de modo que hoje não se mostra mais tão rígida quanto antes.

Desta forma, a exemplo do que passou a ocorrer também em outros ramos da ciência jurídica - sobretudo em sede de Direito de família e sucessório - à medida em que o houve uma mitigação do caráter patrimonial das obrigações, a manifestação da vontade deixou de ser tida como a única razão de ser das relações contratuais, sendo cada vez mais valorizada a observância do mandamento da boa-fé.

A esse respeito, mais precisamente acerca da "desqualificação do elemento volitivo", Mario Júlio de Almeida COSTA [39] nos lembra que "na contemporânea civilização de massas, segundo as concepções do tráfego jurídico, existem condutas geradoras de vínculos obrigacionais, fora da emissão de declarações de vontade que se dirijam à produção de tal efeito, antes derivadas de simples ofertas e aceitações de fato."

De modo que com o passar do tempo, "começava-se a reconhecer-se no princípio da boa-fé uma fonte autônoma de direitos e obrigações; transforma-se a relação obrigacional manifestando-se no vínculo dialético e polêmico, estabelecido entre o devedor e credor, elementos cooperativos necessários ao correto adimplemento." [40]

Assim, era necessário tutelar, por exemplo, a situação de hipossuficiência em que se encontrava o sujeito frente aos fornecedores de produtos e serviços, que detinham o poder de barganha. Foi então que a doutrina passou a incluir também a boa-fé como princípio geral do Direito das obrigações.

Em sua modalidade objetiva - a qual permeará todo este trabalho - traduz-se pelo dever de atuar em respeito à pessoa do outro contratante. No mesmo passo de entendimento estão as palavras de Judith MARTINS-COSTA, para quem observá-lo nada mais é do que agir em "consideração para com os interesses do alter, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela própria conduta, nos demais membros da comunidade, especialmente no outro pólo da relação obrigacional." [41]

Uma vez tendo sido esboçada uma breve noção do instituto, passaremos a estudá-lo de forma mais detida. Conforme é possível notar, ele se constitui na base do presente trabalho, tendo sido responsável por promover uma profunda transformação no Direito contratual. Como restará demonstrado nas linhas seguintes o Direito dos contratos acabou por demarcar duas diferentes concepções para este princípio: uma subjetiva, de cunho psíquico, outra objetiva, dotada de um caráter nitidamente mais pragmático.

2.2.1 Boa-fé Subjetiva

Diz-se freqüentemente que determinado sujeito agiu "de boa-fé", ou que, a contrario sensu, estava de má-fé. Embora a referência seja singela, dela se pode extrair que referida concepção aloca-se no âmbito interno do sujeito, na crença que possui de estar agindo legitimamente. Trata-se de uma valoração pessoal, de cunho íntimo, psicológico, de quem imagina estar agindo conforme o Direito. Segundo anotam os lexicógrafos, denota o estado de consciência de quem crê, por erro ou equívoco, que age com correção e em conformidade com o Direito, podendo ser levado a ter seus interesses prejudicados. [42]

Nesta mesma esteira de entendimento, lapidar é a lição de Judith MARTINS-COSTA, para quem:

A expressão "boa-fé subjetiva" denota "estado de consciência", ou convencimento individual de obrar [a parte] em conformidade ao direito [sendo] aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se "subjetiva" justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito na relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a ma-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem. [43]

Sendo referida pelo ordenamento pátrio já há muito tempo, diversos eram os dispositivos em que aparecia no Código Civil anterior. Neste aspecto, também a nova lei a ela faz alusão, em diversos momentos. Todavia, conforme se disse, a exemplo do que já ocorria na lei anterior, é em matéria de Direitos reais, mais precisamente no âmbito do Direito possessório [44] que estão a maior parte de suas referências. Apesar disso, também esteve presente, como já dito, no Direito de família [45] e mesmo na própria esfera contratual. [46]

Por ora, estas considerações são suficientes a demonstrar que não será sob este ângulo que o presente trabalho irá abordar a questão.

2.2.2 Boa-fé Objetiva

Em oposição à idéia anterior está a de boa-fé objetiva. Sob este viés, o princípio passa a demandar daqueles que figuram na relação jurídica uma atitude de correção, de lealdade, de probidade, que visa conferir segurança ao tráfego jurídico.

De maneira que os parceiros contratuais devem atuar no sentido de assumirem uma postura transparente, de retidão, de integridade, que inspire confiança no outro.

Assim, acaba se constituindo em pressuposto para a manutenção da segurança nas relações, uma vez que é difícil imaginar uma sociedade em que, não sendo ela (segurança) tutelada juridicamente, imperasse a incerteza advinda da emissão de declarações que, em face das legitimas expectativas geradas no outro, não viessem a se efetivar. Em casos tais e em face da proteção da confiança dos sujeitos envolvidos, há que existir um meio através do qual, sobretudo quando houverem sido realizadas despesas necessárias com vistas à efetivação do negócio, pudessem ser ressarcidos os prejuízos experimentados pela parte prejudicada. Desta hipótese, porém, cuidaremos mais especificamente em momento posterior deste trabalho.

Dito isto, agora já é possível traduzir-se concretamente o mandamento da boa-fé objetiva em

modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual "cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade." Por este modelo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo. [47]

Fica claro, portanto, que em tais situações busca-se o equilíbrio entre as prestações, tendo em mente a finalidade contratual almejada. E embora esta possa sofrer alterações com o tempo, o mais importante é que esta situação de equivalência quanto aos benefícios auferidos permaneça inalterada.

Assim, já é possível perceber que a boa-fé já não é mais um mero arquétipo de valores morais, passando a se constituir em um elemento o qual deve ser continuamente buscado pelo contrato.

Feita esta distinção, passa-se a examinar de que modo atua a boa-fé objetiva. Basicamente, três são as funções que normalmente lhe são atribuídas pela doutrina.

2.2.3 Funções

a) Boa-fé como cânone hemenêutico-integrativo [48]

Através dela tanto é possível proceder-se ao preenchimento das lacunas existentes no contrato - o que é feito pelo juiz através da especificação do conteúdo contratual - como a este também incumbe propiciar uma interpretação flexibilizadora da vontade das partes [49]. Aqui, cabe ressaltar o relevante papel desempenhado pelo magistrado, o qual, através de um processo mental conhecido como "concreção" [50] e desde que a técnica legislativa empregada assim o permita, pode verdadeiramente assumir uma postura participativa, até mesmo criadora em sua aplicação, na medida em que lhe cabe a valoração do grau de informação, de transparência e de lealdade nas condutas e cláusulas contratuais. [51] Isto, porém, está longe de representar "um processo arbitrário ou irracional, pois a tarefa do julgador é a materialização das valorações, encontráveis, por exemplo, na Constituição da República, através dos princípios por ela consagrados." [52] Justamente por demandar toda esta atuação do intérprete, é que é considerada a mais complexa das funções do aludido princípio.

Tem ainda o condão de substituir diversas outras diretrizes correlatas - que tomam forma diante do caso concreto - a exemplo da vedação ao enriquecimento sem causa, do abuso de direito, do princípio da solidariedade social, da correção e honestidade, bem como da eqüidade. [53]

Há determinadas hipóteses, porém, em que referidas condutas, para além de serem tidas como meramente anexas, acessórias ou laterais, passam a se constituir em elemento da própria obrigação principal. Tome-se como exemplo as atividades desempenhadas por alguns profissionais liberais, tais como a de médicos e advogados, diante das quais se está diante de verdadeiras obrigações de meio.

Outrossim, verifica-se que sua incidência não se restringe apenas ao âmbito do Direito privado, uma vez que também está presente, por exemplo, nas atividades desenvolvidas pela Administração Pública, cujos fundamentos norteadores encontram-se presentes no art. 37 da Magna Carta. Sob este prisma, sua exigência é ainda maior, uma vez que os atos administrativos revestem-se de uma "presunção de legalidade". [54]

b) Boa-fé como criadora de deveres jurídicos

Em uma perspectiva de síntese, este primeiro capítulo tem por finalidade demonstrar de que modo se tem operado a flexibilização das obrigações, com a abertura do sistema para a inclusão de novos princípios no mesmo instante em que antigos preceitos como o da autonomia da vontade tem seu conteúdo relativizado em face do princípio da confiança.

Deste modo, passe-se a se admitir que o conteúdo obrigacional seja constituído não apenas pelo objeto deliberado de comum acordo entre as partes, mas também de uma série de outros deveres que dela emergem e que devem igualmente ser observados sob pena de se frustrar o interesse reciprocamente considerado.

É precisamente sob esse aspecto que está situada a função de criação de deveres jurídicos. Fala-se aqui não mais nos deveres principais, como os que têm origem por efeito direto e imediato do contrato, como, v.g., no contrato de compra e venda, o pagamento do preço pelo devedor e a entrega da coisa pelo credor – tampouco naqueles dotados de prestação autônoma, como os juros decorrentes da mora (tidos também como meramente acessórios da prestação principal).

A referência aqui pretendida diz respeito àqueles deveres exigíveis das partes, os quais dependem basicamente das circunstâncias que cercam o conteúdo de cada obrigação. Constituem, portanto, modelos de comportamento, por meio dos quais os contratantes devem se pautar durante todo o iter contratual, desde as tratativas, até mesmo finda sua execução.

São assim denominados deveres acessórios de conduta, conhecidos também como deveres instrumentais, laterais, de proteção ou de tutela [55]. Sobre eles nos deteremos mais especificamente no Capítulo 3 deste trabalho. Por ora, estas considerações mostram-se suficientes.

c) Boa-fé como limite ao exercício de direitos subjetivos

Ao lado da função de criação de deveres jurídicos, está outra grandiosa contribuição do princípio da boa-fé, se não a mais importante delas: a que limita o exercício abusivo dos direitos subjetivos.

Em relação à ela, há que se atentar para a estreita relação que a aplicação do § 242 do BGB [56] guarda com a noção de abuso do direito - figura diretamente relacionada com a função em análise - bem como em relação ao que se denomina de exercício inadmissível de posições jurídicas. [57] Em sua dissertação de mestrado, a professora Rosalice Fidalgo PINHEIRO, discorre largamente sobre a questão, dizendo, em dado momento que o abuso do direito [quando] fundamentado na boa-fé revelar-se-á quando exista "manifesta desproporção entre o interesse prosseguido pela parte e aquele da contraparte que é lesado." [58]

Resta, portanto, evidenciado o entrelaçamento existente entre a função ora em estudo, a figura do abuso do direito e o exercício inadmissível de posições jurídicas. Isto porque embora o indivíduo, a princípio, desfrute de uma ampla e irrestrita liberdade de contratar, a partir do instante em que inicia preparativos em torno de um determinado objeto, pode, em decorrência de uma atuação culposa sua, vir a causar prejuízos àquele com quem esteja negociando, ainda que não tenham chegado a um denominador comum. E neste ponto, a considerar que o exercício de um direito acarreta responsabilidade, e que tal exercício mostra-se abusivo quando praticado de forma culposa, não há como o agente causador dos danos permanecer imune à situação por ele criada. [59]

A partir desta constatação o desenvolvimento da jurisprudência alemã em torno do assunto acabou classificando o exercício abusivo do direito em alguns grupos de casos típicos, dentre os quais destacam-se a exceptio doli generalis, o venire contra factum proprium, verwirkung, inalegabilidade de nulidades formais, tu quoque e desequilíbrio no exercício jurídico. [60]

É necessário lembrar ainda, que no cenário jurídico internacional o desenvolvimento deste instituto encontrou, num momento inicial, grande oposição de nações cujo sistema jurídico se assenta na Common Law, ou seja, principalmente Inglaterra e Estados Unidos. Isto porque os juristas ingleses, "no período que antecede a relação contratual, não [admitiam] um esboço de contrato e, em conseqüência, [qualquer] responsabilidade civil em caso de ruptura abusiva da negociação." [61] Felizmente, com o passar do tempo assistiu-se à sua admissão naqueles sistemas, sobretudo a partir do "desenvolvimento da análise econômica do Direito." [62] De maneira que no atual estágio em que se encontra o Direito, não há mais como se furtar a tão importante fenômeno, sendo que hoje é largamente reconhecido pelos principais sistemas jurídicos contemporâneos.

2.2.4 A Recepção da Boa-fé pelo Ordenamento Jurídico Brasileiro

Tendo sido esboçada uma noção básica do instituto, passa-se a abordar os dispositivos legais em que o aludido princípio aparece, se não de forma literal, ao menos de modo a tornar possível, mediante um raciocínio lógico-dedutivo, extrair-se o seu sentido. Vale ressaltar que daqui por diante os focos se voltarão unicamente para sua vertente objetiva.

2.2.4.1 Boa-fé e codificação

Até o advento do Código Civil hoje vigente, havia uma grande dissonância em torno da possibilidade ou não de se aplicar o princípio em estudo. Isto porque o Código anterior, de 1916, por não conter uma cláusula geral a seu respeito, não fazia qualquer menção à existência de um dever geral de atuar conforme a boa-fé. Discutia-se assim, a possibilidade ou não de aplicação de um princípio não-legislado. Tanto que nos poucos julgados nos quais foi possível a sua apreciação pelo Poder Judiciário, verifica-se a necessidade de uma fundamentação extensa e trabalhosa, destinada à necessidade de se demonstrar que seus ditames, ainda que não expressos em um texto de lei, defluiriam de uma interpretação sistemática e integrada do ordenamento como um todo.

O Código Civil de 2002 traz uma importante inovação para a aplicação do princípio da boa-fé objetiva: a previsão do art. 422. Não que antes de seu advento isto não pudesse ocorrer [63]. Alguns poucos tribunais, mais notadamente o TJRS já vinha admitindo a incidência da boa-fé objetiva em certas hipóteses. Todavia isto demandava, como já se afirmou, uma extensa, trabalhosa e exaustiva fundamentação, a qual muitas vezes contrariava forte parte da comunidade jurídica que dizia não ser possível a aplicação de um princípio não legislado. [64]

Prevista no artigo 422 como cláusula geral, exige-se que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."

Por cláusula geral devemos entender como uma determinada técnica legislativa, através da qual são propostos standards jurídicos, dotados de proposital vagueza e imprecisão, para que o intérprete, diante da apreciação do caso analisado, elabore a norma mais adequada àquela situação específica. [65]

Em vários momentos da nova lei se percebe esta preocupação social do legislador, a exemplo do art. 421 [66], que fala da função social do contrato, bem como o art. 157 [67], que ao tratar do instituto da lesão, relativiza, nos casos previstos, o princípio da obrigatoriedade das convenções (pacta sunt servanda). [68]

Em contrapartida à normatização através das cláusulas gerais, está a regra de se legislar por fattispeciei que corresponde a se tentar englobar dentro do conceito legal, o maior número possível de situações nas quais o processo de subsunção autoriza o intérprete a aplicar determinada norma. [69]

Pode-se dizer, ainda, que o art. 422, foi, em certa medida, influenciado pelo Código Civil alemão, o BGB, que desde o início de sua vigência, no ano de 1900, já trazia a boa-fé objetiva de forma expressa. Dispõe o § 242 da lei germânica, que "o devedor é obrigado a realizar a prestação de boa-fé, atendendo às exigências dos costumes". [70]

A partir da experiência germânica, e na mesma corrente desta, outros países europeus também passaram a incluí-la em suas leis. [71]

Na aplicação deste princípio ético-orientador [72] enquanto cláusula geral, vale ressaltar, mais uma vez, o papel fundamental a ser desempenhado pelo juiz, que deve ter sensibilidade para retirar do dispositivo de lei um sentido que possa levar à concretização da boa-fé objetiva. Não se trata de um mero artifício de retórica, mas sim de adequá-lo às múltiplas situações que se apresentam na prática.

Isto porque, atualmente, não tem mais sentido um Código que se estenda demasiadamente na tentativa de prever a totalidade das condutas humanas possíveis. [73]

É curioso notar que antes mesmo de sua entrada em vigor, o Código Civil já contava com projeto de emenda em 183 artigos de seu texto, inclusive conferindo uma nova redação ao referido artigo 422.

De acordo com esse projeto, o dispositivo [74] passaria a enunciar as fases principais da obrigação em que se deve atuar conforme a boa-fé objetiva.

Parece-nos que mais uma vez o legislador peca pelo excesso de palavras. Se se trata verdadeiramente de uma cláusula geral, que utilidade haveria então em se especificar as fases em que deva ser observado? Tal conclusão cabe tão somente ao intérprete, este sim o único ente capaz de, conforme os contornos que o caso apresentar, determinar quando e como ele deve ser observado.

Neste sentido, Antonio Junqueira de AZEVEDO critica o instituto na forma como ele foi recepcionado pela lei recentemente em vigor. [75]

Do modo como hoje está previsto, questiona-se se é possível ou não aplicar o art. 422 desde o momento em que se iniciam as negociações. Muitos autores, ao apontarem a falha na redação do dispositivo, afirmam que não seria possível, pois, ao mencionar expressamente os momentos da "conclusão do contrato como em sua execução", estaria se referindo apenas às fases contratual e pós-contratual, respectivamente.

Também é crescente o entendimento contrário, calcado no fato de que como o art. 113 do Código de 2002 dispõe que "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração", o princípio da boa-fé deve ser observado durante todas as fases da contratação. Posicionamo-nos neste sentido.

2.2.4.2. A Boa-fé e a Constituição da República

Por um longo período e até bem recentemente tinha-se no Código Civil – uma referência que, para além da esfera de atuação restrita ao Direito privado, era tida como norma que balizava todo o ordenamento jurídico.

A partir da promulgação da CR de 1988, porém, todo o ordenamento passou a ser visto sob uma outra forma, à luz do sentido pretendido pela Carta Magna. Assim, passou a Lei Maior a atuar como foco que irradia seus efeitos para os mais diversos ramos do Direito.

Daí porque ser equivocado considerar que Código Civil e CR se encontram necessariamente em posição de antagonismo. [76] Pelo contrário, admite-se modernamente que suas normas podem denotar posições coincidentes (como diante dos direitos da personalidade), ou complementares, o que, aliás, é mais usual, haja vista que, em se tratando de legislação ordinária, à lei civil incumbe, em diversas ocasiões, disciplinar o conteúdo constitucional materializado em princípios.

Disse-se que referido fenômeno não é particularidade deste campo do Direito. Para podermos compreender melhor esta afirmação, é útil imaginar a Carta Política no centro do sistema jurídico. Em torno dela, gravitam – por assim dizer – diversas leis, que, dado seu intuito em abranger a totalidade da disciplina jurídica de um determinado tema, tem sido consideradas verdadeiros microssistemas. São exemplos disso a Lei de Locações, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dentre outros diplomas [77].

Considerando-se que, ao invés de uma posição conflitante, presta-se a Lei Maior a atuar como parâmetro, através do qual as demais leis são interpretadas, pode-se dizer que se tentará proceder a uma leitura constitucional da boa-fé.

Tendo em vista o caráter notadamente sociabilizador, coletivizante e democrático da CR, seus preceitos atuam de modo a operar uma verdadeira relativização do modelo contratual fechado de que já tratamos.

Esta preocupação em disciplinar as relações individuais antes situadas apenas no âmbito do Direito privado foi aumentando à medida que o Estado passou a reconhecer a interação do indivíduo no meio social [78].

Concomitantemente, a apreensão deste fenômeno também foi alvo do texto constitucional. Segundo aqueles que se dedicam à moderna Teoria do Estado [79], estas gradativas conquistas sociais foram sendo descritas através dos direitos de primeira, segunda e terceira geração. Observe-se que se naqueles a preocupação era resguardar o indivíduo, para que pudesse exercer suas garantias naturais sem que houvesse a interferência prejudicial do aparelho estatal, nestes últimos – também conhecidos como direitos trans-individuais, difusos e coletivos - e o Direito do consumidor é exemplo típico - a ingerência do Estado vêm se mostrando fundamental para propiciar ao cidadão uma proteção eficaz em face da dinâmica atual de mercado, na qual o economicamente mais forte, o profissional, faz valer seus interesses, em detrimento do leigo, do hipossuficiente. [80]

Com a CR atuando primeiramente neste sentido, observou-se na legislação a ela subseqüente esta mesma tendência. Particularmente quanto ao objeto de nosso estudo, pode-se dizer que foi principalmente o princípio da dignidade da pessoa humana que consubstanciou a boa-fé objetiva. [81] Na verdade, o texto da Lei Maior, fundado também em outros vetores como o da igualdade (art. 5º, caput), erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais (art. 3º, III), construção de uma sociedade livre justa e solidária (art. 3º, I), valorização do trabalho humano e da livre iniciativa (art. 5º, XXXII) e da defesa do consumidor (art. 170, V) acabam por conduzir o intérprete mais atento a um caminho para o qual concorre também o sentido de boa-fé.

Foi desta forma que princípios tidos pela teoria contratual clássica como verdadeiros dogmas - intangíveis, portanto - foram aos poucos sendo flexibilizados. Assim se deu, por exemplo, com o mandamento da obrigatoriedade do cumprimento (pacta sunt servanda), que embora tenha sido demasiadamente enaltecido a partir da Revolução Francesa, foi muito tempo depois redesenhado pela chamada "doutrina social cristã", passando a admitir a modificação de cláusulas, priorizando-se assim uma "equivalência contratual." [82]

É claro que, há até bem pouco tempo - quando a lei civil não previa a boa-fé objetiva - muitos eram aqueles que se insurgiam em sentido contrário, não concebendo a sua utilização. Um entendimento mais aberto e funcionalizado do ordenamento, porém, já tornava possível a sua aplicação.

É que também a Carta Magna possui no interior de seu texto alguns dispositivos em relação aos quais, muito embora não se possa afirmar que se sobrepõem hierarquicamente uns aos outros, têm o condão de desempenhar diferentes papéis. Assim é que os artigos 1º a 4º, verdadeiras "tábuas de valores do ordenamento jurídico" [83], encerram mandamentos cuja eficácia, cuja concretização, tendo em vista a sua importância, dispensam a necessidade de regulação pela via ordinária, uma vez serem considerados como "princípios que contêm normas". [84]

Contudo, para que isto realmente ocorra, incumbe ao intérprete a adoção de uma postura participativa, na criação da norma adequada para o caso concreto. Neste sentido, de grande importância o papel que já vinha sendo desempenhado pelos desembargadores gaúchos, sobretudo pelo atual Min. do STJ, Ruy Rosado de Aguiar Júnior.

2.2.4.3 A Boa-fé e o Código de Defesa do Consumidor

A nova teoria contratual, impulsionada pela oxigenação promovida em todo o Direito privado a partir da promulgação da Carta Magna, foi também apreendida pelo Código de Defesa do Consumidor.

Sua grande contribuição está em que, através dela, "positivou-se a idéia de boa-fé objetiva" [85] em nosso ordenamento. Merece destaque o art. 4º, III, que atua como vetor interpretativo-teleológico [86] e o art. 51, IV, que consubstancia uma cláusula geral [87]. Somados, estes dois artigos tornam possível afirmar que "a idéia de boa-fé constitui a inspiração principal da legislação sobre defesa do consumidor no Brasil." [88]

Nesta lei, a boa-fé objetiva adquire relevância a partir do momento em que o legislador disciplinou não apenas as operações econômicas presentes nas relações de consumo. Ao prescrever a adoção de certas condutas, sobretudo do fornecedor para com o consumidor, fez com que este passasse a ser visto em sua condição de hipossuficiência [89], buscando minimizar os efeitos desta situação e tutelando seus interesses em face dos do mercado.

Sua importância no âmbito das relações de consumo fica bem definida nas palavras de Claudia Lima MARQUES, para quem:

boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação "refletida", uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes. [90]

Falou-se que o legislador ordinário, ao tratar da boa-fé objetiva, prescreve a adoção de determinadas condutas às partes contratantes. Resta indagar que condutas seriam estas.

Basicamente, é possível dividi-las em três: o dever de informar com correção, o de agir com lealdade para com o parceiro contratual e o de protegê-lo, tanto em relação à sua pessoa quanto no que se refere a seus bens, seu patrimônio.

Na lei, o dever de informar assume grande importância durante a fase pré-contratual, em face da publicidade veiculada para a aquisição de produtos e serviços. Andou bem o legislador neste sentido, ao prever, nos arts. 30 e 31, o efeito vinculativo da oferta, bem como a necessidade de se informar com correção. Todavia dito dever não se restringe à fase que antecede o contrato. Aliás, em relação à pós-contratualidade do dever de informar, os meios de comunicação vêm noticiando um número cada vez maior de recalls, aquelas convocações dirigidas geralmente aos proprietários de veículos de uma determinada montadora, para que compareçam às concessionárias da marca e efetuem gratuitamente a troca de um dado componente que esteja apresentando defeito em um número significativo de veículos. Mais do que o interesse em se manter os clientes satisfeitos, vê-se nestas ocasiões a oportunidade de se evitar futuras reclamações, as quais poderiam mesmo ensejar que a parte prejudicada viesse a ingressar em juízo.

No que diz respeito ao dever de lealdade vale dizer que se liga à idéia de transparência, de uma atuação na qual se adote uma postura de correção, de honestidade, de retidão entre as partes contratantes.

Desde o momento de aproximação entre elas, passando pela exigência de exclusividade de negociação quando estas já tenham atingido um determinado ponto nas conversações e se estendendo até mesmo para depois de concluído o contrato, v.g., informando-se ao cliente a mudança de endereço do estabelecimento comercial para o caso de uma eventual reclamação ou mesmo futuros questionamentos.

Por atitude leal, entenda-se também a adoção de uma postura de cooperação, de participação, compreendendo não só a abstenção de determinados comportamentos [91], mas que as partes empreendam posturas ativas no curso do desenvolvimento contratual, como no caso já referido em que mesmo depois de concluído o contrato, mantém-se o cliente informado. [92]

Por fim, quanto ao último dos deveres, o Código de Defesa do Consumidor contém em seu texto uma série de previsões donde é possível se extrair um sentido voltado à proteção do cidadão. Não só na seara consumerista, mas em todo o Direito contratual, referida conduta visa a tutelar tanto a pessoa quanto os bens dos contratantes envolvidos.

Dentre os momentos de maior importância em que a lei o prevê estão o §2º do art. 37, ao definir como abusiva toda publicidade discriminatória, assim como a aquela que "incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança". Do mesmo modo, no art. 39, quando enumera como abusivas uma série de práticas prejudiciais à pessoa do consumidor.

Enfim, em todo o texto da lei 8.078/90 fica clara a intenção do legislador neste sentido, sobretudo ao regulamentar algumas práticas comerciais específicas. Dentre elas, merecem destaque as do art. 33, que trata da oferta ou vendas realizadas com apoio nos meios de comunicação à distância, bem como a tutela do direito de arrependimento para as vendas realizadas fora do estabelecimento comercial [93], conforme prevê o art. 49.

Sobre o autor
Igor Mori

bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Curitiba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORI, Igor. A responsabilidade pré-contratual pela quebra dos deveres acessórios:: admissibilidade no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 868, 18 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7598. Acesso em: 23 dez. 2024.

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