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Inseminação artificial, clonagem do ser humano e sexualidade. Os efeitos produzidos na família, do presente e do futuro.

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Agenda 04/12/2005 às 00:00

2 - A DISCIPLINA JURÍDICA DA FILIAÇÃO E DA FAMÍLIA NA PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL

Todos estamos matriculados na escola da vida onde o mestre é o tempo, e o que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim, terás o que colher. (Cora Coralina)

2.1. Modelo legislativo de cláusulas abertas - Desconstruir para evoluir.

Concordando que reste estabelecido que só num ambiente dialético, reflexivo, despido de preconceitos e estigmas, principalmente originados da vaidade é que se tornará possível a aproximação da realização dos ideais e objetivos democráticos marcadamente estabelecidos e almejados na Constituição Federal, caminhemos.

Ainda que não tenhamos um sistema democrático em pleno funcionamento, com absoluta igualdade de acesso aos bens e valores, através de uma distribuição de riquezas eqüitativa e justa, com atendimento às necessidades básicas de toda a população e, de fato, ainda que se sintam as conseqüências de políticas menos preocupadas com o bem estar da população aplicadas durante décadas no país, com forte tendência à corrupção, à deslealdade, ao arbítrio, à preponderância dos direitos e interesses particulares sobre os públicos, à ilegitimidade do exercício do Poder, mas, de qualquer forma, o ambiente que se vive, as perspectivas que se abrem diante de um sistema constitucional democrático de direito são infinitamente melhores do que se verificava há uma ou duas décadas atrás.

Vale a transcrição de parte do que se pode considerar como um "desabafo" do eminente mestre J.J. Calmon de Passos 51 quando diz:

A redemocratização do Brasil ocorreu num momento "passional" de nossa vida política, após duas décadas que pensamos pudessem ser sepultadas, como se fosse possível eliminar o passado, que se projeta sempre no presente, influenciando-o, queiramo-lo ou não. Processou-se, também, sob a força de um passado ideológico que, embora operante nas mentes, já deixara de sê-lo no concreto-histórico, problematizados que estavam tanto o socialismo real quanto a social democracia, que o liberalismo tivesse sido restaurado no trono de que fora banido. Ouso dizer mesmo, ainda que incorrendo no risco de ser acusado de excesso, que a Constituição de 1988 comporta sejam aplicados a ela os versos melancólicos e realistas de Mário Quintana: "Pobres cartazes", por aí afora/ anunciando alegrias risos/ depois de o circo já ter ido embora. "Ela nos remete a um sonho que não se realizou, porque em total descompasso com o que foi institucionalizado para fazê-lo realidade e a um projeto de Estado que não se concretizou. O que é pior incidiu em grave contradição, porque na "vocação", quis ser futuro, mas na "organização", foi passado, e um passado arcaico. Perdeu-se na indefinição, conseqüência de um impasse não superado. Nem direita, nem esquerda, nem centro; nem presidencialismo nem parlamentarismo; nem economia dirigida nem economia de mercado; nem democracia representativa nem democracia participativa; nem uma carta definidora das regras do jogo, deixada a definição de meta ao confronto político, nem uma constituição dirigente com institucionalização de instrumentos aptos à implementação dos fins constitucionalizados. Permanecemos sempre na indecisão e na indefinição do compromisso híbrido, confiantes num "compromisso futuro" que não veio". (sem destaque no original).

A despeito, porém, da realidade das afirmações, ao menos no que se refere ao Direito Privado, a influência constitucional veio propiciar verdadeira revolução (sem armas) na busca da consagração dos direitos fundamentais, deixando para trás a prevalência patrimonialista. E, é sob este fundamento e estimulado pelo empuxo recebido pelo Direito Privado e, notadamente pelo Direito Civil, em razão da atuação cogente das normas e princípios constitucionais que uma série de autores vêm alardeando que o Direito Civil tende a acabar pela verdadeira invasão sofrida pelo Direito Constitucional, enquanto outros dizem exatamente o contrário. De fato, as normas que não foram recepcionadas pela Constituição ou por algum de seus princípios, automática e instantaneamente, foram expurgadas do sistema jurídico. No entanto, as demais, aquelas que se coadunam com a Constituição, experimentaram sensível reforço ético-jurídico, de forma que a violação passou a configurar, não apenas a afronta a uma norma legal, mas sim à própria Constituição Federal, com todas as conseqüências e perspectivas inerentes a esse fato.

A lógica do raciocínio é irrefutável. Se a Constituição é a lei suprema, admitir a aplicação de uma lei com ela incompatível é violar sua supremacia. Se uma lei inconstitucional puder reger dada situação e produzir efeitos regulares e válidos, isso representaria a negativa de vigência da Constituição naquele mesmo período, em relação àquela matéria. A teoria constitucional não poderia conviver com essa contradição sem sacrificar o postulado sobre o qual se assenta. Daí porque a inconstitucionalidade deve ser tida como uma forma de nulidade, conceito que denuncia o vício de origem e a impossibilidade de convalidação do ato. 52

Há, porém, posicionamentos respeitáveis que sustentam de forma diversa no sentido de que o dogma da nulidade não constitui postulado lógico-jurídico de índole obrigatória, comportando soluções intermediárias, nos termos consagrados pelo ordenamento jurídico. 53

As normas de direito privado e a própria atividade interpretativa foram significativamente alteradas pela Constituição Federal, arejando e obrigando a um posicionamento diferente sobre a isonomia entre todos os filhos, independentemente de sua origem, a tutela dos filhos ligada à espécie de relação preexistente entre seus pais, denotando toda a lógica capitalista e patrimonialista que imperava, e relegava a segundo plano o melhor interesse da criança e dos filhos, o casamento como única forma de constituição de uma família legítima que trazia a reboque sua indissolubilidade, o poder marital, a subordinação da mulher casada ao cônjuge varão, a chefia centralizadora da sociedade conjugal, os excessivos poderes inerentes ao pátrio poder, a presunção de paternidade do marido, tudo em prol de uma propalada paz doméstica, ainda que imposta de forma coercitiva e diante da mais absoluta infelicidade dos membros da família.

Aliás, no que toca à delimitação dos espaços e campos de conhecimento em público e privado, esta interpenetração e influência mútuas, se por um lado vem consistindo num novo manancial de estudos e reflexões no campo do Direito, por outro vem sofrendo sensível perda de consistência e delimitação de espaços estanques e bem definidos, tendendo a uma interpenetração.

Como prega Michel Freitag 54

A divisão entre o Estado, sociedade civil e esfera privada dissolveu-se na tendência pós-moderna de indiferenciação generalizada do espaço social (...) que comporta basicamente mecanismos estruturais de exclusão. O conceito de espaço público, essencial à teoria democrática, converteu-se em mero campo publicitário e midiático.

Buscando de alguma maneira reverter este quadro, a Constituição altera radicalmente o sistema anterior, consagrando a isonomia entre os filhos e entre os cônjuges, revogando assim imediatamente tudo quanto fosse contrário a estes dois mandamentos basilares da nova família, passou a prever a família monoparental formada por um dos descendentes com os filhos (art. 226 § 4º) e extramatrimonial, não fundadas no matrimônio (art. 226 § 3º).

Tais preceitos, combinados com os princípios fundamentais dos artigos 1º e 4º, em particular no que concerne ao artigo 1º, inciso III, segundo o qual constitui fundamento da República a dignidade da pessoa humana, informam toda a disciplina familiar, definindo a nova imagem de valores que privilegiam, em matéria de filiação: a) a funcionalização das entidades familiares à realização da personalidade de seus membros, em particular dos filho 55; b) a despatrimonialização das relações entre pais e filhos (por alguns chamada de repersonalização) e c) a desvinculação entre a proteção conferida aos filhos e a espécie de relação dos genitores.

Assim entendida, a família só deve ser preservada quando represente instrumento de desenvolvimento da personalidade dos cônjuges e dos filhos; ou seja, enquanto ainda representar o lócus ideal e privilegiado para o convívio familiar (art. 226, §§ 1º, 2º e 3º) e veja-se que esta família pode ser ou não formada através do casamento. Esse entendimento representa sensível avanço em relação a posicionamento anterior não muito distante de que só se considerava legítima a família advinda do matrimônio; todas as demais sofriam o constrangimento da pecha de ilegitimidade e a repulsa de uma sociedade burguesa e moralista.

Sob este novo olhar, conclui-se que as ações de Estado são, além de imprescritíveis, inalienáveis, visto que representam a via processual instrumentalizada de busca do direito da personalidade, de forma que a pessoa humana poderá, a qualquer tempo, ajuizar ação de investigação ou de negação de paternidade, tendente a desfazer situação anterior originada de presunção legal ou de decisão judicial com força de coisa julgada material. Exatamente neste ponto se inserem as maiores dificuldades, notadamente diante da reação de setores mais conservadores do Poder Judiciário, que constituem sua maioria, quando se pretende discutir a flexibilização da coisa julgada e sua eventual desconstituição, exatamente por afrontar direito de personalidade, de fundamento e amparo constitucional, tema que será objeto de capítulo próprio.

Apenas a título de exemplo, lembre-se que o casamento era valorado como bem em si mesmo, necessário à consolidação das relações sociais, independentemente da realização pessoal de seus membros. O rompimento da sociedade conjugal, portanto, afigurava-se como o esfacelamento da própria família, reprovado socialmente, a despeito das causas subjetivas que o motivaram. A nova ordem constitucional não expressa mais a comunidade familiar como entidade de ordem pública, e valor superior às pessoas, sendo tutelada somente na exata medida em que for capaz de preservar a dignidade da mulher, do homem e dos filhos, perdendo a validade todas as normas que privilegiavam o vínculo matrimonial em detrimento dos integrantes da estrutura familiar, posto que não recepcionadas pela Constituição Federal ou, em outras palavras, não passaram pela filtragem constitucional.

Alentado e minucioso estudo sobre as conseqüências experimentadas pelos institutos da família e da filiação foi realizado por Gustavo Tepedino 56.

Nessa linha de raciocínio, com acentuada percepção, Heloisa Helena Barboza 57 questionou e em seguida concluiu acerca de qual é o novo papel da família no mundo contemporâneo:

Qual a função atual da família? Se é certo que ela é a base da sociedade, qual o papel que a ela cumpre desempenhar, já que não tem mais funções precipuamente religiosa, econômica ou política como outrora? Qual a base que se deve dar à comunidade familiar para que alcance a tão almejada estabilidade, tornando-a duradoura? Devemos reunir todas essas funções ou simplesmente considerar o seu verdadeiro e talvez único fundamento: a comunhão de afetos?

Ou seja, a família só continuará existindo se fundamentada no princípio da afetividade e do amor, posto que os valores que anteriormente a engessavam, aprisionavam e algemavam, só produziram o nefasto efeito de causar desagregação, lides, violência e desassossego, não sendo difícil perceber que seu fim estaria muito próximo, não houvesse uma ruptura definitiva com elos ultrapassados e de nenhuma significação às pessoas. Nesse sentido, as estatísticas são esmagadoras a demonstrar o decréscimo do número de casamentos, em contrapartida ao enorme avolumar de separações e divórcios. É inerente à natureza humana a busca da liberdade, notadamente quando algo a está sufocando e aprisionando e, às vezes, o custo desta liberdade pode ser a própria vida, basta que se tenha em mente os muitos suicídios e homicídios ditos "passionais" que se assiste no decorrer da história policial e judiciária.

As relações familiares, portanto, passaram a ser fundamentadas em razão da dignidade de cada partícipe. A efetividade das normas constitucionais implica a defesa das instituições sociais que cumprem o seu papel maior. A dignidade da pessoa humana, colocada no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o solo apropriado para o enraizamento e desenvolvimento, daí a ordem constitucional dirigida ao Estado no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente de sua espécie. Propõe-se, por intermédio da repersonalização das entidades familiares, preservar e desenvolver o que é mais relevante entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe, com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas.

A família é valor constitucionalmente garantido nos limites de sua conformação e de não contraditoriedade aos valores que caracterizam as relações civis, especialmente a dignidade humana: ainda que diversas possam ser as suas modalidades de organização, ela é finalizada à educação e à promoção daqueles que a ela pertencem. 58

Para aqueles que temem mais uma vez sua destruição ou dissolução, objeta-se, em contrapartida, que a família contemporânea, horizontal e em redes, vem se comportando bem e garantindo corretamente a reprodução das gerações. Assim, a legalização do aborto na França não conduziu ao apocalipse tão anunciado por aqueles que viam seus partidários como assassinos do gênero humano. Vejamos e esperemos as reações no Brasil, se e quando houver a legalização desse ato, com todas as conseqüências, discussões e divergências que são inerentes e salutares a tema tão contraditório e de vasto campo para discussão e diálogo, como formas de crescimento e maturação.

Despojado dos ornamentos de sua antiga sacralidade, o casamento, em constante declínio, tornou-se um modo de conjugalidade afetiva pelo qual os cônjuges – que, às vezes, escolhem não ser pais – se protegem dos eventuais atos perniciosos de suas respectivas famílias ou das desordens do mundo exterior. É tardio, reflexivo, festivo ou útil e freqüentemente precedido de um período de união livre, de concubinato ou de experiências múltiplas de vida comum ou solitária.

Cada vez mais freqüentemente concebidos fora dos laços matrimoniais, os filhos assistem, uma vez em cada três, às núpcias de seus pais, doravante unidos não para a duração de uma vida, mas, em mais de um terço dos casos, para um período aleatório que se consumará com um divórcio – consentido, passional ou litigioso – e, para as mulheres, com uma situação dita "monoparental" pois são elas que sofrem inicialmente as conseqüências das rupturas por elas provocadas hoje, com mais freqüência que os homens. Tem sua vertente maléfica o poder que obtiveram e conquistaram de estarem ou não unidas a um homem.

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Aos utopistas que acreditam que a procriação será um dia a tal ponto diferenciada do ato carnal que os filhos serão fecundados fora do corpo da mãe biológica, em um útero de empréstimo e com a ajuda de um sêmen que não será mais aquele do pai, argumenta-se que, para além de todas as distinções que podem ser feitas entre o gênero e o sexo, o materno e o feminino, a sexualidade psíquica e o corpo biológico, o desejo de se ter um filho sempre terá algo a ver com a diferença dos sexos. Demonstram isso as declarações dos homossexuais que sentem a necessidade de dar aos filhos por eles criados uma representação real da diferença sexual, e não apenas duas mães das quais uma desempenharia o papel de pai ou dois pais, dos quais um se disfarçaria de mãe.

Finalmente, para os pessimistas que pensam que a civilização corre risco de ser engolida por clones, bárbaros, bissexuais ou delinqüentes da periferia, concebidos por pais desvairados e mães errantes, observa-se que essas desordens não são novas – mesmo que se manifestem de forma inédita – e, sobretudo, que não impedem que a família seja atualmente reivindicada como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Ela é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições.

É claro, porém, que o próprio princípio da autoridade e do ser "separador", sobre o qual ela sempre se baseou, encontra-se atualmente em crise no seio da sociedade ocidental. Por um lado, esse princípio se opõe, pela afirmação majestosa de sua soberania decaída, à realidade de um mundo unificado que elimina as fronteiras e condena o ser humano à horizontalidade de uma economia de mercado cada vez mais devastadora, mas, por outro, incita incessantemente a se restaurar na sociedade a figura perdida de Deus pai, sob a forma de uma tirania. Confrontada com esse duplo movimento, a família aparece como a única instância capaz, para o sujeito, de assumir esse conflito e favorecer o surgimento de uma nova ordem simbólica.

Eis por que ela suscita tal desejo atualmente, diante do grande cemitério de referências patriárquicas desafetadas que são o exército, a Igreja, a nação, a pátria, o partido. Do fundo de seu desespero, ela parece em condições de se tornar um lugar de resistência à tribalização orgânica da sociedade globalizada. E, provavelmente, alcançará isso – sob a condição, todavia, de que saiba manter, como princípio fundador, o equilíbrio entre o um e o múltiplo de que todo sujeito precisa para construir sua identidade. A família do futuro deve ser mais uma vez reinventada. 59 (sem destaque no original).

Na contramão do tempo, da história e das previsões dos menos afeitos à constante alteração do comportamento social, o que se vê é que as pessoas buscam a aproximação da normalização de suas relações sociais, familiares e sexuais, aconchegando-se nos ninhos familiares, não necessariamente sob o mesmo teto 60e nem por isso deixando de se constituir em verdadeiro núcleo familiar. Esse núcleo não tem mais, como paradigma ou motivo fundamental, a hierarquia paterna, o poder estatal, o jugo à Igreja ou qualquer outro referencial constatado através dos tempos. Apenas, unicamente e tão somente, tem o amor, a afetividade e a vontade de as pessoas permanecerem juntas, criarem seus filhos, sejam eles oriundos de vínculos anteriores (matrimoniais ou não), adoção ou simplesmente chamamento de pessoas estranhas ao corpo familiar sangüíneo, para a convivência pacífica e voltada à realização plena de cada membro daquele grupo, firmando-se como pessoas únicas, dotadas dos direitos subjetivos da personalidade, individualizadas e cada qual com suas características próprias. Nada mais há – e, talvez, não haverá – que possa manter pessoas unidas, coesas, juntas, que não seja o amor e o afeto.

Essa afirmação ecoa das palavras proferidas em 1991, pelo então Desembargador e hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça Carlos Alberto Menezes Direito 61 que afirmava: Tenho para mim que o que se deve buscar é o abrigo da proteção jurídica da vida em comum. Não se pretende robustecer a união ilegítima, mas sim criar condições jurídicas para proteger a constituição da família, independente de sua origem no ato civil do casamento.

Não há como se negar que o direito privado – e, notadamente, o Direito Civil e, mais particularmente, o Direito de Família – é "um sistema em construção", recheado de cláusulas gerais, que deverão se interpretar, aplicar e complementar de conformidade com as alterações e evoluções sociais e humanas como assevera Judith Hofmeister Martins-Costa 62, mas o construir só se oportunizará se houver, antes, abertura para a "desconstrução", entendida no sentido que lhe atribuiu Jacques Derrida 63, de desfazer sem nunca destruir um sistema de pensamento hegemônico ou dominante, resistir à tirania do Um, resultante da força natural de mudança do ser humano não havendo de ignorar a notável dificuldade de se perseguir tal objetivo, como já afirmava Glória Steinem 64: O primeiro problema para todos, homens e mulheres, não é aprender, mas desaprender.

Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar, previamente, resposta a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. [...] Conquanto tenha a cláusula geral a vantagem de criar aberturas do direito legislado à dinamicidade da vida social, tem, em contrapartida, a desvantagem de provocar – até que consolidada a jurisprudência – certa incerteza acerca da efetiva dimensão dos seus contornos. 65

Não se ignora, também, que, para estruturar o direito com cláusulas abertas e gerais, faz-se necessário um Poder Judiciário atento às vicissitudes da população e conectado às alterações da malha social e, principalmente às alterações comportamentais que acarretam a modificação da própria noção de certo e errado das pessoas.

A cláusula geral, portanto, exige do juiz uma atuação especial, e através dela é que se atribui uma mobilidade ao sistema, mobilidade que será externa, na medida em que se utiliza de conceitos além do sistema, e interna, quando desloca regramentos criados especificamente para um caso e os traslada para outras situações. 66

Parece que não restam dúvidas que, em termos de direitos fundamentais, ao menos enfocados sob a ótica de sua respeitabilidade efetiva e concreta, ainda estamos engatinhando, a despeito de, como afirmou Paulo Mota Pinto 67 juiz do Tribunal Constitucional de Portugal e docente da Faculdade de Direito de Coimbra, que

o reconhecimento a todo o ser humano do valor de pessoa é hoje um verdadeiro postulado axiológico do jurídico, que não deve sofrer contestação relevante, pelos menos ao nível das proclamações. A personalidade do Homem é para o direito um prius, que o Direito encontra, (não cria), e que deve ser reconhecido e tutelado pela ordem jurídica - pode mesmo dizer-se que o imperativo de respeito em todos os homens da sua dignidade de pessoa, através da atribuição de personalidade jurídica, resulta da consideração de um conteúdo mínimo de direito natural (no sentido de Hart), ou integra uma idéia de direito constitutivos do universo jurídico. A pessoa humana deve ser o centro das preocupações dos juristas, e o apelo que a estes é dirigido para a sua tutela jurídica emana do mais fundo substracto axiológico que constitui o direito como tal. Importa, pois, tratar dessa tutela.

Tais direitos são, assim, essenciais, uma vez que a própria personalidade humana quedaria descaracterizada se a proteção que eles concedem não fosse reconhecida pela ordem jurídica. É exatamente sob esse aspecto que se procurou, neste trabalho, confrontar o direito à vida, do qual é subproduto o conhecimento da existência e origem da existência, a colocação social, afetiva e biológica da pessoa no mundo, no momento do nascimento e posteriormente e o auto-reconhecimento da pessoa como ser humano do sexo masculino ou feminino, criando-se o impasse jurídico-sociológico quando a verdade internalizada afronta e digladia-se com aquela exteriorizada pela anatomia.

Conclui-se, assim que as relações civis, que têm como pressuposto lógico e axiológico a própria existência das pessoas, são muito mais profundas do que como o direito privado a estudava até muito pouco tempo atrás, distinguindo-as, de forma marcada, dos assim chamados direitos públicos. Tanto assim que se vivencia no país o forte movimento de constitucionalização do direito privado e, notadamente, do Direito Civil. Para tanto, é necessário reconhecer que os valores da sociedade atual não são mais aqueles pregados pelo Direito Civil do Estado Liberal. Em vez da autonomia da vontade e da igualdade formal, sobrepõem-se os interesses de proteção de uma população que aguarda providências e prestações estatais. Esses valores que outrora estavam no Direito Civil estão agora nas constituições. A Constituição, que no paradigma burguês era desinteressada quanto às relações sociais, passa a preocupar-se com elas, incorporando os valores que, ao mesmo tempo, vão sendo expressos no ordenamento. A lei fundamental, então, é que positiva os direitos concernentes à Justiça, segurança, liberdade, igualdade, propriedade, herança etc. Antes, eles estavam no Código Civil ou, como diz Pietro Perlingieri 68,

o direito civil constitucional parece estar em busca de um fundamento ético, que não exclua o homem e seus interesses não-patrimoniais, da regulação patrimonial que sempre pretendeu ser – não se projetam a expulsão e a redução quantitativa do conteúdo patrimonial no sistema jurídico e naquele civilístico em especial. O momento econômico, como aspecto da realidade social organizada, não é eliminável. A divergência, não certamente de natureza técnica, concerne à avaliação quantitativa do momento econômico e à disposição de encontrar, na existência da tutela do homem, um aspecto idôneo, não a humilhar a aspiração econômica, mas, pelo menos, a atribuir-lhe uma justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da pessoa.

Não há, por assim dizer, qualquer possibilidade de simplesmente se ignorar, diante da notável evolução do direito como instrumento de tutela da pessoa humana, o seu valor matricial e fundamental na ordem existencial do mundo, as origens biológicas e afetivas da pessoa, seu reconhecimento interno e externo perante a sociedade, o mundo e as demais pessoas e a necessária convivência com outras pessoas, num microssistema constituído pela família, berço, amparo, reduto seguro, ponto de partida e chegada, porto seguro de todos nós, mas, de qualquer forma, reconhecendo a insuficiência de conceitos, princípios e conhecimentos para a exata valoração do ser humano ou, como afirmou Luiz Edson Fachin 69,

cogita-se agora, pois, de aprofundar uma revisão crítica principiada e não terminada, dado que não basta mais revelar a franca decadência que sofreram as bases sobre as quais se edificaram os institutos jurídicos. Não se trata de uma crise de formulação, eis que o desafio de um novo ou renovado Direito Civil está além de apenas reconhecer o envelhecimento da dogmática. Um recomeço, cujo fim principia e acaba num ponto de partida. [Destaque inexistente no original].

Encerra-se assim exposição deste tópico demonstrando toda a vivacidade e grandioso respaldo filosófico do Novo Código Civil Brasileiro, objeto da análise no próximo tópico, no que pertine à filiação, ao deixar margem para que o aplicador do Direito, de acordo com a realidade social, atribua a correta interpretação às cláusulas gerais, recorda Luiz Fernando Veríssimo 70:

George Steiner diz que existem dois tipos de filósofos ocidentais: os que, como Platão, Descartes, Spinoza, Pascal e Wittgenstein, entre outros, usam a matemática como referência para entender o mundo e dão mais valor a códigos e padrões do que ao discurso e à especulação, e os que, como Tomás de Aquino, Hegel, Nietzsche, Heidegger e Sartre, vão fundo nas motivações humanas e preferem a História e suas surpresas às equações e suas certezas. No fim, o que os diferencia é o modo de encarar o tempo: há o tempo mensurável do matemático sem o qual a ciência e a tecnologia seriam impossíveis, e há o tempo como durée ou duração, experimentada pelo ser em constante devir, o passado e o futuro articulados pela memória e pela imaginação, de maneiras que a ciência não explica. O cronômetro contra a literatura.

2.2. Família e paternidade à luz do novo código civil. Dimensão ético-existencial.

...esse viés ético foi o que levou à consagração da paternidade socioafetiva. Constituído o vínculo da parentalidade, mesmo se divorciado da verdade biológica, prestigia-se a situação que preserva o elo da afetividade. (Maria Berenice Dias).

Nesta parte da pesquisa, serão tratadas algumas alterações do Novo Código Civil, Lei nº 10.406/2002, concernentes ao direito de filiação para, no tópico seguinte abordar a irrevogabilidade da adoção, encarnação definitiva do primado da afetividade.

O Código Civil de 2002, apesar da apregoada mudança de paradigma, do individualismo para a solidariedade social, manteve forte presença dos interesses patrimoniais sobre os pessoais, em variados institutos do Livro IV, dedicado ao direito de família, desprezando-se o móvel da affectio, inclusive no Título I destinado ao "direito pessoal". Assim, as causas suspensivas do casamento, referidas no art. 1.523, são quase todas voltadas aos interesses patrimoniais (principalmente, em relação à partilha de bens). Da forma como permanece no Código, a autorização do pai, tutor ou curador para que se casem os que lhe estão sujeitos não se volta à tutela da pessoa, mas ao patrimônio dos que desejam casar; a razão da viúva estar impedida de casar antes de dez meses depois da gravidez não é a proteção da pessoa humana do nascituro, ou a da certeza da paternidade, mas a proteção de seus eventuais direitos sucessórios; o tutor, o curador, o juiz, o escrivão estão impedidos de casar com as pessoas sujeitas a sua autoridade, porque aqueles, segundo a presunção da lei seriam movidos por interesses econômicos. No Capítulo destinado à dissolução da sociedade conjugal e do casamento ressaltam os interesses patrimoniais, sublimados nos processos judiciais, agravados com o fortalecimento do papel da culpa na separação judicial, na contramão da evolução do direito de família. Contrariando a orientação jurisprudencial dominante, o art. 1.575 enuncia que a sentença importa partilha dos bens. A confusa redação dos preceitos relativos à filiação (principalmente a imprescritibilidade prevista no art. 1.601) estimula que a impugnação ou o reconhecimento judicial da paternidade tenham como móvel interesse econômico (principalmente herança), ainda que ao custo da negação da história de vida construída na convivência familiar. Quando cuida dos regimes de bens entre os cônjuges, o Código (art. 1.641) impõe, com natureza de sanção, o regime de separação de bens aos que contraírem casamento com inobservância das causas suspensivas e ao maior de sessenta anos, regra esta de discutível constitucionalidade, pois agressiva da dignidade da pessoa humana, cuja afetividade é desconsiderada em favor de interesses de futuros herdeiros 71. As normas destinadas à tutela e à curatela estão muito mais voltadas ao patrimônio do que às pessoas dos tutelados e curatelados. Na curatela do pródigo, a proteção patrimonial chega ao paroxismo, pois a prodigalidade é negada e a avareza premiada. No que se refere às vedações impostas aos maiores de 60 anos, a contradição ao Estatuto do Idoso (lei 10.741 de 1º de outubro de 2003) é flagrante, notadamente quando se lê do artigo 2ºque o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.

Em termos quantitativos, como vimos, o Código Civil de 1916 destinava a maioria dos artigos relativos ao direito de família aos interesses patrimoniais ou econômicos. Comparativamente, o Código Civil de 2002, de um total de 273 artigos, reserva 112 aos interesses patrimoniais. Assim, ao menos em relação à proporção de artigos voltados predominantemente às pessoas humanas integrantes das relações familiares, o Código de 2002 contemplaria mais a diretriz da repersonalização. Para efeito de análise, destaque-se a exclusão dos 20 artigos que disciplinavam de modo desigual os direitos e deveres do marido e da mulher e a transferência para a Parte Geral dos 18 artigos que tratam da ausência, todos de fundo patrimonializante. Em contrapartida, o bem de família que, no Código de 1916, era disciplinado na Parte Geral em quatro artigos, passou a ser parte do Direito Patrimonial do Livro IV do Código de 2002, com doze artigos.

O censo demográfico relativo à última década do século XX, organizado pelo IBGE, demonstra que a pirâmide da perversa distribuição de renda no Brasil exclui a grande maioria da população da incidência das normas da legislação civil voltadas à tutela do patrimônio. 72 A realidade palpável é a de o Código Civil permanecer impermeável - inclusive no que concerne às relações de família - aos interesses da maioria da população brasileira que não tem acesso às riquezas materiais.

Evidentemente, as relações de família também têm natureza patrimonial. Sempre terão. Todavia, quando os interesses patrimoniais passam a ser determinantes, desnaturam a função da família, como espaço de realização da dignidade da pessoa humana na convivência e na solidariedade afetiva.

A família brasileira transformou-se intensamente no final do século XX, não apenas quanto aos valores, mas à sua composição, como revelam os dados do censo demográfico do IBGE de 2000 73, e bem assim da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio divulgada anualmente, necessários e preciosos para análise dos juristas. Constata-se a existência de uma população avassaladoramente urbana (81,25%, vivendo em menos de 5% do território brasileiro) 74, completamente diferente do predomínio rural, cuja família serviu de modelo para o Código Civil de 1916.

Este é o quadro espelhado no censo de 2000:

a) a média de membros por família caiu para 3,5;

b) o padrão de casal com filhos (incluindo as uniões estáveis) caiu de 60% no início da década de noventa para 55%;

c) em contrapartida, o percentual de entidades monoparentais compostas por mulheres e seus filhos ampliou de 22% no início da década de noventa para 26%. Na cidade de Belém esse percentual subiu para impressionantes 40,5%, o que mereceria estudo mais aprofundado de suas razões;

d) 45 % dos domicílios organizam-se de forma que, no mínimo, um dos pais ou ambos estão ausentes, incluindo-se os que vivem sós, ou avós ou tios criando netos ou sobrinhos, irmãos ou grupo de amigos que vivem juntos;

e) os casais sem filhos constituíam 13,8%

f) os solitários (solteiros ou remanescentes de entidades familiares) subiram de 7,3% para 8,6%;

g) o decréscimo da taxa de fecundidade por mãe é notável, passando de 5,8 filhos na década de setenta para 2,3 filhos 75;

h) os mais velhos estão vivendo mais, demandando atenção das famílias, atingindo a média de 64,6 anos. 13% da população brasileira era constituída de aposentados (23 milhões);

i) a população é mais feminina, havendo 97,2 homens para cada grupo de 100 mulheres;

j) o brasileiro está casando menos e mais tarde; dados do PNAD de 2002 indicam que a idade média do homem ao casar subiu para 30,3 anos e a da mulher para 26,7 anos. Mas a taxa de conjugalidade tem caído: foram 743,4 mil em 1991 e 715,1 mil em 2002. A taxa de divórcio em 2002 foi de 1,2 por mil habitantes, tendo crescido 59,6% em relação a 1991.

Esses dados de realidade estão a demonstrar que o anterior paradigma da família, radicado na estrutura patrimonial e biológica, está a desaparecer e o direito há de acompanhar esse fluxo sociológico de olhos bem abertos e atentos. A família está se adaptando às novas circunstâncias, assumindo um papel mais concentrado na qualidade das relações entre as pessoas e no desejo de cada uma. A família constitui-se por múltiplos arranjos, sem a rejeição legal e social que enfrentavam no passado; é menor, nuclear, menos hierarquizada; contempla mais a dignidade profissional da mulher. A redução da taxa de fecundidade tem sido justificada pelo interesse das famílias em maior dedicação aos filhos 76. Se a família perdeu sua função de unidade econômica, se seus membros são vistos uns em relação aos outros muito mais em suas dimensões pessoais e em comunhão de afetos, e também em razão dessa mudança dos fatos, então não faz sentido que os interesses patrimoniais permaneçam à frente na aplicação do direito de família.

Partindo-se da premissa, também certa, de que o Novo Código Civil adotou, como critério filosófico e forma legislativa, a inserção de cláusulas abertas permitiu que o sistema civil estivesse sempre e constantemente em construção, pela possibilidade de recolher e regular mudanças e criações supervenientes detectadas capilarmente, tornando o sistema legal poroso e receptivo às interpretações que se mostrem necessárias à consecução do objetivo maior que é a efetividade dos direitos fundamentais, permitindo que o aplicador da norma legal, sensível a esta necessidade legitimante, não perca de vista que a legislação e o próprio Direito como um todo só existe e se justifica enquanto puder ser utilizado como forma de garantia dos direitos humanos e fundamentais da pessoa humana. Como afirma Judith Hofmeister Martins Costa 77 a razão de visualizar o novo texto legislativo à luz de suas cláusulas gerais responde à questão de saber se o sistema de direito privado tem aptidão para recolher os casos que a experiência social contínua e inovadoramente propõe a uma adequada regulação, de modo a ensejar a formação de modelos jurídicos inovadores, abertos e flexíveis. Em outras palavras, é preciso saber se, no campo da regulação jurídica privada, é necessário, para ocorrer o progresso do Direito, recorrer-se sempre a uma pontual intervenção legislativa ou, se o próprio sistema legislado permitir, poderia, por si, proporcionar os meios de se alcançar a inovação, conferindo aos novos problemas soluções a priori assistemáticas, mas promovendo, paulatinamente, a sua sistematização.

Parece indubitável que o Código abandonou a idéia absolutista da tematização e estabelecimento de regras herméticas e casuísticas que têm a pretensão de cobrir a plenitude dos atos possíveis e dos comportamentos devidos na esfera privada, prevendo soluções às variadas questões da vida civil em um mesmo e único corpo legislativo, harmônico e perfeito em sua abstrata arquitetura, e parece que foi exatamente o que almejou Miguel Reale 78, ao utilizar a expressão "modelos jurídicos" e que se verificou no Brasil e em todo o ocidente pela codificação objetiva das normas legais.

Quanto às inovações e mudanças, merecem análise as referentes à paternidade presumida, a contestação da paternidade e a ação investigatória.

Procurou-se, com a edição desta nova lei, abandonar o caráter formal característico da lei anterior, preocupando-se em dar um sentido mais prático e aberto, em virtude das grandes transformações ocorridas no mundo.

Primeiramente, deve-se dizer que a nova lei absorveu o disposto na Constituição de 1988, suprimindo definitivamente a distinção entre filiação legítima, ilegítima e legitimação, sendo agora usado apenas o termo filiação.

Dispõe o art. 1.596 que "os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação".

Silvio Rodrigues 79, ao falar sobre a diferença entre o filho havido do casamento e o do havido fora das núpcias e do adotivo, ensina que:

[...] para os filhos originados de uma relação conjugal, a lei estabelece uma presunção de paternidade e a forma de sua impugnação; para os havidos fora do casamento, criam-se critérios para o reconhecimento, judicial ou voluntário; e, por fim, para os adotados, são estabelecidos requisitos e procedimento para a perfilhação.

Inovação interessante surge no art. 1.597, que a seguir se transcreve:

Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II – nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Luis Paulo Cotrim Guimarães 80, ao comentar referido artigo, afirma que o Código, além de não mais especificar as causas de dissolução da sociedade conjugal (morte, separação, divórcio ou anulação), estabeleceu a paternidade presumida quanto ao filho advindo por reprodução assistida, em qualquer momento da relação conjugal, exigindo como requisito único, o consentimento marital. Não explicita a necessidade de ser expresso tal consentimento, nem distingue a forma de inseminação (homóloga ou heteróloga), podendo ser verbal, pois, o assentimento marital. Em caso de impugnação pelo marido, caberá a este provar seu não assentimento, posto que o artigo de lei não determina formalidade para autorização, vigendo entre nós o princípio da liberdade das formas (artigos 212 do Código Civil e 332 e seguintes do Código de Processo Civil). É de se ressaltar, no entanto, que o autor mencionado diz que inseminação pode ser feita a qualquer momento da relação conjungal, quando a norma legal não traz esse requisito de ainda estar em vigor a relação conjugal o que conduz à conclusão que, mesmo após a morte do marido a inseminação poderá ser feita, como já mencionado anteriormente.

Embora tenha o legislador incluído tema inovador como é o caso da reprodução assistida, deixou de regulamentá-la especificamente no novo código, sendo os filhos advindos dessa técnica desamparados pela lei e não sendo difícil imaginar os problemas que daí advirão.

Questões conflitantes nascem dessa filiação, dentre as quais são citadas: realização da reprodução em útero de mulher que não seja a esposa; reconhecimento do filho pelo doador de sêmen, que normalmente não tem seu nome revelado; destinação dos embriões não utilizados, e a época em que poderão ser transferidos à mulher; a qualidade de herdeiros dos filhos provenientes da formas prescritas nos incisos III e IV, após a morte do pai; e, ainda, os filhos advindos por inseminação artificial com material genético proveniente de um terceiro que não os cônjuges podem ser excluídos da situação de filho por meio da ação de investigação ou negatória de paternidade contra os pais biológicos, dos quais não terão o mesmo DNA.

Essas são algumas questões dentre as quais muitas surgirão em razão da evolução da ciência e das técnicas de reprodução assistida e da engenharia genética. No campo do Direito, certamente essa questão tem de evoluir muito ainda para satisfazer a necessidade de verificação das paternidades a serem atribuídas. A única certeza que se tem por enquanto é que esses filhos são considerados concebidos na constância do casamento e que não podem sofrer qualquer tipo de discriminação (artigo 227 § 6º da Constituição Federal), mesmo que falecido o marido (artigo 1597-III do Código Civil).

Mais adiante segue o legislador falando sobre a negatória de paternidade pelo pai presumido, sendo assim redigido o art. 1.601:

Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.

Parágrafo único. Contestada a filiação os herdeiros do impugnante têm direito de prosseguir na ação.

Primeiramente, deve-se dizer que a expressão "marido" desprestigia a relação referente à união estável, sendo que o homem que vive dessa maneira também teria o direito da negatória de paternidade, até porque em razão do princípio constitucional da igualdade entre as diversas formas de família e de filiação, o artigo 1597 do Código Civil deve ser aplicado extensivamente à união estável, ressaltando que a origem dos filhos não pode ser fator de diferenciação para sua proteção. Assim, se se pode entender que os filhos concebidos na constância da união estável sejam do companheiro, a via reflexa é legitimá-lo à ação negatória de paternidade, a despeito da flagrante contradição do artigo 1.601 com o 1.597-V que ao admitir a inseminação heteróloga nada mais fez do que reconhecer a paternidade socioafetiva, ainda que sem se utilizar desta terminologia.

Sendo imprescritível a ação de investigação de paternidade, conforme a Súmula 149 do STF, também a negatória assim deve ser entendida em razão de o direito de reconhecimento de a paternidade ser direito personalíssimo, indisponível e imprescritível.

Ao contrário da legislação de 1916, afasta o legislador qualquer restrição à negatória de paternidade pelo marido.

Ainda sobre a paternidade presumida o novo código põe fim à questão da sua duplicidade existente na legislação anterior, conforme se verifica pela leitura do art. 1.598, que a seguir se transcreve:

Salvo prova em contrário, se, antes de decorrido o prazo previsto no inciso II do art. 1.523, a mulher contrair novas núpcias e lhe nascer algum filho, este se presume do primeiro marido, se nascido dentro dos trezentos dias a contar da data do falecimento deste e, do segundo, se o nascimento ocorrer após esse período e já decorrido o prazo a que se refere o inciso I do art. 1.597.

Dispõe o inciso II do art. 1.523 que "não devem casar a viúva ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal".

Já o inciso I do art. 1.597 informa que se presumem "concebidos na constância do casamento os filhos nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal".

Esse artigo resolve o problema da dupla paternidade presumida existente no diploma de 1916. Caso a mulher viúva venha a casar-se antes do prazo de dez meses previsto no art. 1.523, I, e tenha um filho entre os trezentos dias do falecimento do seu primeiro marido, presume-se ser este o pai da criança. Agora, se o nascimento ocorrer após o prazo de trezentos dias do falecimento e já houver transcorrido o prazo do art. 1.523, I, haverá a presunção de paternidade quanto ao novo marido.

A seguir, ainda discorrendo sobre a presunção de paternidade o artigo 1.599 diz que "a prova da impotência do cônjuge para gerar, à época da concepção, ilide a presunção da paternidade".

Regina Beatriz Tavares da Silva 81, ao comentar referido artigo, informa que:

[...] No artigo em análise a impotência generandi ilide a presunção da paternidade, não sendo mais necessário que seja absoluta, o que reflete o avanço das provas técnicas existentes para a demonstração da filiação, dentre as quais se destaca o exame de DNA. O artigo não refere à impotência coeundi porque, em razão das novas técnicas de reprodução artificial, pode ela existir sem que haja a impotência generandi.

Esse dispositivo, em face das novas disposições da legislação, de contestação incondicional da paternidade presumida, resta desnecessário, mas, há que se atentar para a distinção existente entre as hipóteses de negatória de paternidade e anulação de registro civil de nascimento por erro:

Ação negatória de paternidade. Anulação de registro de nascimento. Distinções. A negatória de paternidade visa a impugnar a legitimidade da filiação, pressupõe a existência de registro e visa a anulação por erro ou falsidade. Prescreve em vinte anos. Suposto pai que, espontânea e conscientemente comparece ao Registro Civil e declara ser, o registrando, filho seu, mesmo sabendo de sua incapacidade generandi é carecedor de ação negatória de paternidade. Não pode, futuramente, alegar a própria torpeza. 82

A confissão da mãe da prática de adultério e a exclusão da paternidade não servem para ilidir a sua presunção, em razão da determinação de a paternidade ser um direito indisponível, bastando ao interessando a intenção de sua declaração. Sendo assim, não fariam falta os artigos 1.600 e 1.602 do novo Código Civil.

Adentrando o tema do capítulo que abordará a legitimidade das decisões judiciais afirma Gustavo Tepedino 83 que a Constituição Federal alterou o conceito de unidade familiar, antes delineado como aglutinação formal de pais e filhos legítimos baseada no casamento, para um conceito flexível e instrumental, que tem em mira o liame substancial de pelo menos um dos genitores com seus filhos – tendo por origem não apenas o casamento – e inteiramente voltado para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros, e este ponto de partida não pode ser esquecido em qualquer julgamento que envolva família e paternidade, sob pena de se tornar ilegítimo e mesmo inconstitucional.

Os sociólogos, historiadores, antropólogos e juristas têm revelado o processo de passagem da família patriarcal à família nuclear. Esse processo de desintegração da família é o resultado de profundas modificações das estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais (revolução industrial, grandes concentrações urbanas, inserção da mulher no processo de produção e emancipação feminina). 84 Vislumbra-se uma realidade moderna (ou pós-moderna) completamente díspare daquela vivenciada a bem pouco tempo, dos matrimônios duradouros, não por amor, carinho e vontade, porém muito mais por comodismo, tradição e imposição tanto da família como da sociedade, que via com maus olhos os separados, principalmente a mulher separada. Atualmente, vê-se, então, a formação de novas entidades familiares, não fundadas no matrimônio e nem por isso menos fortes e arraigadas ou vistas com olhos preconceituosos pela sociedade que já as aceita com tranqüilidade. 85

Nunca se consegue atravessar o rio e chegar à outra margem sem uma boa dose de risco e incerteza, que, sem dúvida, são características existentes na opção do legislador do Novo Código Civil em inserir um grande número de princípios e cláusulas gerais, não ignorando que, segundo informou Miguel Reale 86, uma lei não deve ser interpretada segundo a sua letra, mas, consoante o seu espírito, leva a considerar o conjunto de diretrizes que norteou a obra codificadora, constituindo o seu travamento lógico e técnico, bem como a base de sua fundamentação ética.

Essa ética há de ser norteada pelo fato de que em primeiro plano está o ser humano valorado por si só, pelo exclusivo fato de ser pessoa – isto é, a pessoa em sua irredutível subjetividade e dignidade, dotada de personalidade singular e, por isso mesmo, titular de atributos e de interesses não mensuráveis economicamente – passa o Direito a construir princípios e regras que visam tutelar essa dimensão existencial na qual, mais do que tudo ressalta a dimensão ética das normas jurídicas. Então, o Direito Civil reassume a sua direção etimológica e, do direito dos indivíduos, passa a ser considerado o direito dos civis, dos que portam em si os valores de civilidade 87 e exatamente aí reside a responsabilidade do Poder Judiciário que há de estar comprometido com a efetivação e concretização dos princípios maiores da Constituição Federal, a nortear e balizar seus julgamentos.

Absolutamente não como um todo acabado e imutável, mas como um sistema cíclico, translúcido e poroso, que se deixa influenciar, oxigenar, amadurecer e atualizar pelas constantes mutações sociais, fruto da natural e saudável natureza humana de buscar, inovar e descobrir e, afinal, não permanecer estagnado, renunciando às mudanças e, via de conseqüência, ao progresso, ao desenvolvimento e à aprendizagem. E, o que é a aprendizagem, senão o movimento entre aquilo que foi há instantes atrás e aquilo que ainda não é? Aprender é um embate, é um ranger de espadas. Aprender é um risco atraente... é o risco de estarmos novamente e a cada instante, além de nós mesmos, além do que é conhecido, além do que já fomos, além do que somos. Aprender é contar com o tempo a nosso favor, ter desprendimento suficiente para se afastar dos chamados "portos seguros" em busca do desconhecido – só assim se cresce – Afinal todos estamos matriculados na escola da vida, onde o mestre é o tempo e o que vale na vida não é ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher (Cora Coralina).

Faz-se vivo o ensinamento de Michel Serres 88 de que

Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte que permanece aderente à margem do nascimento, à vizinhança do parentesco, à casa e à idéia dos usuários, à cultura da língua e à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe nada aprende. Sim, parte, divide-se em partes. Teus semelhantes talvez te condenem como um irmão desgarrado. Eras único e reverenciado. Tornar-te-ás vários, às vezes incoerente como o universo que, no início, explodiu-se, diz-se, com enorme estrondo. Parte, e tudo então começa. Partir, sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornar-se vários, desbravar o exterior, bifurcar em algum lugar. Eis as três primeiras estranhezas, as três variedades de alteridade, os três primeiros modos de ser e expor. Porque não há aprendizagem sem exposição.

Pensar, refletir, conhecer, partir, ficar e aprender são questões que se colocam com a crise dos nossos padrões de valor, que não é apenas a da fragilidade dos códigos até então vigentes, mas os riscos de um modo de se conduzir segundo regras prévias e externas que retiram daquele que age a prerrogativa de pensar para decidir o que fazer em cada situação que se apresenta. Busca-se, assim, tornar concreta a afirmação de Heráclito 89 de que a todos os homens é compartilhado o conhecer-se a si mesmo e pensar sensatamente.

E esse pensamento reflexivo há de ser compartilhado, democratizado, para que possa ganhar adeptos, opositores para o necessário tensionamento, para firmar-se, ou não, sendo, portanto importante que seja textualizado e exteriorizado.

O pensamento é inconcebível sem discurso, precisa deste para entrar em atividade – Eles contam um com o outro. A linguagem é o veículo e a forma do pensamento 90 e o que é fundamental para Hannah Arendt 90 é que

Os pensamentos, para acontecer, não precisam ser comunicados; mas não podem ocorrer sem ser falados – silenciosa ou sonoramente, em um diálogo, conforme o caso (...) e a razão, não porque o homem seja um ser pensante, mas porque ele só existe no plural – também quer a comunicação e tende a perder-se caso dela não tenha que privar; pois a razão, como observou Kant, não é de fato "talhada para isolar-se, para comunicar-se". A função desse discurso silencioso (...) é entrar em acordo com o que quer que possa ser dado aos nossos sentidos nas aparências do dia-a-dia; a necessidade da razão é dar conta (...) de qualquer coisa que possa ser ou ter sido. Isso é proporcionado não pela sede do conhecimento (...), mas pela busca do significado. O puro nomear das coisas, a criação das palavras é a maneira humana de apropriação e, por assim dizer, de desalienação do mundo no qual, afinal, cada um de nós nasce, como um recém-chegado, como um estranho.

Sobre o autor
Mauro Nicolau Junior

Juiz titular da 48ª Vara Cível do Rio de Janeiro (RJ). Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Cândido Mendes. Professor da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICOLAU JUNIOR, Mauro. Inseminação artificial, clonagem do ser humano e sexualidade. Os efeitos produzidos na família, do presente e do futuro.: O necessário olhar ético ante os direitos fundamentais e os princípios constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 886, 4 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7619. Acesso em: 22 nov. 2024.

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