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Reflexões sobre a dimensão da autoempatia na comunicação não-violenta

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Adota-se a hipótese de que a CNV aporta um conjunto de técnicas e ferramentas que apenas fazem sentido ao contexto social quando antes servem ao próprio indivíduo ao se conectar com algo que está vivo em si, para então exercer essa habilidade com o outro

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A comunicação abarca e expressa a profunda necessidade humana de se conectar. Por meio dela, é possível intensificar as relações em todas as suas dimensões. Essa perspectiva se desdobra no estudo da Comunicação Não-Violenta (CNV), tema de grande destaque do cenário atual, a partir da compreensão sistemática dos contextos de conflitos e violências efervescentes. A CNV nos convoca a refletir sobre a nossa responsabilidade ativa em suscitar a empatia como elemento essencial das interações sociais, comunitárias e organizacionais.

            O convite que se faz a seguir é para um olhar despretensioso, sem julgamento e de abertura para se pensar junto com os autores, de forma construtiva e orgânica, os temas ora apresentados: a não-violência; as dimensões da empatia, enquanto conceito estruturante da Comunicação Não-Violenta; caminhos possíveis para avançarmos e contribuirmos, dentro dos limites de cada um, bem como dos papéis que exercemos em espaços distintos e igualmente desafiadores. 

Para tanto, convidamos ao início de algumas reflexões: você já se perguntou sobre a sua parcela de responsabilidade quanto a violência no mundo? Quais das violências que você reproduz são suas e quais lhe foram ensinadas? Agir com não-violência representaria deixar de ser quem você é? É possível associar o melhoramento humano, social e econômico com a qualidade de interação de cada um consigo mesmo e com o mundo? Nos próximos anos, como tem ocorrido até então, a CNV poderá ser útil aos profissionais interessados em uma atuação criativa, responsável e cuidadosa de gestão de conflitos, emoções e pessoas.

Considerando-se que a “não-violência” é precursora nesse processo, é preciso considerar que a utilização da palavra “não” antes de “violência”, refere-se a uma sabedoria ancestral que reconheceria o desafio e o descuidado em se nomear aquilo que seria o contrário de violência, sem restringir ou banalizar um sentido mais profundo. Em algumas vertentes do judaísmo, por exemplo, ao invés de usar uma palavra para designar Deus, define-se o divino pelo “não-mal”. O pensamento basilar para isso é que se Deus é onipresente, é mais fácil estabelecer aquilo que ele não é do que limitar o que ele é com um termo específico. Definir seria restringir. Então, Deus é tudo, exceto aquilo que ele não é, isto é, o mal. 

Nesse mesmo sentido, “não-violência” é mais do que “pacificadora”. O “não” designa a infinitude de possibilidades de se chegar ao caminho do bem. Tudo aquilo que viola é o não-caminho, toda violência nos ensina o que não fazer, para onde não seguir, o percurso inverso de se alcançar o bem em si mesmo. De tal forma que, compreendendo-se dessa maneira, a violência seria uma anti-mestre, um conhecimento que nos mostraria o abismo, possibilitando ao ser humano tomar novas decisões ao se deparar com a dor experienciada pela violência. E é por essa ótica, então, que se relaciona a não-violência às estruturas comunicacionais. 

Sistematizada pelo psicólogo Marshall Rosenberg (2005; 2012; 2015), a Comunicação Não-Violenta surgiu antes como prática do que como teoria. Não impressiona que a ordem tenha sido essa. Afinal, a CNV é uma habilidade que contempla ferramentas e técnicas voltadas ao aprimoramento dos relacionamentos e à transformação de conflitos. Sendo uma habilidade, é possível ser aprendida e praticada independentemente de qualquer sofisticação teórica. Contudo, a teoria pode contribuir bastante no percurso de aprimoramento e de consciência da prática.

A Comunicação Não-Violenta (CNV), refere-se a um sem-número de possibilidades de se comunicar. Integraliza paradigmas distintos através de competências que possibilitam a expressão autêntica e genuína do sujeito, assim como a escuta empática e humanizada com o interlocutor; entendendo-se que a dimensão basilar da comunicação é da pessoa consigo mesma e, em seguida, com os outros e a comunidade. A unidade entre essas diversas maneiras de comunicar-se advém do fato de não serem, nem sustentarem quaisquer das múltiplas faces das violências, sejam elas explícitas ou implícitas. 

A atualidade do estudo e da prática da Comunicação Não-Violenta baseia-se no fato de nossas linguagens e relações terem sido impregnadas de violências,  decorrentes de tantos contextos trágicos vividos ao longo da história da humanidade. Disputas territoriais, massacres de comunidades tradicionais, inquisições, escravidões, colonialismos e imperialismos, guerras civis, guerras regionais, guerras mundiais, torturas, perseguições, genocídios e inúmeros fenômenos sociais que, respaldados na subjugação de uns sobre os outros, dissiparam medo, culpa, vergonha, dores, punições, desigualdades, sobreposição de poder, privilégios e reforçaram lugares subalternos, silenciamentos, invisibilidades. 

Todo esse processo reverbera-se na cena social, educacional e cultural que tornou a violência parte integrante do cotidiano por séculos a fio, chegando em programas de televisão; noticiários; jogos e programas de entretenimento; no ambiente virtual de redes sociais; em escolas e universidades, empresas e grandes corporações; e também nas nossas casas. A comunicação, verbal ou não-verbal, conformou-se com falas e expressões que não escondem a dor de onde vieram, muito menos as estratégias de competição, comparação, punição e recompensa que as caracterizam tradicionalmente. Desse modo, são marcadas também por análises de normalidades e adequação, que diagnosticam e classificam a partir de binômios bem-mal, certo-errado, feio-bonito, etc.

No paradigma que Marshall Rosenberg (2015) denominou de comunicação alienante da vida,  gestos como gritos, feições hostis, palavrões, xingamentos e movimentos corporais revelam insatisfações e tensões do corpo e da alma. Denotam um conjunto de características que nos desconectam, desequilibram os sistemas de relacionamentos e impulsionam violências. 

Alienado de mim, das minhas necessidades e dos meus sentimentos, nego ao outro minha melhor versão e coloco para fora, de forma distorcida, o que me dói profundamente e o que não consigo - ou não quero – olhar cuidadosamente. Mas aquilo que não observo, não existe para mim e, por tanto, não posso transformar. Sob efeito, a alienação afasta-nos de nossas necessidades humanas fundamentais, privando-nos da oportunidade de reconhecer que, do ponto de vista do aprendizado humano, nenhuma experiência pode ser desperdiçada.  


2 CONFLITOS E COMUNICAÇÃO NÃO-VIOLENTA 

Conflitos são elementos das relações sociais e apresentam-se como resultados naturais e esperados do contato entre seres diversos. São expressões de pluralidade e reforçam a mensagem de que não há um modo único de estar vivo na Terra. Todavia, ainda que nós, humanos, experimentemos conflitos desde o nosso primeiro contato com outra pessoa, por vezes parece que ainda não percebemos seu lugar intrínseco e essencial nas relações interdependentes entre os seres. 

Nesse sentido, Paulo Leminski (2013) escreveu que

No fundo, no fundo,

bem lá no fundo,

a gente gostaria

de ver nossos problemas

resolvidos por decreto

a partir desta data,

aquela mágoa sem remédio

é considerada nula

e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,

maldito seja quem olhar pra trás,

lá pra trás não há nada,

e nada mais

mas problemas não se resolvem,

problemas têm família grande,

e aos domingos saem todos passear

o problema, sua senhora

e outros pequenos probleminhas

Os conflitos reafirmam a importância da nossa existência em coletividade. Fomenta um ciclo vital que nos convoca a olhar para si a cada encontro que se tem com o outro. Faz girar a vida em um convite constante à criatividade. Isso se concretiza ao se reconhecer que apenas posso estar em conflito porque existo no mundo e, ao existir, tenho necessidades que me conectam à manutenção da vida; viver me permite sentir emoções, e todos os sentimentos me impulsionam a tomar decisões. A cada decisão, novos conflitos.

A existência do outro, nesse cenário, nos impõe limites e descortina conflitos inesperados, ancorados em necessidades que, quando frustradas, fazem nascer sentimentos contrastantes, movimentando uma engrenagem interna bastante dinâmica e complexa, fluida e inconstante, em favor da mudança e da transformação pessoal. O conflito é, assim, manifesto, vivo, revelador desse poder do encontro (CREMA, 2017) que tanto me revela e que me abençoa a não mais seguir como eu era antes.

A violência é a negação desse ciclo. Tira de ambos (eu e o outro) a oportunidade de se transformarem, substituindo-na pela dor, pelo constrangimento, pela atrofiação da capacidade criativa que cede ao uso da força. Isso decorre do não reconhecimento do outro como um interlocutor, e sim como um objeto colonizado pela imagem de um inimigo a ser vencido. A necessidade de quem viola se sobressai a qualquer outra, arrogando-se o direito de usar de estratégias de violências físicas, psicológicas, verbais ou não-verbais, todas elas advindas de sentimentos frustrados causados pelo outro, considerado culpado por sua insatisfação.

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Abre-se a partir daí um novo ciclo, cuja estrutura fundamenta-se pela necessidade de imprimir poder sobre alguém como busca pela segurança, e cada vez que esse poder é ameaçado (sentimento de medo) retoma-se a violência como estratégia, por vezes trágica e retroalimentada. Com isso, perde-se o fluxo de aprendizado e de superação caracterizado pela dinâmica conflitiva e encerra-se em um abismo de enrijecimento da capacidade de abrir-se para si mesmo, pois há um abismo interno que ninguém quer acessar. Parece mais fácil destruir quem está próximo, julgando-o como único responsável da minha tragédia.

A violência é uma estratégia disfuncional de sobrevivência, um efeito que se desdobra da desatenção com os conflitos e que sinaliza que os relacionamentos estão adoecidos e precisam de cuidados. É dizer que a abordagem da violência requer um passo anterior: a observação. Há algo por trás de atos violentos que não está sendo visto, há um contexto, um percurso, um complexo cenário de lugares, pessoas e situações que deram brecha e abriram espaço à violência como uma saída possível. 

 É nesse aspecto que outro elemento ganha valor: os sentimentos. Em sua obra denominada “O surpreendente propósito da raiva”, Marshall Rosenberg (2014) destaca a função da raiva na gestão dos conflitos, concedendo a este sentimento um papel estratégico por guardar uma energia que pode ser usada de forma destrutiva ou construtiva. A raiva, enquanto manifestação de múltiplos sentimentos latentes que estão vivos no sujeito, impulsiona ação, movimento, transformação e força. Surge de necessidades humanas não atendidas e compreendidas.  E aí reside o perigo.

A raiva quando negada, ou reprimida, acumula-se em um processo doloroso. Como seu berço é uma necessidade que está a favor da vida, vai buscar em diferentes possibilidades e estratégias uma forma do sujeito sobreviver. Em meio a dores, frustrações, angústias, tristezas, incômodos, aflições e diversos outros sentimentos, a violência encontrará lugar. Seja contra si ou contra outrem. Para algum lugar essa energia será direcionada. 

Por outro lado, quando a raiva é observada com interesse, pode revelar necessidades importantes que não estão encontrando um lugar e todas elas indicarão caminhos possíveis de serem contempladas sem necessariamente se valer da violência. O simples fato da raiva ser reconhecida como um sentimento intrinsecamente humano pode ser transformador e curador para quem a sente e que, normalmente, sentiria vergonha ou se culparia por isso. Seu surpreendente propósito, assim, é revelar que a observação, a legitimação daquele sentir e o reconhecimento de que há algo oculto nas interações sociais pode indicar possibilidades de construção de alternativas mais saudáveis para todos os envolvidos. 

A mobilização dessa energia da raiva para sair de situações polarizadas entre ódio e apatia e construir resiliência é fundamental não só para a transformação de uma realidade indesejada, mas também para a concretização de narrativas desejadas.

É por essa dimensão que podemos considerar o conflito como um recurso, uma potencialidade. Indica que diante de uma situação conflitiva é possível agir de forma destrutiva, ou violenta, ou reconhecê-lo como oportunidade de construção de possibilidades antes não percebidas. E esse é o ponto: como cada um se percebe frente ao conflito o torna maior ou menor do que ele realmente é. 

Se consideramos o conflito como relação humana, enxergar-se exclusivamente como vítima ou como algoz nessas interações significa minimizar a responsabilidade que todos têm ao se verem diante daquela situação. Ao mesmo tempo reforça o poder que todos os envolvidos possuem de criarem condições favoráveis para saírem dali juntos. A pergunta que auxilia essa compreensão é: qual a minha parcela de responsabilidade nesse conflito em que estou vivendo? Quando assume-se o lugar que lhe cabe torna-se possível enxergar a vida com sabedoria, respeitando-se o que é de cada um naquela interação.

Desse modo, apesar do conflito ser inafastável, nem por isso precisa causar danos a alguém. Normalmente pensamos que tememos conflitos quando, em verdade, temos medo da violência. Confundimos os dois sem nos apercebermos que a violência costuma ser uma manifestação típica de quando os conflitos são invisibilizados ou evitados, não o contrário.

Diante da inevitabilidade dos conflitos, a Comunicação Não-Violenta desponta como habilidade fundamental para o convívio humano harmonioso, o que engloba tanto as conexões que constituímos com os outros sujeitos e com a nossa comunidade de referência e suporte, como também o contato que estabelecemos conosco. 

A CNV é uma das manifestações de não-violência focada na comunicação, seja ela verbal ou não-verbal. A proposta da não-violência é prioritariamente responsável e ativa e isso reflete nas ferramentas e técnicas da CNV. Ela não se pauta numa "legítima defesa",  nem recorre a um "excludente de ilicitude" porque não é uma resposta a uma violência posta. A violência pode estar ali, assim como pode não estar. O que acontece é que a não-violência rompe com a reatividade e oferece uma ação criativa frente ao encontro. Reconhece que o sujeito precisa assumir sua parcela de responsabilidade por existir, tirando-lhe o papel estigmatizado de vítima inconteste. 

Como o foco da não-violência está em criar algo desejável no mundo, e não propriamente em responder ao que já está posto, não se propõe proporcional ou análoga ao ato antecedente, o que seria irracional. Violar quem o violou seria reforçar a violência como forma legítima de comunicação e desencadear um processo sem fim. Não-violência é a coragem de imprimir comportamento novo, criado em conexão com as necessidades identificadas. Por isso, demanda presença consciente, desperta. 

Mas como poderíamos oferecer nosso "melhor-eu" sem conhecê-lo bem? Quantas vezes somos violentos quando nossa intenção mais íntima era oferecer empatia, acolhimento ou cuidado, mas não estávamos bem o suficiente para isso? Em quantas ocasiões desejamos ser respeitados, mas agimos com violência, culpando terceiros por nossos atos?

Com essas questões, queremos frisar que a autorrealização é elemento essencial da Comunicação Não-Violenta. O fundamento de qualquer escuta empática que oferecemos ao outro está no sentido que aquilo tem para nós. A empatia nos é conhecida conforme somos capazes de praticar autoempatia. Além disso, a prática da CNV é, por si só, estímulo para confluência de narrativas desejadas que também contribuem para a autorrealização. Nesse caso, nossas raízes são nossas asas. Aprofundar em mim me permite voar por lugares inimagináveis.

Como defendido em outro trabalho,

O turning point da CNV é o fato de enxergar toda e qualquer manifestação individual como comunicação de necessidades humanas básicas. Ao exercitar escuta empática, por exemplo, comunico-me exclusivamente com possíveis necessidades não atendidas do outro, não importa o modo como ele as expresse. Da mesma maneira, ao praticar autoempatia, procuro não me julgar, nem me punir e me afasto de noções como “vergonha” e “culpa”. Pela autoempatia, olho para as cada uma das minhas ações tentando entender o que sentia e de que necessitava ao agir daquele modo. Nesse caso, não importa se as ações são minhas ou do outro, nem sequer se são atitudes que se alinham ou se afastam da vida: um olhar empático enxerga sempre necessidades. (CARVALHO, 2019).


3  AUTOEMPATIA COMO PRÁTICA DE RESILIÊNCIA

A empatia é o elemento central da Comunicação Não-Violenta. Diferente do sentido habitualmente estabelecido para o termo, a CNV não a considera como um mero "colocar-se no lugar do outro". Para a CNV, empatia é o oferecimento de presença intencional e consciente que promove conexão porque nos aproxima focando naquilo que temos em comum: vulnerabilidades (BROWN, 2010; BROWN, 2015), isto é, nossas necessidades humanas básicas (ROSENBERG, 2015). 

Quando oferecemos presença empática a alguém, não precisamos responder ao que nos foi dito, por exemplo. Podemos deixar nossa ansiedade de "resolver" ou "salvar" a vida alheia de lado e simplesmente nos mantermos silenciosos, ouvindo nosso interlocutor de maneira atenta e compassiva. Oferecer escuta, sem interromper a fala do outro, muitas vezes, é suficiente para que a outra pessoa se sinta mais presente para si mesmo e se organize a ponto de identificar os sentimentos e as necessidades em questão. O sentir-se escutado possibilita dar um novo lugar interno ao conteúdo compartilhado. A mente já não precisará ocupar espaço e energia com segredos, dúvidas, imaginações, suposições, conclusões precipitadas ou receios se houver um espaço seguro onde todas essas questões possam existir. 

O poder da  escuta empática se consubstancia na compreensão de que aquilo que escuto precisa ser honrado e respeitado. Escuta empática não é dever de intervenção, é oferta de presença atenta, que reconhece que tudo o que o outro viveu contribuiu para que chegasse até aqui. A empatia o liberta para ser quem é e me liberta para ser quem sou. Rompe com as crenças de que somos heróis ou salvadores e nos conecta enquanto humanos. 

Escuta empática pressupõe que as histórias importam, que todas as experiências integram a sabedoria universal. Oportuniza aos interlocutores saírem de si e de seus próprios julgamentos em direção à descoberta  surpreendente e inesperada do outro, com quem convivo neste Planeta, mas não o conheço nem o reconheço igual. E ao não conhecê-lo me torno refém dos rótulos e estigmas que foram criados e se acreditou serem verdades; o que Chimamanda Adichie denominou de “o perigo da história única”.

Exatamente por essas peculiaridades, o exercício da empatia, enquanto habilidade socioemocional de conexão e reconhecimento de que todos os seres humanos sentem e possuem necessidades vitais, tem se tornado elemento chave na temática da gestão e solução de conflitos interpessoais. Desde ambientes domésticos, instituições de ensino, vizinhanças e comunidades, organizações sociais, empresas e corporações, o que se torna central não necessariamente é o lugar, mas as relações humanas que ali se desenvolvem e os impactos que todas as decisões institucionais incidem sobre as pessoas, interna ou externamente a elas.

Nos ambientes domésticos conflitos e impasses podem dificultar a convivência entre familiares, parentes, amigos que dividem a mesma casa ou até membros das chamadas repúblicas de estudantes. Reconhecer que sob o mesmo teto a multiplicidade de sentimentos e necessidades em interação tornam desafiadoras as tomadas de decisão torna fundamental a gestão da rotina e das funções que cada um exerce naquele espaço para uma convivência saudável.

As instituições de ensino, todas elas, ao se depararem com o convívio em massa de professores, estudantes e profissionais de todas as áreas descobrem o conflito como um elemento vivo e permanente nas relações. A empatia pauta a necessidade da sustentabilidade dessas relações com enfoque na cooperação, práticas colaborativas e criatividade para se permitir que as instituições possam aprender com as pessoas e se reinventarem. O risco da polarização de grupos, revanchismos, autoritarismos abusivos, comunicações hostis e práticas excludentes de segregação e discriminação geram desmotivação e desequilíbrios emocionais.

Nesse mesmo aspecto, pode-se voltar o olhar para as vizinhanças e comunidades como grupos de interação e convivência. Uma comunidade segura, fortalecida por vínculos de confiança, colaboração, redes de apoio e estratégias construtivas de gestão dos impasses e desafios comuns demonstra o papel estratégico da empatia para a sobrevivência coletiva. Os conflitos de vizinhança se reforçam quando cada um em sua casa se volta aos seus próprios interesses e se cega ao mundo ao redor. Imagine um mundo onde não houvesse paredes e portas e perceba o quanto não estamos sós. Desejar uma ótima noite de sono ao vizinho é primar pela qualidade da sua noite em repouso e tranquilidade. A empatia mais uma vez nos recorda da interdependência entre tudo e todos.

Chega-se, então, ao ambiente de trabalho. Organizações públicas ou privadas, pequenas empresas ou grandes corporações, independentemente do lugar onde estejam, são constituídas desde que existam pessoas e são sempre voltadas a elas como fim último dos seus serviços. Todos os que vieram, estão e virão integram um imenso complexo de relações e estratégias que compõe esse vasto campo: fundadores, proprietários, dirigentes, funcionários, clientes, usuários, beneficiários, fornecedores e investidores. As mais vastas especificidades.

Nas organizações, independentemente da estruturação, não se pode pensar em êxito sem pensar na gestão dos conflitos e das pessoas que ali trabalham e junto ao seu público-alvo. A satisfação de um empregado e de um cliente perpassa igualmente por necessidades e emoções, que se frustradas ou atendidas reverberam em efeitos práticos. O sentir-se bem, acolhido, reconhecido e pertencente impacta o bom trabalho e a confiança para com a empresa. As mesmas características aproximam clientes e novos interessados. Agrega-se pessoas, criam-se vínculos, reforça a influência de uma marca, anuncia-se a prosperidade pessoal, profissional e institucional.

    A empatia, portanto, é o elo de conexão com a humanidade do outro, assim como com a nossa própria humanidade. Não se trata de ser “bonzinho”, “passar a mão na cabeça”, “esquecer o que foi feito”, “impunidade” ou quaisquer outras distorções vinculadas à desresponsabilização. Empatia congloba uma inteligência humana, o que Daniel Goleman (1999) chama de “inteligência emocional”. É inteligente considerar o outro importante o suficiente para ocupar o lugar de interlocutor, é um primeiro convite à responsabilidade, ao agir de forma diferente e ser capaz de reparar danos e tomar novas decisões.  

A empatia se realiza conforme assumimos o protagonismo e recuperamos o controle na nossa existência, já que deixamos de simplesmente reagir ao que foi posto por outrem e passamos a agir diretamente, a propor algo novo porque houve oportunidade para isso acontecer. Por essa razão, o agir empático é por si só abundante e sustentável. Representa uma fonte inesgotável de oportunidades ao se reconhecer que se uma pessoa é partícipe de um conflito é, por conseguinte, a melhor indicada para oferecer soluções e alternativas naquele cenário. 

    Quando me conecto às minhas necessidades compreendo melhor as necessidades do meu interlocutor e tenho condições de me abrir a uma comunicação não-violenta. Aceito que cada um age conforme seu estado de consciência e harmonia interna e que o comportamento do outro não é direcionado pessoalmente a mim, nem se confunde com o que é meu. Ao me conectar com empatia, oferto presença num dar natural (ROSENBERG, 2015), desvinculado de interesse de resultado. Isso quer dizer que deixo de responsabilizar o outro pelas minhas expectativas, sem puni-lo ou culpá-lo por minhas decisões. Fala-se em dar natural quando a satisfação do ato acontece com a entrega, quando ganho ao oferecer, sem exigir nada em troca; o que seria, na verdade, busca por recompensa.

    O agir empático demanda, portanto, paciência e inteligência emocional. Juntas, elas compõem a sabedoria necessária para aceitar que cada um tem seu tempo e que esse é o único tempo certo. Na linguagem poética de Alberto Caeiro,

Se soubesse que amanhã morria

E a Primavera era depois de amanhã,

Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.

Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?

Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;

E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.

Por isso, se morrer agora, morro contente,

Porque tudo é real e tudo está certo.

    A empatia pode ser materializada em três diferentes esferas: a nível pessoal, também chamada de autoempatia; em relação ao outro, como normalmente se pensa o termo "empatia"; e no meu trato diante de um coletivo com o qual me sinto pertencido e significante e em que vejo sentido, é o caso da empatia comunitária.

    Os três níveis são comuns a vida humana e, em certos aspectos, costumam ser simultâneos e fortalecem um ao outro. A partir desse olhar, a valorização da minha importância pessoal me abre ao outro e ao grupo coletivo. Posso ser alguém melhor para as pessoas quando cuido de mim. E esta é a razão de, ao se pensar  em começar a prática da CNV por algum aspecto, sugerimos que seja feito pela autoempatia. 

Assim como somos convidados a, diante de alguma inconstância no avião, colocarmos primeiro a máscara de oxigênio em nós e só depois ajudar quem estiver ao lado, se não nos oferecemos amor e empatia, não somos totalmente capazes de fazê-lo em relação ao outro, mesmo quando temos as melhores intenções. O “eu” é o ponto de partida para qualquer relação social. É preciso continuar respirando para auxiliar alguém a respirar.

O mandamento de "amar o próximo como a si mesmo" já reconhecia essa sabedoria. "[...] como a si mesmo", repetimos. E como conseguiria amar o próximo de um modo bom quando sou meu algoz, quando tudo o que conheço é um "amor" frágil e condicional? Quando me ofereço amor e empatia, reconheço o divino que habita em mim e o honro. Compreendo que não importa a vergonha que eu sinta de algo meu, aquilo também é uma obra divina e, como tal, merece respeito e acolhimento. 

Isso não significa que devamos permanecer estagnados ou apegados às características que acreditamos que nos compõem, mas apenas que culpa, autopunição e vergonha não só não ajudam a melhorá-las, como também nos paralisam, nos angustiam ou nos frustam e nos impedem de enxergar outras possibilidades de atuação.

Autoempatia também envolve celebrar coisas maravilhosas que temos conseguido realizar, mesmo quando parecem ser triviais. Rinponche e Tworkov (2018) comentam que

Muitos alunos afirmam que não conseguem se relacionar com suas virtudes. Isso parece estar baseado na suposição de que qualquer identificação de virtude automaticamente gerará orgulho e enaltecimento próprio. Esse é um tipo de ego ao contrário, porque torna nossa virtude grande coisa. Sugere a propriedade dessa virtude ou a identificação completa com ela. Virtude é simplesmente a coisa positiva que fizemos ou estamos fazendo. Todo mundo tem algum grau de virtude.

Nesse aspecto, oferecer cuidado a mim não é mesquinho, nem se centra em arrogância, soberba ou vício. A distinção fundamental entre egoísmo e zelo diz respeito a sutileza que separa ser responsável e deixar-se dominar por alguma crença, ganância, desejo ou apego.

A autoempatia é uma prática fundamental para construção de resiliência, a arte de envergar sem quebrar. Do mesmo modo, o rompimento com ciclos de violência internos e externos leva ao autocuidado. Assim, autoempatia e resiliência se complementam mutuamente uma à outra. 

Mas como alcançar a autoempatia quando nos vemos presos à tradição de comunicação alienante, sob os labirintos da culpa, do medo e da vergonha? O primeiro passo, e também o mais desafiador, é estar disponível, ter intencionalidade de aprender com as situações difíceis, os conflitos e as crenças limitantes a que somos apegados, enxergando-os como oportunidades de aproximar-se a si mesmo.

Para isso, é fundamental reconhecer o divino que habita em cada um de nós, isto é, a manifestação criativa da vida que opera por meio de nós e permitir-se criar e inovar, entender-se capaz de ser abundante, de produzir algo novo no mundo (GILBERT, 2015). No fundo, negar-se autoempatia é negar o próprio valor, cair-se na ingratidão diante da vida e ignorar-se enquanto ser sagrado, pelo simples fato de existir.

Praticar autocuidado é um hábito que pode ser desenvolvido quando se tem consciência e intenção. É pautado por comportamentos generosos, pacientes e diligentes. É também fundamental que haja constância. Nas palavras de Rinponche e Tworkov (2018), “a maneira mais simples de entender a disciplina é dividi-la em três categorias: evitar atividades que criem sofrimento, fazer coisas que promovam a felicidade e o bem-estar e ajudar os outros”.

Uma prática simples baseada na CNV, por exemplo, seria a de fechar os olhos e refletir em silêncio sobre um desafio pessoal que esteja enfrentando. Auto-observe-se sem julgamentos. Traga à consciência os sentimentos que surgem quando se entra em contato com esse desafio. Sinta o seu corpo e busque perceber onde esses sentimentos se manifestam, em qual parte eles se instalam, se há dor, mudança de temperatura em alguma parte, incômodos. Logo, conecte-se com as necessidades vitais que estão por trás desses sentimentos, observando as razões profundas que os acompanham. E, por fim, considere esse desafio como um importante recurso que queira apresentar-lhe um novo caminho pela frente e aprofunde-se nesses questionamentos: que caminho seria esse? O que poderia ser feito para que sua vida se tornasse mais maravilhosa?

Esse exercício breve pode mostrar o quanto dedicar um tempo para se compreender melhor soa estranho para algumas pessoas. Como observar-se, sentir-se e conectar-se com as próprias necessidades pode não ser confortável e pareça até mais difícil do que olhar para  o outro. E isso ressalta o quanto nos alienamos do corpo para viver rotinas incansáveis em busca do que nos disseram ser importante, sem incluir o bem-estar pessoal nesse processo.

Dada a dificuldade de olhar para dentro, o desenvolvimento da autoempatia enquanto hábito fica mais fácil quando contamos com fortalecimento dos nossos suportes interno e externo. No âmbito interno, isso se dá pelo reconhecimento dos nossos próprios valores, contornos e limites, pela compreensão do que estamos disponíveis a oferecer e a receber em cada relação, em dado momento e contexto. Para isso, é fundamental a conexão com sinais e sabedoria de corpo, a observação atenta dos nossos sentimentos e necessidades.

Na perspectiva externa, estamos engajados em criar, potencializar e organizar grupos de apoio e referência que nos forneçam espaço seguro e acolhedor. Trata-se da contribuição da matriz comunitária na consciência e rompimento dos ciclos de violência e construção de resiliência. Tanto a vertente interna do suporte, quanto a externa nos compõem e, por isso, ambas são fundamentais ao autocuidado. 

Autoempatia abrange perdoar-se, reconhecer no corpo onde dói, enxergar os lados maravilhosos que habitam nosso ser e que insistimos em desonrar ou subestimar. Uma pessoa empática que não sobreleve a autoempatia como dimensão fundamental está contrariando sua própria existência, como se abrisse mão da sua vida para salvar a do outro, arrancando seu coração para presenteá-lo a terceiros. Em uma dimensão maior, é por amar meus filhos que cuido de mim, é por querer trabalhar que descanso, é por desejar um mundo melhor que me permito estar em contato com a minha felicidade. O contrário de tudo isso é a negação da vida, pela qual somos corresponsáveis.

Sobre os autores
Mayara Carvalho

Doutora em Direito pela UFMG, com pesquisa em Justiça Restaurativa Comunitária. Mestra em Ciências Jurídicas pela UFPB. É facilitadora de práticas restaurativas, professora e advogada, com graduação em Direito pela UFRN. Autora do livro “Justiça Restaurativa na Comunidade” e do livreto “Justiça Restaurativa na Escola”.

Lucas Jeronimo Ribeiro Silva

Mestre e Doutorando em Direito pela UFMG, com pesquisa em Justiça Restaurativa. Bolsista do CNPq. Pesquisador do Programa de Acesso à Justiça e Solução de Conflitos - RECAJ UFMG. Pesquisador colaborador do Programa de Justiça Juvenil Restaurativa da Província de Buenos Aires - FUNREPAR. É professor e facilitador de práticas restaurativas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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