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Cidadania e direitos sociais

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Agenda 27/11/2005 às 00:00

3.Considerações finais

Por azo de conclusão, é mister ampliar a problemática deste artigo, e seguindo a proposta analítica de T. H. Marshall, recolocar o problema em suas bases originais. A cidadania se monta historicamente como uma pirâmide, os direitos de cidadania no modelo-Marshall se sucedem logicamente uns aos outros: surgem primeiro dos direitos civis, depois os políticos e finalmente os sociais.

Destarte, é possível afirmar que, o problema da cidadania nunca foi encarado de forma adequada pelo Estado brasileiro. Isso porque o poder político anula o presente e finca o discurso ou no passado glorioso, ou no futuro promissor. O fato de não encarar o atual posterga ad eternum o enfrentamento dos problemas sociais instalados nas estruturas mais profundas da sociedade, aprofunda o abismo político entre os representantes e os representados, anula as tentativas de implementação efetiva dos direitos fundamentais, e, por fim, deixa de considerar como sujeitos de direitos as minorias. É como se o Brasil vivesse em eterna transição... sempre "arrumando a casa"...

O fetiche no discurso constitui o aspecto cabalístico da política brasileira. Ocorre uma substituição da práxis revolucionária pelo discurso revolucionário... as mudanças não são da prática política, mas do discurso político. Isso decorre da própria inversão na sucessão de direitos apontada por José Murilo de Carvalho; os direitos políticos – direitos de segunda geração – não foram conseqüência do exercício diuturno, pelo povo, dos direitos civis – direitos de primeira geração – isso porque o povo não participou decisivamente da macro-política, a não ser como massa de manobra. O fato de o Presidente da República eleito em 2002 ser de origem popular, não significa de forma absoluta que o pobre assumiu o poder, nem ruptura na história política do país, muito menos mudança nas relações entre o poder e a micro-política como alhures dito.

Essa dinâmica faz com que se desenvolva, no Brasil, uma espécie de "estadania", é como se o impulso originário do que seria a cidadania partisse não do cidadão, mas do Estado. François Hartog, num texto sobre democracia e igualdade, cola uma narrativa de Heráclito sobre Polícrates, que embora distante na história, ajuda a entender em alguma medida o ocorrido aqui.

Antes de morrer, Polícrates, o tirano de Samos, diz-nos Heródoto, confiara o poder a um de seus seguidores. Este, ambicionando mostra-se "o mais justo" dos homens, convoca então uma assembléia dos cidadãos e declara que não quer comandar homens que são seus "iguais". Desse modo, "põe o poder no centro" e proclama "a isonomia", a igualdade diante da lei, mas também uma partilha igualitária dos direitos políticos. E conclui seu discurso exigindo para si e para seus descendentes certos privilégios (sua maneira de estabelecer a igualdade, mas invocando para si um estatuto à parte). Imediatamente, alguém se levanta para pedir-lhe que "preste contas" de seus bens (ele fora escriba do tirano". Ele volta, então, a seu palácio, manda chamar os opositores e os aprisiona.

Essa história, em forma de apólogo, é eloqüente por vários títulos. Para começar, lembra que isonomia é combate. Ela também é o relato de uma instauração fracassada. A isonomia não pode ser decretada de cima para baixo: só pode resultar da ação de todos que, em sua oposição ao regime tirânico, vêm a reconhecer-se como "iguais" (em posição de paridade); ela implica jogar o jogo até o fim: se o poder já não é propriedade de um só, e se encontra "no centro", ninguém pode então pôr-se a parte e posicionar-se como exceção ao círculo formado pelos cidadãos [...] (F. HARTOG in Darton et Duhamel, p. 93)

O Estado promoveu a manutenção dos privilégios da elite ao mesmo tempo em que promovia a "cidadania". Esse dissenso está na origem da inversão da geração de direitos que provocou a nossa cidadania menor.

Cidadania é o direito a ter direitos, como já afirmara Hannah Arendt. A cidadania só é plena na medida em que os direitos fundamentais são assegurados, sendo que o principal deles é o direito à diferença. Esse asseguramento é, na verdade, uma conquista dos sujeitos historicamente privados de direitos fundamentais por serem diferentes de quem detém o poder e controla a macro-política.

A afirmação das diferenças históricas daqueles que estão no centro e na margem do processo de construção do Estado brasileiro, e a conquista de uma tutela não alienante dessa diferença são capazes de construir uma isonomia real, ou seja, uma igualdade substancial e não apenas aquela, formal, perante a lei.

A cidadania, no Brasil, é pequena visto que a pobreza política é intensa (Demo, 8), "a função mais real da política social tem sido controlar e desmobilizar a população". A idéia de cidadania desenvolvida por Pedro Demo não é diferente da nossa:

Compreendemos cidadania, assim, como processo histórico de conquista popular, através do qual a sociedade adquire, progressivamente, condições de tornar-se sujeito histórico consciente e organizado, com capacidade de conceber e efetivar projeto próprio.

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Chega-se a conclusão de que a situação brasileira, como constata José Murilo de CARVALHO, é sui generis:

primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois, vieram os direitos políticos de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje, muitos direitos civis, a base da seqüência de Marshall 2, continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça pra baixo (CARVALHO, 2002:219).

Destarte, a "estadania", inaugurada pela inversão da pirâmide dos direitos, é causa de cidadania não-consistente, caracterizada pela sobre-valorização do estado – sobretudo do poder executivo – em que toda conquista que objetiva a ampliação dos direitos ainda é enxergada como uma "benesse do rei". O clima institucional é propício para o surgimento de governos de cunho populista que, sem comprometimento algum com rupturas, não proporcionam ganhos qualitativos no terreno da cidadania. Embora muito se tenha conquistado nesta última década, a cidadania brasileira ainda é um sonho distante. A moral do povo ainda é a moral de rebanho niestzscheana, ou nas tristes palavras de Rubem Alves: " [...] o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo. [...] o povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão" (2002:85). Cidadania é consciência, como afirmara Pedro Demo.

A cidadania, como tem sido afirmado no presente trabalho, não se esgota na dimensão político-participativa, visto que todo processo de emancipação é complexo, aliás:

A questão político-participativa em política social coloca questões complexas, a partir do reconhecimento de que política social não se restringe à atuação pública. Diante da questão social – de desigualdade social -, o confronto entre iguais se dá na arena pública e civil, sendo esta, muitas vezes, decisiva, e sempre mais fundante. Essa característica serve, ademais, para testar a qualidade política de uma sociedade: onde a desigualdade é somente confrontada na arena pública, reina a tutela sobre a sociedade, que acaba cristalizando novos conteúdos históricos. Condição fundamental de cidadania é reconhecer criticamente que a emancipação depende fundamentalmente do interessado. Não dispensa apoios – os públicos são sempre necessários – e instrumentais. A estratégia secular de obstaculização do processo de formação da cidadania inclui a tutela, em particular políticas sociais assistencialistas, que aplacam o potencial reivindicativo e transformador em troca de migalhas. (DEMO, 17)

A dimensão civil do direito de ter direitos deve ser encarada como prioritária. O respeito aos direitos fundamentais constitucionais que, em sua maioria, são liberdades públicas negativas é salutar para coibir as arbitrariedades do Estado. Ademais, aqui é importante destacar o direito civil de diferença: o Estado tem o dever objetivo de garantir a dignidade humana em sentido amplo e, especificamente, promover políticas inclusivas de minorias, políticas estas que tinham reflexos nas três dimensões dos direitos de cidadania. Exemplo de direito civil de diferença amplamente vinculado à questão da cidadania é a união civil de homossexuais ainda vedada pelo ordenamento jurídico.

Mencione-se ainda os direitos sociais de cidadania sem os quais o tripé de Marshall restaria incompleto. Os direitos sociais são direitos de terceira geração, só possíveis depois do exercício profícuo dos direitos civis e depois dos políticos – ordem lógico-cronológia. Neste tocante, o papel das políticas públicas de amplo impacto social deve ter alguns parâmetros fundamentais (Demo, 18-19): deve ser redistributivo reduzindo efetivamente as desigualdades sociais "restringindo acessos por parte dos privilegiados, e repassando-os aos desiguais"; precisam ser equalizador de oportunidades, instrumentalizando os desiguais para que tenham oportunidades históricas reais; as políticas sociais devem contribuir para a emancipação reconhecendo que mudanças profundas só podem partir dos desiguais reconhecidos como agentes históricos de transformação, "não há degradação histórica maior do que aquela situação em que o pobre ainda acredita que sua emancipação dependa dos outros, sobretudo, do grupo dominante"; saliente-se que esse tipo de ação do Estado deve ser preventiva no sentido de agir na raiz do problema, já que "quando as políticas sociais são sistematicamente não-preventivas, mascara-se a estratégia de obstaculização do processo de formação da cidadania popular, via manutenção da degradação material" e conseqüente aumento da dependência de políticas públicas curativas. Somem-se a isso as ações afirmativas promovidas pelos diversos segmentos sociais, inclusive pelo Estado, para minimizar a curto prazo a exclusão histórica de grandes segmentos sociais.

Como não é possível inverter a ordem histórica de produção da cidadania nas terras brasílicas, outro remédio não há que denunciar essa inversão e, ao mesmo tempo, apontar estratégias de fortalecimento dos direitos civis e políticos como solução possível para o enfrentamento da problemática social, talvez o maior óbice para a implantação de uma cidadania segura, consistente e duradoura.


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NOTAS

[1] Neste mesmo sentido pugna José Murilo de Carvalho, op. cit., 2002, 123-124.

[2] MARSHALL T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

Sobre o autor
Fernando de Brito Alves

professor de filosofia e sociologia, licenciado pela Universidade do Sagrado Coração de Bauru, bacharelando em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, em Jacarezinho (PR), membro do programa de pós-graduação latu sensu em História, historiografia, sociedade e cultura da Faculdade Estadual de Filosofia de Jacarezinho, ambas da Universidade Estadual do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Fernando Brito. Cidadania e direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 879, 27 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7627. Acesso em: 23 dez. 2024.

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