Sumário: 1. Questão proposta. 2. Baculejo legal. 3. Baculejo ilegal. 4. Tipos fundamentais de Estado. 5. Teoria x prática. 6. Compromisso do Profissional do Direito Penal. 7. Conclusão. 8. Bibliografia.
Resumo: No sentido comum, o baculejo nunca é legal, sempre será um constrangimento. No sentido jurídico, somente será legal se existirem elementos concretos que autorizem o procedimento cautelar de preservação da prova de um crime, isto é, se houver fundada suspeita. Logo, o baculejo não pode ser utilizado como medida de prevenção de delito, sob pena de ofensa ao Estado de Direito. Na prática, essa vedação legal tem sido desrespeitada. Cabe, então, ao Profissional do Direito Penal torná-la cada vez mais efetiva, por dever de ofício, pois a sua ciência não se contenta apenas com o conhecimento do Direito – exige a sua efetivação, para ser Direito.
Palavras-chave: Estado de Direito – Dignidade da pessoa humana – Busca pessoal na persecução penal – Profissional do Direito Penal.
1. Questão proposta –
Levar baculejo é legal? A resposta é óbvia. Não, não é legal levar baculejo. Quem já passou pela experiência, relata momentos – eternos momentos – de angústia, tensão, nada legal. E depois, uma sensação de indignação: por que eu? não sou bandido!? Definitivamente, ser apalpado por um policial fardado, de pernas abertas, mãos na cabeça, sob a mira de arma de fogo e aos olhos de todos não é bom. Ninguém gosta de ser (mal) tratado assim. Mesmo aquele cidadão que acredita no rigor penal como solução para o problema do crime, quando leva o baculejo reclama do "despreparo" da polícia. Enfim, no sentido comum, levar baculejo não é legal.
Contudo, para nós, Profissionais do Direito Penal – que raramente levamos baculejo – a questão não é tão simples. Ilegal é aquilo que não está de acordo com a ordem jurídica. Nesse sentido, o baculejo pode ou não ser legal, se estiver ou não de acordo com a ordem jurídica. Vamos por partes. Estabelece a Constituição Federal (art. 1º) que: a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento, entre outros, a dignidade da pessoa humana. Isto significa que nas atividades estatais a pessoa humana não pode ser tratada como coisa, como um meio para se atingir um objetivo. Metaforicamente, o Estado brasileiro não pode prender um inocente para salvar a sociedade. Por isso, a Constituição estabelece, no art. 5º, direitos e garantias individuais, ou seja, limitações ao poder do Estado. Entre elas, na questão proposta, destaco que: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" (inc. X).
Ora, quando a polícia submete uma pessoa no meio-da-rua ao baculejo ofende a sua dignidade, violando a sua intimidade, vida privada, honra e imagem. Não é possível um baculejo light. A abordagem policial de um suspeito deve ser enérgica, inclusive para a segurança dos próprios policiais: "todos são bandidos até prova em contrário". Contudo, não se pode concluir, pelo menos ainda, pela ilegalidade do constrangimento. O Direito é composto de normas e princípios – não basta a simples leitura da letra da lei. É necessário continuar a análise, buscando compreender a ordem jurídica. Nesse passo, a Constituição também estabelece, no art. 144, que é dever do Estado promover a segurança pública através das polícias. Mais do que isso, é do conhecimento geral que o Estado tem o dever de perseguir e punir os criminosos, em uma atividade que recebe o nome de persecução penal.
Assim, de um lado o dever estatal de respeitar a dignidade da pessoa humana e de outro a persecução penal. Daí porque o baculejo pode ou não ser legal, no sentido jurídico da palavra; isto é, no interesse público da persecução penal, a ordem jurídica admite a busca pessoal. Mas o faz, de maneira regrada, como exceção e não como regra. Remédio amargo que o cidadão tem que suportar desde que ocorra na forma da lei – pois, como está garantido na Constituição (art. 5º, II): "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
2. Baculejo legal –
O Código de Processo Penal, ao tratar da prova (título VII), autoriza a busca pessoal (art. 240 e §2º), quando houver fundada suspeita – e somente quando houver fundada suspeita – de que a pessoa oculte consigo coisa obtida por meio criminoso ou de porte proibido ou de interesse probatório. A doutrina interpreta extensivamente esse meio de prova (acautelatória e coercitiva), para autorizar, além da inspeção do corpo e das vestes, a revista em tudo que estiver na esfera de custódia do suspeito, como bolsa ou carro. Podendo ocorrer em qualquer fase da persecução penal, mesmo antes do inquérito policial, para apreender tais coisas, independentemente de mandado (art. 244), desde que haja fundada suspeita.
Pois bem. Esse é o problema central do baculejo legal: quando ocorre a fundada suspeita? A doutrina não se dedica ao tema. Pelo menos não se dedicava, antes do baculejo virar moda. Hoje, até na comemoração de gol, tem jogador simulando que está sendo revistado, ironicamente, se identificando com os torcedores – o humor é uma forma de resistência do oprimido. Assim, é possível que o Profissional do Direito Penal possa contar em breve com uma bibliografia mais densa sobre o tema. Até lá, trabalhamos com o que temos, ou seja, as poucas decisões dos tribunais. Entre elas, a decisão do Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, no HC nº 81.305-4 / GO, é paradigmática: "A fundada suspeita, prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um blusão suscetível de esconder uma arma, sob o risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder." (DJU 22/02/02, rel. Min. Ilmar Galvão. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br. Acesso em 08/03/04 – sem grifo).
Além da necessidade de elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, também se deduz, a partir dessa decisão, que o pressuposto da fundada suspeita na busca pessoal decorre do constrangimento que causa. Logo, se a revista não causar constrangimento, não se exige a fundada suspeita. Por exemplo, quando o cidadão passa por detector de metal, da Polícia Federal, instalado em aeroporto internacional – nesse caso, sequer ocorre o baculejo, evidentemente inadmissível nesse espaço social.
Em resumo, o baculejo, em face do constrangimento que causa, para ser legal, no sentido jurídico – pois no sentido comum nunca será legal –, tem que ocorrer como meio de prova, quando houver fundada suspeita de que a pessoa oculte consigo coisa obtida por meio criminoso ou de porte proibido ou de interesse probatório. Repito, tem que ocorrer como meio de prova ou, como prefere parte da doutrina, como medida acautelatória, liminar, destinada a evitar o perecimento das coisas e não como atividade preventiva de delito confiada na experiência do policial.
3. Baculejo ilegal –
Portanto, o baculejo será ilegal quando caracterizar-se como atividade estatal preventiva de delito. Como ocorre, por exemplo, no chamado bloqueio relâmpago ou blitz que realiza também a busca pessoal de maneira genérica – sem a fundada suspeita. Todos que forem parados no bloqueio são revistados. Essa atividade do Estado não tem previsão na ordem jurídica. Entenda-se bem. A blitz de trânsito, aquela que fiscaliza documentos e condições do veículo tem previsão legal no Código de Trânsito. Ilegal é o bloqueio policial que submete o cidadão ao baculejo como ação preventiva de delito. Ele não é suspeito de ocultar nada. Na verdade, é um azarado, estava no local errado na hora errada; por isso obrigado a descer do carro, mãos na cabeça, ser apalpado e o carro vasculhado, sob a mira de arma de fogo e aos olhos de todos.
Da mesma forma, o baculejo é ilegal quando o policial revista um cidadão que estava em local público (por exemplo, andando na rua ou em um bar) com base no "kit-peba" (rapaz de casacão largo, chinelo e bermudão – Correio Brasiliense, 27/01/01). E vários outros exemplos que o leitor conhece por ouvir dizer, se for Profissional do Direito Penal, ou por ciência própria, se não for.
4. Tipos fundamentais de Estado –
Separado o joio do trigo, surge nova questão: Na guerra contra o crime, o policial deveria ter maior liberdade de ação contra os bandidos? é necessária essa limitação jurídica na busca pessoal? a lei está protegendo os bandidos? Enfim, por que não se permite que o policial use da sua experiência para agir em conformidade com aquilo que ele considera de interesse da sociedade?Essa nova questão não tem resposta óbvia, como a anterior. Exige estudo e reflexão. Tudo depende do tipo de Estado que se quer construir. Conforme o limite maior ou menor ao poder estatal, foram construídos os seguintes tipos de Estado: 1. Estado Patrimonial: Estado é considerado patrimônio pessoal do príncipe e o exercício da soberania decorre da propriedade da terra; 2. Estado de Polícia: o soberano, embora não governando em nome próprio, mas em nome do Estado, exerce discricionariamente o poder político, de conformidade com aquilo que ele considera de interesse do Estado e dos súditos; 3. Estado de Direito: os poderes são rigorosamente disciplinados por regras jurídicas. (Alexandre Groppali).
A Constituição Federal constituiu a República Federativa do Brasil como Estado de Direito. Logo, a persecução penal está rigorosamente disciplinada por regras jurídicas. Seus agentes não podem agir de conformidade com aquilo que considerem do interesse da sociedade. No Estado de Direito a persecução penal somente é possível na forma da lei, assegurada a dignidade da pessoa humana. Essa limitação ao poder punitivo não é uma proteção ao bandido, mas uma garantia ao cidadão honesto; pois impede que nas atividades estatais a pessoa humana seja tratada como coisa, como meio para se atingir um objetivo.
Assim, a única resposta juridicamente possível à nova questão proposta (Na guerra contra o crime, o policial deveria ter maior liberdade de ação contra os bandidos?) é um categórico não. Mas, seria desejável um Estado de Polícia? Também, não! O Estado de Polícia para não ser opressor necessitaria de agentes que não fossem humanos, ou seja, sábios infalíveis que no caso concreto conseguissem agir sempre com Justiça. Cada um deveria ter a sabedoria de Salomão, pois teriam o poder de cortar uma criança ao meio. Sabedoria e sorte de Salomão porque, se uma das mulheres não tivesse cedido, a criança seria cortada ao meio e Salomão não passaria para história como sábio, mas como carrasco! Não, o Estado de Polícia é incompatível com o atual estágio jurídico do Brasil que assegura os valores supremos de uma sociedade pluralista... pelo menos assegura no texto legal, porque na prática....
5. Teoria x prática –
O descompasso entre a ordem jurídica e a prática da persecução penal foi sintetizado por Giovana Povo nos seguintes termos: "A busca e apreensão pessoal sempre foi meio de abusos e arbitrariedades. Cidadãos – autores ou não de crimes – com freqüência são revistados por policiais, por serem subjetivamente considerados ‘suspeitos’, e, assim, passam a ser vítimas de constrangimento insuportável."Alguém desconhece essa triste realidade?! Infelizmente, a evolução jurídica brasileira não corresponde, totalmente, à prática da persecução penal. Na prática, o Estado de Polícia não é uma mera referência histórica. O constrangimento que resultou no habeas corpus paradigma não foi um fato isolado na nossa sociedade – ao contrário, ocorre com freqüência. A novidade foi a atitude do cidadão-vítima que se recusou ao procedimento e depois buscou a tutela jurisdicional. E essa é a boa nova: é possível construir o Estado de Direito.
6. Compromisso do Profissional do Direito Penal –
Na construção do Estado de Direito, isto é: na construção de "uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias", o Profissional do Direito tem destacada responsabilidade.
Justifico essa afirmação lembrando a classificação aristotélica das ciências ou do conhecimento. Conforme a função de cada ciência, elas podem ser reunidas em dois grupos: a) – ciência teórica ou especulativa: tem por finalidade o próprio conhecimento, limitando-se a ver a realidade, reproduzindo-a como existente; b) – ciência prática: tem por finalidade o conhecimento para que ele sirva de guia à ação ou ao comportamento.
Entre as ciências teóricas está a física ou a biologia, por exemplo, porque o cientista tem que assumir uma atitude de observador do seu objeto de estudo para compreendê-lo. Quando isso ocorre, o seu ofício está encerrado, ou seja, esse é um conhecimento passivo, se contenta com a observação. O estudo do Direito, no entanto, não se contenta somente com a observação, exige também a prática pois tem por finalidade regular comportamentos. É um conhecimento ativo que obriga a sua efetivação.
O Profissional do Direito, então, tem um compromisso com a construção do Estado Democrático de Direito em razão do seu ofício. O seu conhecimento, para se completar, exige a prática, a realização. Especificamente, o Profissional do Direito Penal tem o compromisso de efetivar a persecução penal na forma da lei – se quiser ser Profissional do Direito. Assim, se o Estado, por uma das suas manifestações de poder, não respeita a ordem jurídica, cabe a ele mudar essa realidade, por dever de ofício. Se na prática, a teoria é outra: não é Direito.
7. Conclusão
No sentido comum, o baculejo nunca é legal, sempre será um constrangimento. No sentido jurídico, somente será legal se existirem elementos concretos que autorizem o procedimento cautelar de preservação da prova de um crime, isto é, se houver fundada suspeita. Logo, o baculejo não pode ser utilizado como medida de prevenção de delito, sob pena de ofensa ao Estado de Direito.
Na prática, essa vedação legal tem sido desrespeitada. Cabe, então, ao Profissional do Direito Penal torná-la cada vez mais efetiva, por dever de ofício, pois a sua ciência não se contenta apenas com o conhecimento do Direito – exige a sua efetivação, para ser Direito.
8. Bibliografia
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 249-253.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 238-239.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 25.
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 170-173.
GROPPALI, Alexandre (Doutrina do Estado. São Paulo: Saraiva, 1962). In: DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.71.
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1998, vol. II, p. 285-292.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 318-323.
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso completo de processo penal. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 165-168.
NUCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. São Paulo: RT, 2002, p. 448-472.
POLO, Giovana. Busca e apreensão pessoal e prova ilícita. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 8, nº 92, p. 9, jul. 2000.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 1998, vol. 3, p. 351-371.