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A razão e os mitos na atividade liberta de julgar

Agenda 04/12/2005 às 00:00

Fórmulas de julgamento podem mostrar-se empobrecedoras tanto quando se repetem como quando imergem em interpretações personalíssimas. Ambas incorrem no malogro da razão e, na verdade, ressuscitam mitos que escravizam. A atividade de julgar, que é substancialmente liberta, encontra seu limite na fadiga, deixa de ser emancipadora e sucumbe ao voluntarismo.


O filósofo inglês Alfred North Whitehead expôs em uma conferência os limites da razão como fonte de entendimento e busca para formas adaptativas de vida, situando neste trecho, como legítima angústia, a perda de força do racional e do razoável: A fadiga é a antítese da razão. As operações da fadiga se constituem no malogro da razão em seu caráter mais primitivo de buscar atingir sempre a tendência ascendente. A fadiga significa, na verdade, o alijamento do impulso em direção às novidades. Ela exclui as oportunidades de se atingir o estágio imediatamente superior àquele em que a vida se encontra. Esse estágio havia sido atingido pelo aproveitamento de oportunidades. O auge do sucesso de um método é alcançado quando ele facilita o surgimento de oportunidades sem transcender a si mesmo. A mera repetição é o engodo das oportunidades. O peso da inércia que recai sobre a razão é produto da mera reincidência de um ciclo de mudança, sem novidades que aliviem o processo. O impulso da razão, tolhido por essa inércia, é a fadiga. Quando o impulso frustrado finalmente se esvanece, a vida trata de preservar seu estágio presente, pelo menos no que diz respeito a suas operações formais. Ela perdeu, no entanto, o impulso através do qual aquele estágio foi atingido, impulso que se constituía em elemento originário do próprio estágio. Houve um retrocesso para o estágio de uma vida meramente repetitiva, preocupada apenas com o simples sobreviver, e despojada de qualquer fator que envolva esforços no sentido de viver bem, e menos ainda de viver melhor. Esse estágio de vida estática nunca chega a atingir uma verdadeira estabilidade. Ele representa uma longa e prolongada decadência, na qual a complexidade do organismo regride para formas mais simples.

O resumo dessa sombria análise está nesta frase: o tédio de viver é a fadiga que resulta do obstáculo a um impulso (que feneceu), e teve de ser direcionado para situações de contraste mais toleráveis (em busca de uma estabilização).

Fiel à metodologia do positivismo, de que foi um grande expoente, Whitehead não incursiona por outros fatores de direcionamento do saber, reconhecendo embora que a razão não reina absoluta. Seu diagnóstico, porém, é insubstituível, e ele permite conceber o que periclita quando o espírito humano quebra seus ímpetos legítimos para formular juízos e escolhas, rendendo-se às dificuldades, "tolhido pela inércia", emparedado nos conceitos tornados imprestáveis porque deles não deriva nenhuma atitude verdadeiramente livre.

Eis nesse impasse da razão uma oportunidade para buscar entender descompassos reais da vida e da função autêntica dos magistrados, mas - com a licença do grande mestre positivista – incorporando um outro método.

Isso porque há estigmas no destino humano que não são apreendidos senão em narrativas simbólicas, como aquelas das fábulas ou da mitologia (não é por acaso que a Psicanálise tomou os estereótipos do teatro antigo). Esses estigmas, sinais ou símbolos tanto podem marcar momentos decisivos da história, e dizer respeito à humanidade, ente coletivo ou condição comum de existência, como se apresentar no dia a dia de cada um, nos desafios que têm de ser vencidos como impasses morais ou profissionais constantes. As figuras do imaginário mítico aqui abordadas obviamente não são as únicas que importam; há um vasto mundo de espectros nas referências do inconsciente. As duas que foram selecionadas se apresentam há milênios como desafios para respostas prontas, para atitudes de definição que implicam em vitória ou morte. São, por assim dizer, momentos em que o homem ocupa o lugar do monstro perante o qual comparece sem escolha: vence ou passa a conviver com o medo de ser por ele devorado, prostrando-se ante sua benevolência ou crueldade, ali depondo o que há de livre em seu espírito.

O primeiro desses mitos está transfigurado na Esfinge de Tebas, que propunha o desafio decifra-me ou devoro-te com um problema simples, mas que aturdia os incautos - na verdade, como nós - que não sabiam localizar em que grau de abstração se situava a proposição enigmática: qual é a criatura que tem quatro patas pela manhã, duas ao meio-dia e se arrasta em três ao entrar a noite ?

Édipo resolveu a charada, provocando o suicídio da Esfinge, ao responder que é o próprio homem, que engatinha quando criança, anda ereto no curso da maior parte da vida e, já velho, socorre-se da bengala para poder caminhar.

Não é possível na modernidade entender a riqueza das proposições mitológicas, que são tidas até como fábulas infantis ou como expressão do paganismo primitivo, se não for buscado com efetivo interesse o rigor dos significados envolvidos. No caso do exemplo, eles dizem respeito ao próprio homem, ao reconhecimento de seu papel, de voltar-se para si mesmo diante da besta, e encontrar então uma identidade existencial que implica em expulsá-la de seu mundo.

A outra figura mitológica, esta vencida pelas artes de combate de Teseu, é o Minotauro. A proposição aqui feita diz respeito ao labirinto no qual o monstro habita, e que dá vigor à sua indestrutibilidade, na medida em que é um espaço imponderável. O herói cumpre o papel de desvendar o reduto da fera, de vencê-la, porque não viveria ele próprio ali num limite fechado, preservado vivo talvez, mas cativo.

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A propósito desse mito, Jorge Luis Borges, como grande bruxo das palavras, escreveu: A idéia de uma casa feita para que as pessoas se percam talvez seja mais extravagante que a de um homem com a cabeça de touro, mas as duas se ajudam e a imagem do labirinto convém à imagem do minotauro. Fica bem que no centro de uma casa monstruosa haja um habitante monstruoso.

A citação de Borges remete de imediato ao que propõe este artigo. O juiz defronta as questões do seu ofício como enigmas inexpugnáveis ? Ele habita o arcabouço da Justiça aceitando-o como se estivesse em um labirinto ? Eis aí questões que demoram muito para ser formuladas, ou que não o são nunca. Entretanto, há meio de fugir delas? Como, por exemplo, pode ser enfrentada a pergunta do sábio espanhol Miguel de Unamuno: ¿ La maldad está em la intención del que executa el acto o no está más bien en la del que lo juzga malo ?

Os juízes não poderiam aceitar a sucessão de séculos e de milênios sendo eles próprios os formuladores de enigmas destrutivos ou defensores "de uma casa feita para que as pessoas se percam", pois isso implica numa estraneidade para com o gesto humano emancipador, que se afirma exatamente ao superar os espectros mitológicos. A razão não pode fugir de si mesma. Contudo, o voluntarismo se apresente com o duplo aspecto, de negar o rigor do método que demonstra a razão, e faz aceitáveis as várias ordens de relações da vida, e de dar sobrevida a mitologias. E o que é o voluntarismo judicial ? É a contrafação maior do exercício da liberdade de formar convicções demonstráveis, que tenham no liame da aceitação plausível uma força que as legitima socialmente. O voluntarismo muda, se reveste de idiossincrasias ora simplesmente egoístas, ora de suposta adesão a grupos interpretativos da moda, como ocorreu com o chamado Direito Alternativo, ora, enfim, revela seguida e simplesmente a vanitas vanitatum da qual nos advertiu o sábio que redigiu o Eclesiastes. Hoje a maior fonte de dissensão dos julgados, por mais respeitáveis que devessem ser, em honra às lutas sociais que permitiram que viessem a existir instituições livres e sólidas para os emitir e garantir, está na absoluta disparidade interpretativa, nos subterfúgios retóricos, nas singularidades esdrúxulas com que se destrói a capacidade de convencer, em nome de uma criatividade descompromissada, que apenas demonstra a fadiga de que falou Whitehead.

Aqueles que têm na ordem de seu ofício a leitura de muitas milhares de sentenças e acórdãos, para fazer-lhes o exame crítico de revisão, mostram que, pelo voluntarismo que irracionaliza as leis mais caras aos homens (e indispensáveis para a sua efetiva liberdade), estão redivivas as bestas da Esfinge e do Minotauro. E elas precisam morrer.

Textos aditivos do mesmo autor: A Justiça Agoniza, Ed. Esfera, S.P. ; Presidente Macunaíma, http://www.midiaindependente.org

Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABEDA, Luiz Fernando. A razão e os mitos na atividade liberta de julgar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 884, 4 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7661. Acesso em: 22 dez. 2024.

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