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O Decreto nº 5.584/2005:

mais um desserviço do governo ao direito à informação pública e à busca de nossa história

Agenda 12/12/2005 às 00:00

Em continuação aos desastres que foram o Decreto nº. 4.553, de 27.12.2002, a MP nº. 228 e o Decreto nº. 5.301, ambos de 09.12.2004, e a Lei nº. 11.111, de 06.05.2005, veio a lume o Decreto nº. 5.584, de 18.11.2005 – novamente, como reação a fato constrangedor externo (1) – com o qual o Governo Lula prossegue na já longa lista de desserviços prestados ao País, como já o tinha feito o Governo Fernando Henrique Cardoso, especificamente no que diz respeito à concretização do Direito à Informação Pública e à descoberta de nossa História mais recente.

Antes de mais nada, deve-se ter em mente que o Direito à Informação Pública é, verdadeiramente, um direito, e não um favor; é, ainda, um direito fundamental, e sem o qual não é possível exercer-se outros direitos fundamentais. Pense-se, por exemplo, nos direitos de voto, de controle social da Administração Pública, em como o consumidor poderia defender-se contra cláusulas abusivas, e em tantas outras situações da vida cotidiana, em que a vontade do indivíduo seria manipulada, e sua liberdade de escolha menosprezada, se não pudesse ter ele tido a chance de vir a obter informaçãocompleta, integral e verídica. Daí a fundamentalidade do direito à informação, e porque constitui-se ele em condição prévia ao desenvolvimento de sua personalidade, inclusive, para o fim de formação e consolidação de uma consciência da existência de uma identidade coletiva, de saber-se o indivíduo membro de um grupo ou de uma coletividade – cultural, étnica, religiosa, e assim por diante. E é sabido que quem perde sua história, perde a si mesmo, deixa de ser, massifica-se, coisifica-se, torna-se mero objeto de interesses que não os seus.

O Decreto nº. 5.584, de 18.11.2005, presta-se justamente a favorecer a perda da identidade coletiva de todos nós, brasileiros, não só aqueles contemporâneos ao período da Ditadura Militar de 1964, mas também de todas as gerações ainda por vir.

Senão, vejamos.

O art. 1º. determina que:

"Os documentos arquivísticos públicos produzidos e recebidos pelos extintos Conselho de Segurança Nacional – CSN, Comissão Geral de Investigações – CGI e Serviço Nacional de Inteligência – SNI, que estejam sob a custódia da Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, deverão ser recolhidos ao Arquivo Nacional, até 31 de dezembro de 2005, observados os termos do § 2º. do art. 7º. da Lei nº. 8.159, de 8 de janeiro de 1991." (grifei)

Não há porque limitar-se o direito de acesso apenas aos documentos públicos, excluindo-se implicitamente os privados que também tenham sido recebidos pelos órgãos supra descritos, restrição esta que mais perde ainda qualquer sentido, se for lembrado que, à época, como sói de se dar em se tratando de regimes de exceção, muito do que era feito e registrado nos "porões" era produzido extra-oficialmente, à margem de qualquer regime legal, quando não de qualquer controle fático, inclusive por parte dos próprios órgãos militares.

O artigo é ainda restritivo porque limita o acesso aos documentos arquivísticos produzidos e recebidos apenas pelo Conselho de Segurança Nacional, pela Comissão Geral de Investigações e pelo Serviço Nacional de Investigações, como se não tivessem havido outros órgãos dedicados também ao controle de toda e qualquer possível oposição ao regime militar, e à efetiva repressão aos opositores, bastando lembrar os Centros de Informação que existiam no âmbito das Organizações Militares, como o CENIMAR, e que sequer reportavam-se aos Comandantes daquelas Organizações.

E mostra-se triplamente restritivo, ao condicionar o acesso aos documentos "que estejam sob a custódia" da ABIN. Pergunta-se: e os que estiveram, e da ABIN foram para outros locais, públicos ou não, identificados formalmente ou não, inclusive quanto aos destinatários dos documentos remetidos?

Quanto a esses, omissão completa, e nenhuma competência investigatória atribuída ao "Grupo Supervisor" de que tratam os artigos seguintes.

O art. 2º. instituiu outra Comissão, agora denominada de – "Grupo Supervisor" -, a par da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas criada pela MP nº. 228/2004, "Grupo" este que, como aquela "Comissão", é composto unicamente por agentes políticos e servidores da Administração Pública Federal.

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Costuma-se dizer que, se não se deseja resolver algum assunto incômodo, basta nomear-se uma Comissão para discutir a questão...Talvez o Governo Lula tenha resolvido não arriscar-se de modo algum, e por isso tenha decidido dobrar as Comissões envolvidas com o tema do acesso aos documentos públicos sigilosos... À vista dos muitos e recentes insucessos em diversas áreas, e de sucessivos escândalos políticos que parecem não ter fim, até que semelhante cautela, se houve, não teria sido exagerada... ao menos, se o intuito foi o de certificar-se de que tão cedo, ou nunca, o acesso àqueles documentos públicos sigilosos será franqueado ao público em geral.

O art. 7º. impõe a obrigação de os "integrantes dos Grupos Supervisor e Técnico" – este, consoante o art. 3º., "composto por cinco representantes do Arquivo Nacional e cinco representantes da ABIN" – firmarem "termo de manutenção de sigilo".

Com isto, qualquer quebra de sigilo causada pelos integrantes daqueles Grupos, resultante de dolo ou culpa grave, poderá ensejar a sua responsabilização civil, administrativa e penal; tal medida, em realidade, destina-se a evitar que venha à luz qualquer documento ou informação revelador de ilícitos praticados às épocas retratadas pelos respectivos documentos aos quais os membros daqueles Grupos terão acesso – se, efetivamente, e quando tiverem acesso.

Sobrepõe-se, assim, o interesse na manutenção do sigilo, inclusive quanto aos crimes comuns praticados ao tempo da Ditadura Militar, ou a pretexto da proteção da segurança nacional, ao interesse público, também nacional, e ainda também constitucional, dirigido à transparência administrativa e - por que não ? - à continuidade da consolidação democrática em nosso País.

E a obrigação funcional de manutenção do sigilo poderá estender-se mesmo após o documento houver sido desclassificado, mas ainda não houver sido "recolhido ao Arquivo Nacional", quando somente então "deverão ser disponibilizados para acesso público", na dicção do art. 10, primeira parte!..

Finalmente, reafirma-se a continuidade de todas as medidas arbitrárias presentes no Decreto nº. 4.553/2002, seja quanto às "normas de salvaguarda de documentos sigilosos" (art. 9º., parágrafo único), seja quanto ao resguardo das cláusulas de "manutenção de sigilo e a restrição ao acesso que se refiram à intimidade da vida privada de pessoas ou cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado" (art. 10).

Ou seja, depois de tantos diplomas normativos, volta-se ao ponto de partida: já há mais de dezessete anos do encerramento formal do regime ditatorial, com a promulgação da Constituição Federal "Cidadã" de 1988, persistem os Governos civis, e com mais ênfase do que os próprios Governos militares se houveram, a impedir o legítimo acesso do povo brasileiro aos documentos e informações referentes à sua própria História.

Não há outro meio: como já disse em outra oportunidade, urge que se institua uma "Comissão de Verdade e Justiça", com amplos poderes de acesso, de investigação e de polícia, e com o predomínio de membros de organizações civis e não – governamentais, em tudo externas ao Governo, sequer financiadas por ele, única forma de assegurar-se a plena independência de sua atuação. (2)

Enquanto isso não for feito, nada mudará, em que pese toda a boa – vontade que, aqui e ali, puder vir a ser encontrada no seio da Administração Pública. (3)

Porque não é de boa – vontade que se está a tratar, mas de respeito a direito fundamental, o de acesso aos documentos e informações públicos, e de obrigação também fundamental a ser cumprida pelo Estado Democrático de Direito que somos e que pretendemos cada vez mais virmos a ser, cumprimento este que é condição sine qua non da própria existência desse Estado.


NOTAS DE REFERÊNCIA

(1).Assim, no jornal "O GLOBO", de 04.11.2005: "A Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, na Suíça, recomendou ao governo brasileiro que garanta o acesso aos documentos produzidos durante a ditadura. O Comitê lamenta que, embora o regime militar no país tenha terminado há 20 anos, as investigações sobre os abusos cometidos no período ainda não estejam concluídas.O Comitê fez um apelo ao governo brasileiro para que os assassinatos e os casos de tortura praticados por policiais e outros abusos cometidos por agentes da lei sejam punidos. O órgão, que monitora se os países estão respeitando os tratados internacionais sobre liberdades básicas do povo, afirmou ainda que as investigações sobre acusações de abusos devem ser realizadas por organismos independentes que não estejam suscetíveis a interferências policiais. "O Comitê está preocupado com a disseminação do uso excessivo da força pelos oficiais da lei, o uso de tortura para obter confissões de suspeitos e a execução extrajudicial de suspeitos", diz o relatório. O Ministério das Relações Exteriores confirmou ontem ter recebido o documento e o informou que governo estuda se será dada alguma resposta à comissão da ONU. O documento trata de outros temas, como questões indígenas e garantia de direitos de mulheres e negros. O Comitê disse que o Brasil precisa atuar mais para combater a escravidão, o trabalho forçado e o tráfico de seres humanos e garantir a independência do Poder Judiciário do país. O documento da ONU é uma resposta ao relatório periódico enviado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo brasileiro para aquele organismo, prestando contas de várias ações nessa área."

(2) "Ciência, consciência e responsabilidade. Abrindo os arquivos secretos da ditadura: por uma Comissão da Verdade". Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 539, 28 dez 2004. Disponível em http://jus.com.br/artigos/6141.

(3) Veja-se, a título mais que ilustrativo, o seguinte trecho da entrevista dada pelo jornalista PAULO MARKUN à revista "IMPRENSA", São Paulo, ano 19, nº. 207, novembro de 2005, p. 18: "IMPRENSA – Que lição ficou daquele episódio das supostas fotos de Vlado (refere-se a Vladimir Herzog) preso nu, que apareceram na imprensa e que depois o Exército revelou não serem dele, mas de um padre? MARKUN – A grande lição é: os arquivos da ditadura não podem ficar fechados. Haviam 30 fotos do padre, mas apenas as três que permitiam algum tipo de confusão com o Vlado foram parar misteriosamente nas mãos da imprensa. Os repórteres que encontraram as fotos dizem que isso foi pura coincidência. Mas é difícil acreditar... IMPRENSA – Estes documentos são acessíveis? MARKUN – Eu não consegui ter acesso aos documentos relativos ao Vlado que estão nas fichas do SNI. Cheguei a conversar com Nilmário Miranda (ex-ministro dos Direitos Humanos) – que prometeu levantar essas informações, mas acabou não fazendo isso. Eles continuam trancados. Dizem que os documentos produzidos nos DOI-CODI, portanto embaixo de tortura – foram destruídos. Mesmo assim, examinando apenas os arquivos do DOPS, conseguimos localizar uam ata da reunião do SNI em que o delegado Romeu Tuma apresenta a TV Cultura como um antro de subversão, e o Vladimir Herzog como responsável por uma campanha para derrubar o regime. Essa reunião aconteceu um mês e meio antes da morte do Vlado. Imagino o que ainda é possível encontrar nesses arquivos."

Sobre o autor
Alberto Nogueira Júnior

juiz federal no Rio de Janeiro (RJ), mestre e doutor em Direito pela Universidade Gama Filho, professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor dos livros: "Medidas Cautelares Inominadas Satisfativas ou Justiça Cautelar" (LTr, São Paulo, 1998), "Cidadania e Direito de Acesso aos Documentos Administrativos" (Renovar, Rio de Janeiro, 2003) e "Segurança - Nacional, Pública e Nuclear - e o direito à informação" (UniverCidade/Citibooks, 2006); "Tutelas de Urgência em Matéria Tributária" (Forum/2011, em coautoria); "Dignidade da Pessoa Humana e Processo" (Biblioteca 24horas, 2014); "Comentários à Lei da Segurança Jurídica e Eficiência" (Lumen Juris, 2019).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA JÚNIOR, Alberto. O Decreto nº 5.584/2005:: mais um desserviço do governo ao direito à informação pública e à busca de nossa história. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 892, 12 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7705. Acesso em: 23 dez. 2024.

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