3 DA COLISÃO ENTRE O DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA E O DIREITO À VIDA
3.1 A recusa ao tratamento com sangue
A recusa à terapia transfusional por motivação religiosa, manifestada por pacientes em perigo de vida ou não, de acordo com o Professor José Roberto Goldim [77], é mais freqüente do que se imagina.
Essa recusa desencadeia uma série de conseqüências que fazem deste estudo merecedor de atenção no meio jurídico, sob o aspecto dos Direitos Fundamentais, por se tratar de situação diretamente ligada ao ser humano, envolvendo sua liberdade, vida e dignidade.
O fundamento para a proibição do recebimento de transfusão está na natureza sacra conferida ao sangue através da interpretação feita pelas Testemunhas de Jeová, dos seguintes textos bíblicos:
Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento: eu vos dou tudo isto, como vos dei a erva verde. Somente não comereis carne com a sua alma, com seu sangue [78]. (Gênesis 9: 3-4.)
A todo israelita ou a todo estrangeiro, que habita no meio deles, e que comer qualquer espécie de sangue, voltarei minha face contra ele, e exterminá-lo-ei do meio de meu povo [79] (Livro Levítico 17:10)
Portanto, partindo da interpretação feita do texto acima transcrito, as Testemunhas de Jeová crêem que Deus os proibiu de receber sangue alheio. Quem o receber será considerado impuro aos olhos do Senhor, sendo este o pior castigo que lhes poderia acometer.
Julio de Queiroz [80], ao tratar sobre o ato médico e as convicções religiosas, apresenta um motivo para o entendimento de que é proibido receber sangue alheio.
Segundo Queiroz, a bíblia na Idade Média era escrita exclusivamente em latim, sendo que somente o clero católico a podia ler. Quando houve a Reforma iniciada por Marinho Lutero (1483-1546), na Alemanha, a bíblia foi traduzida para as línguas nacionais. Uma das conseqüências foi a tradução literal de seus textos, os quais foram lidos por pessoas semi-alfabetizadas, filosófica e teologicamente despreparadas, que deram origem a vários grupos religiosos, autodenominados evangélicos. [81]
O autor destaca ainda:
tais interpretações fizeram com que alguns de seus membros, como aqueles que não aceitam a transfusão de sangue para doentes, voltassem a conceitos pré-cristãos, baseados na proibição feita ao povo hebreu, de "não tomar sangue alheio", pois alguns dos povos vizinhos de Israel, ritualmente, bebiam o sangue das vitimas sacrificadas aos seus deuses. [82]
No entanto, em que pese a versão apresentada pelo autor citado, preferimos não entrar na seara da discussão sobre a interpretação realizada pela religião de que tratamos. Partimos do ponto de que essa interpretação é a base de um dogma religioso e como tal deve ser admitido, respeitado e analisado, pela ótica jurídica.
É neste sentido que Aldir Guedes Soriano levanta a questão da ocorrência de um "conflito entre dois valores ou direitos tutelados pela CF/88, verbi gratia, a liberdade religiosa e o direito à vida". [83]
Com efeito, argumenta-se que as Testemunhas de Jeová não têm a intenção de renunciar à vida quando negam a terapia transfusional. Apenas manifestam a vontade de serem submetidas a tratamento alternativo ao sangue, como ilustra Soriano:
Não obstante, os que professam a orientação das Testemunhas de Jeová não pretendem renunciar à vida, porquanto almejam continuar vivos. Assim sendo não recusam tratamento médico. Argumentam, entretanto, que se poderiam utilizar tratamentos alternativos para se evitarem as transfusões sangüíneas, que, por sinal podem acarretar inúmeras infecções, inclusive a temível AIDS". [84]
Atualmente, é visível a evolução da ciência médica quanto ao desenvolvimento de tratamentos e cirurgias sem a utilização de sangue, de sorte que a transfusão já não é considerada com a única terapêutica capaz de salvar a vida do paciente que dela necessite, como afirma Celso Ribeiro Bastos:
Há sim outros tratamentos alternativos – desenvolvidos e utilizados por médicos alopatas, e não por sectários de uma religião específica – que atingem o mesmo resultado. São eles: os expansores do volume do plasma, os fatores de crescimento hematopoéticos, a recuperação intra-operatória do sangue no campo cirúrgico, a hemostadia meticulosa etc. O fato de se ter mais de um tratamento em substituição à transfusão de sangue já nos leva logo a concluir que este não é o único modo de salvar a vida do paciente. Pode-se, portanto, prescindir dele por outras formas alternativas de tratamento. [85]
O Código de Ética Médica, em seu art. 5º dispõe que,
"O médico deve aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente". [86] Assim sendo, segundo o professor de ética médica da USP, Dr. Marco Segre, em palestra ministrada sobre o assunto em tela, em abril de 1996, na cidade de Ribeirão Preto, "[...] o fato de existir uma crença religiosa que impede a aceitação de sangue está contribuindo enormemente para o desenvolvimento científico". [87] Expõe também o raciocínio de que existe a possibilidade de, no futuro, não se falar mais em transfusões de sangue, já que será mais seguro utilizar tratamentos que não ofereçam riscos de contaminação ao paciente.
É inquestionável que o surgimento de alternativas médicas para a transfusão de sangue é uma solução para o problema ético e jurídico, causado pela recusa expressa do paciente. É, também, uma forma de se evitar que a liberdade religiosa e a vida sofram algum prejuízo. Porém, segundo Soriano, ainda não há alternativa para todos os caso que necessitam transfusão de sangue, remanescendo o problema, "especialmente nos casos em que há uma grande perda de sangue, e o tratamento, chamado alternativo, não é suficiente, para se manter a vida do paciente". [88]
Baseando-se em autores da área médica, Soriano salienta que apesar da evolução da ciência, o tratamento hemoterápico ainda é imprescindível nos casos de hemorragia aguda em que há grande perda de hemácias. Responsáveis pelo transporte de oxigênio, as hemácias somente são substituíveis por outras hemácias. [89]
Portanto, as terapias sem a utilização de sangue não podem ser ministradas em todos os casos, havendo situações nas quais surgirá inevitavelmente o conflito entre a liberdade religiosa e o direito à vida.
No que condiz às situações em que o paciente não corre risco de vida, e havendo a possibilidade de serem utilizadas outras formas de tratamento, sem ministrar sangue, a doutrina inclina-se para o entendimento de que a vontade do paciente, com sustentação no direito fundamental à liberdade religiosa, deve ser respeitada.
Neste sentido, Soriano posiciona-se: "Nos casos em que é possível o tratamento alternativo e é desnecessária a transfusão sangüínea, é evidente que a liberdade religiosa do paciente deverá ser, sempre, respeitada. Nesse particular não há dúvida alguma." [90]
É este também o posicionamento do Conselho Federal de Medicina com base no Parecer nº 21/80 que deu origem à Resolução de número 1.021/80 [91] com o seguinte teor:
A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais segura para a melhora ou cura do paciente.
Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada.
Nessas condições, deveria o médico atender o pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue.
No entanto, quando a situação envolve risco de vida do paciente, a orientação do Conselho Federal de Medicina, com base na mesma resolução acima citada, é de que o médico deve transfundir o paciente, mesmo diante de oposição, in verbis: "O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a transfusão é a terapêutica indispensável para salvá-lo. Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permití-la." [92]
3.2 A recusa ao tratamento e o conflito de valores
Ao tratarmos sobre a recusa à transfusão de sangue, temos que destacar previamente que a questão é considerada complexa do ponto de vista jurídico, por envolver elementos de natureza distinta e que coexistem em uma mesma situação, como, por exemplo: as obrigações médicas de caráter legal, a liberdade de consciência do paciente e o direito ao seu próprio corpo, a intimidade pessoal e familiar, a responsabilidade legal dos pais sobre seus filhos e o interesse do Estado em preservar a vida dos seus cidadãos.
É indubitável a existência de um campo de conflito entre os distintos e diversos direitos, sendo que, ao se tratar de liberdade, um mesmo ponto assume variados aspectos, motivo pelo qual os estudiosos do direito devem estar atentos e conscientes, como ressaltam Acuña, Moral, Ravina e Sánchez:
La via de conflicto creada entre los distintos y diversos derechos y liberdades es, ciertamente, un campo comprometido en el que el jurista tiene que andar com extremo cuidado, ya que es confuso determinar si estamos ante el exercicio de un derecho fundamental que exigiria del ordenamente jurídico una especial proteccion, o por el contrario, un uso-abuso del mismo susceptible de represión jurídica, en el que es aún más comprometido e peligroso debido a lo trascendental del tema donde entra en juego la vida de una persona. [93]
O problema, então, consiste na dificuldade de harmonizar a situação jurídica através de soluções corretas e concretas, como ilustram os autores acima citados:
La práctica demuestra que la variada casuística es difícil de encasillar en un conjunto legal que aporte a priori las soluciones correctas y definitivas, se trataría pues de realizar una tarea de equilibrio para fijar cuando debe prevalecer la opción assumida em conciencia por el enfermo y cuando otros intereses sociales que resultem afectados en esa concreta situación. [94]
A grande dificuldade de se fixar uma orientação jurídica dá-se pelo fato de que não existe, para a questão da terapia transfusional, nenhuma previsão legal. Segundo Gilmar Ferreira Mendes, "os direitos individuais enquanto direitos de hierarquia constitucional somente podem ser limitados por expressa disposição constitucional (restrição imediata) ou mediante lei ordinária promulgada com fundamento imediato na própria constituição (restrição mediata)". [95]
Assim sendo, surge a necessidade da prestação jurisdicional para fazer uma interpretação dos elementos e valores envolvidos nessa questão, para que possam ser aplicados ao caso concreto, a fim de solucionar o conflito existente.
Ferreira Filho defende que, ao tratarmos da recusa à transfusão de sangue, estamos diante de uma "concorrência" de direitos fundamentais, não de uma colisão. Esta última aconteceria quando direitos fundamentais de diferentes titulares se confrontassem. O autor acredita tratar-se de concorrência, por ser caso de sujeição de "uma conduta ao regime de dois (ou mais) direitos fundamentais de um só e mesmo titular". Sendo assim, considera que "descabe aí impor comando heterônomo àquilo que é de escolha livre do animal racional que é o homem." [96]
Para Ferreira Filho, ao surgir dentro desta concorrência "um conflito, por exemplo, entre o direito à vida e o direito à liberdade, o titular de ambos é que há de escolher o que há de prevalecer". [97] Segundo o autor, "este registro não teoriza senão o que na história é freqüente: para manter a liberdade o indivíduo corre o risco inexorável de morrer". [98]
No entanto, a posição de Ferreira Filho não é adotada de forma pacífica pela doutrina, principalmente porque, um dos valores envolvidos na questão é a vida.
Soriano, por exemplo, ao analisar os valores envolvidos no problema, declara haver "sem dúvida alguma, uma colisão de dois direitos fundamentais, ou seja, o direito à vida com o direito à liberdade religiosa". [99]
Percebe-se que a recusa à transfusão de sangue mediante risco de vida é questão de interesse muito abrangente, vez que se trata de um bem de altíssimo valor no ordenamento jurídico, alvo de incansáveis discussões, travadas também nas questões referentes ao aborto, à pena de morte e à eutanásia.
3.3 Solução de conflitos de direitos fundamentais
Edílson Pereira de Farias, ao abordar a solução para colisão de princípios, faz a seguinte consideração:
[...] não se resolve a colisão entre dois princípios suprimindo um em favor do outro. A colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de escolher qual deles no caso concreto prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro." [100]
Para o autor, "como os direitos fundamentais são outorgados por normas jurídicas que possuem essencialmente as características de princípios, o que foi dito sobre colisão de princípios se aplica, em regra, ao caso de colisão entre direitos fundamentais." [101]
Assim sendo, Farias acredita que para a solução da colisão, o aplicador do direito, deverá utilizar os passos metodológicos que a doutrina propõe:
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, caberia inicialmente ao interprete-aplicado, determinar o tatbestand (âmbito de proteção) dos direitos envolvidos, isto é, aquelas situações de fato protegidas pela norma constitucional, com o escopo de verificar a existência ou não de uma verdadeira colisão, porquanto esta primeira etapa poderia excluir desde logo a hipótese de colisão, sendo esta apenas aparente. [102]
Para Farias, não se trata de verdadeira colisão, mas sim de colisão aparente de direitos fundamentais, quando a norma constitucional não protege algumas formas de exercício de direitos, isto é, alguns tipos de situações estão excluídos da esfera normativa enunciada pela constituição. [103]
Nesse sentido, Farias exemplifica com as seguintes indagações de Vieira de Andrade:
Poder-se-á invocar a liberdade religiosa para efectuar sacrifícios humanos ou para casar mais de uma vez? Ou invocar a liberdade artística para legitimar a morte de actor no palco, para pintar no meio da rua, ou para furtar o material necessário à execução de uma obra de arte? Ou invocar o direito de propriedade para não pagar impostos, ou o direito de sair do país para não cumprir o serviço militar, ou o direito de educar os filhos para os espancar violentamente? [...] [104]
Explica o autor, utilizando a consideração proposta por Andrade, que, nos casos de colisão aparente, como os acima citados, "a solução do problema não tem que levar em conta o direito invocado, porque ele não existe naquela situação". [105]
E finaliza sua abordagem sobre a colisão aparente de direitos fundamentais com a seguinte afirmação:
Portanto a importante conseqüência prática do exposto é que, constatando o intérprete de que no caso concreto, o âmbito de proteção do direito ou o limite imanente do direito excluem a forma e o tipo de exercício do direito invocado, não havendo a preservação deste, por meio do processo de ponderação, conforme sucede nos verdadeiros casos de colisão de direitos fundamentais. [106]
Ultrapassada a fase de verificação de conflito aparente e verificada a existência de uma autêntica colisão de direitos fundamentais, cabe ao intérprete aplicador, segundo Farias, solucionar o conflito através da realização de uma ponderação dos bens envolvidos, visando o mínimo sacrifício dos interesses em jogo. [107]
Para tanto, o autor destaca a necessidade da utilização de dois princípios de hermenêutica, quais sejam, o princípio da unidade da Constituição e o princípio da concordância prática ou da harmonização.
O primeiro princípio requer a contemplação da Constituição como um todo, a compreensão do texto constitucional como um sistema que necessita compatibilizar preceitos discrepantes. Já o princípio da concordância prática ou da harmonização seria consectário lógico do princípio da unidade constitucional. [108]
Utilizando o princípio da concordância prática, extrai-se que os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados, no caso sub examine, por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionalmente protegidos. [109]
Neste contexto de análise da colisão, Farias destaca a máxima da "proporcionalidade" que segundo ele, é a realização do princípio da concordância prática no caso concreto. Isto é, significa aquela distribuição necessária dos custos de forma a salvaguardar direitos fundamentais e/ou valores constitucionais colidentes. [110]
Afirma o autor:
Conquanto o princípio da concordância pratica não exija uma ponderação entre os direitos colidentes "em termos matemáticos" ou "quantitativamente mensuráveis", todavia, o processo da ponderação é racional, isto é, podem ser fundamentados os enunciados que estabelecem as condições de harmonização e, se for necessário, a preferência de um direito sobre outro oposto num caso concreto de direitos fundamentais. Uma fundamentação consiste, segundo R. Alexy, na ponderação, a saber: "a afetação de um direito só é justificável pelo grau de importância de satisfação de outro direito oposto". [111]
Soriano, ao considerar a existência de colisão de direitos fundamentais na manifestação de recusa à transfusão de sangue, faz a seguinte indagação:
"Como, então, harmonizar esses direitos conflitantes sem o total sacrifício de um deles? Impende ainda indagar se a vida pode ser renunciada, em detrimento da liberdade religiosa". [112] E desenvolve o seguinte raciocínio:
Se a resposta for fundamentada, simplesmente, na irrenunciabilidade dos direitos humanos, não se chega a solução alguma, posto que tais direitos são igualmente irrenunciáveis. A escolha de um implica, obrigatoriamente, na renúncia do outro. Não há como harmonizar ou conciliar os dois direitos conflitantes, sem o sacrifício integral de um dos direitos. [113]
Por outro lado, continua Soriano:
Se a resposta fosse fundamentada na tese da renunciabilidade dos direitos humanos, duas soluções seriam possíveis, dependendo da visão axiológica do julgador.
Há quem sustente que o direito à vida é preponderante. Para estes, a vida é protegida, em prejuízo da liberdade religiosa, e a transfusão de sangue deve ser realizada, autorizada ou recomendada. Essa solução é amparada pela idéia de que os direitos ou valores Constitucionais obedecem a uma rígida e formal ordem hierárquica, tal como aparece na cabeça do art. 5º da CF/88. A vida, repita-se sob este prisma, é o bem jurídico preponderante. Carlos Ernani Constantino propugna que o direito à liberdade religiosa não é ilimitado, podendo sofrer restrições quando tiver ferindo os preceitos da ordem pública. Para ele, o caso sob comento, recusa do tratamento, estaria comprometendo a ordem pública, uma vez que haveria sacrifício desnecessário de vidas humanas. Desse modo, a liberdade religiosa não pode ferir o direito à vida, que é de ordem pública". [114]
Neste sentido, Soriano registra que "decisões judiciais têm sido favoráveis à vida, determinando que a transfusão de sangue seja realizada. Os juízes que assim decidem argumentam que a vida é o direito preponderante." [115]
Tal afirmação de Soriano pode ser conferida na seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
Cautelar. Transfusão de sangue. Testemunhas de Jeová. Não cabe ao Poder Judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar ou ordenar tratamento medico-cirurgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos e salvo quando envolvidos os interesses de menores. Se iminente o perigo de vida, e direito e dever do medico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, e de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao medico e ao hospital e demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em seria literatura medica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento. O judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão medica ou da atividade hospitalar. Se transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura medico-cientifica (não importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (art-146, par-3, inc-i, do Código Penal). Caso concreto em que não se verificava tal urgência. O direito a vida antecede o direito a liberdade, aqui incluída a liberdade de religião. É falácia argumentar com os que morrem pela liberdade, pois, ai se trata de contexto fático totalmente diverso. Não consta que morto possa ser livre ou lutar por sua liberdade. Há princípios gerais de ética e de direito, que alias norteiam a carta das Nações Unidas, que precisam se sobrepor às especificidades culturais e religiosas; sob pena de se homologarem as maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida e a dignidade humanas. Religiões devem preservar a vida e não extermina-la. [116] (grifo nosso)
Também no sentido da supremacia do direito à vida e sua não renunciabilidade, é que Pontes de Miranda se posiciona:
Pensou-se que o direito à vida implicava direito à morte. O homem, se tem direito de viver, tem direito de morrer. A sociedade não teria interesse a pregar à vida que não na quer. O suicídio seria saída voluntária do circulo social. [...] Não há como se tirar do direito do viver o direito de morrer. Se houvesse tal direito, não se puniria a ajuda ao suicídio, nem se daria a algumas pessoas, e.g., a quem tem a guarda do incapaz, o dever de impedi-lo. [117]
Alexandre de Moraes corrobora da mesma posição de Miranda: "O direito à vida tem um conteúdo de proteção positiva que impede configurá-lo como o direito de liberdade que inclua o direito à própria morte". [118]
Com base na constatação de Soriano e na jurisprudência apresentada, é possível notar que o Estado, ao apreciar o caso, tende a colocar-se como maior interessado na vida do paciente, autorizando a transfusão de sangue contra sua própria vontade.
Na Espanha, segundo Acuña, Moral, Ravina e Sánchez, quando se submete este conflito ao judiciário, surge a figura da responsabilidade do juiz, por decidir de forma incorreta. Também neste país a maioria das decisões judiciais tem sido no sentido de se assegurar a vida e, com isso, muitas querelas têm sido levadas ao Tribunal Supremo que por fim, exonera a responsabilidade do juiz quando este decide pela supremacia do direito à vida:
Ya que se entiende que el supuesto se produce un choque o conflicto entre liberdad religiosa y la vida del paciente, ante lo cual el juez que autoriza opta por valorar como interés preponderante el segundo de los bienes citados. Opcion correcta según el Tribunal Supremo y por ello se exonera de responsabilidad al juez mismo. [119]
Percebemos assim, que tanto no Brasil quanto na Espanha é visível a importância conferida à vida como interesse preponderante pela sociedade. O ordenamento Pátrio ao elencar o direito à vida entre os direitos fundamentais, e ao colocá-la sob os auspícios da legislação penal, demonstra a carga valorativa conferida a esse bem.
O Código Penal, no art. 146, § 3.º, ao tratar dos crimes contra a liberdade individual, admite uma violação desta liberdade, a fim de preservar a vida, mesmo que a vontade da pessoa seja morrer, como no caso do suicídio, in verbis:
Art. 146. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
(...)
§ 3º Não se compreendem na disposição deste artigo:
I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;
II – a coação exercida para impedir suicídio. (grifo nosso) [120]
Quanto à questão da transfusão de sangue resistida, Cezar Roberto Bitencourt faz a seguinte consideração sobre o assunto:
A transfusão determinada pelo médico, quando não houver outra forma de salvar o paciente, está, igualmente amparada pelo disposto no art. 146, § 3º, do CP. Eventual violação da liberdade de consciência ou da liberdade religiosa cede ante um bem jurídico superior que é a vida, na inevitável relação de proporcionalidade entre os bens jurídicos tutelados. [121]
O Código Penal também traz a figura da omissão de socorro no art. 135, colocando a vida sob a responsabilidade de qualquer um que a possa salvar:
Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando possível faze-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo e em grave e iminente perigo; ou não pedir nesses casos, o socorro da autoridade pública.
[...]
Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se a omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada se resulta a morte.(grifo nosso) [122]
Voltando ao raciocínio iniciado por Soriano,
[...] outros atribuem à liberdade um valor mais elevado do que a própria vida. Nesse grupo estão inclusas, sem embargos, as Testemunhas de Jeová, que preferem morrer a renunciar à liberdade de consciência e a fé. Para essa corrente de pensamento, a solução consiste na recusa ou na desautorização da terapia transfusional. [123]
Não obstante a renunciabilidade à vida, admitiria o ordenamento jurídico tamanho sacrifício? A resposta a esta pergunta é extremamente complexa. Há que se considerar duas linhas de raciocínio, segundo Soriano:
Na primeira, ressalta que a Constituição Federal, em seu art. 5º, caput, não fala em irrenunciabilidade do direito à vida, lembrando que, não há punição para a auto-lesão e a tentativa de suicídio, de sorte que, o cidadão poderia renunciar a sua vida. Contudo a questão se complica, quando a decisão recai sobre um absolutamente incapaz, uma criança, por exemplo, ou sobre um paciente em coma. Na hipótese de uma criança, a solução pode estar no pátrio poder, pois os pais ou tutores têm, em tese, o direito de decisão. [124]
Porém, na segunda linha de raciocínio, o autor lembra que "o ordenamento jurídico pátrio não autoriza a eutanásia. Destarte, sob este aspecto, não seria admissível a renúncia à vida." [125]
Todavia, para uma melhor análise do caso concreto, acreditamos que se deve levar em conta duas situações distintas, quais sejam, a transfusão de sangue em maior capaz e em menor ou incapaz, como passaremos a tratar.
3.3 A recusa à transfusão de sangue quando invocada por maior capaz
A recusa à transfusão de sangue em situações de iminente risco de vida, quando manifestada expressamente por pessoa maior e capaz, com fundamento em convicções religiosas, pode ser considerada um exercício do direito de liberdade, assegurado pelo Estado Democrático de Direito.
No caso das Testemunhas de Jeová, quando recusam o tratamento hemoterápico, há de se convir que estamos diante da convicção de uma minoria que, no entanto, não pode ser simplesmente esmagada pela pressão social da maioria. Segundo Mário Sergio Leite, o "Estado Democrático de Direito existe para respeitar os diversos grupos sociais que o compõem." [126]
Ferreira Filho, ao abordar a influência das religiões na vida privada do indivíduo, cita Jean Rivero, nos seguintes termos:
Enfim, a religião, notadamente as grandes religiões monoteístas, como as seitas que delas derivam, exercem sobre o crente uma possessão (emprise) total. Na medida que elas lhe fornecem uma explicação global de seu destino, elas ditam seus comportamentos individuais e sociais, modelam o seu pensamento e sua ação. Porque afirmam a prioridade da ordem sobrenatural sobre a ordem humana, conduzem cada crente conseqüente consigo mesmo a preferir, em cada caso de conflito entre o poder do Estado e os imperativos de sua fé, a obediência à regra mais alta. [127]
E é com o fundamento na regra "mais alta" mencionada acima que o adepto da religião Testemunha de Jeová recusa-se conscientemente em receber transfusão de sangue, mesmo sabendo de que isso pode acarretar sua morte.
A liberdade religiosa, como já abordamos anteriormente, é uma modalidade dentre as liberdades previstas no ordenamento constitucional, sendo reconhecida em diversos documentos e tratados internacionais como um direito da humanidade e, nos ordenamentos jurídicos de Estados democráticos, como um direito fundamental.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho vai mais longe quando afirma:
[...] é ela para todos os que aceitam um direito superior ao positivo, um direito natural. É o mais alto dentre todos os direitos naturais. Realmente, é ela a principal especificação da natureza humana, que se distingue dos demais seres animais pela capacidade de autodeterminação consciente de sua vontade. [128]
E acrescenta:
Se cabe uma hierarquia entre os direitos fundamentais, esta, pela importância dos valores que tutelam, a liberdade é o primeiro dentre todos. Com efeito, de quanto vale a vida, a segurança, a igualdade, a propriedade, sem a liberdade? Talvez esta colocação peque por estar vinculada a uma cultura, ou eivada de subjetivismo, mas é a cultura greco-romana-cristã, a que o Brasil incontestavelmente pertence. [129]
As Testemunhas de Jeová, ao expressarem sua recusa ao recebimento de sangue, estão exercendo a liberdade religiosa que lhes é assegurada na Constituição Federal, uma vez que essa recusa é uma ordem de imenso valor divino e moral para o adepto.
O direito de recusar a transfusão de sangue, para Ferreira Filho, é perfeitamente possível, embasando sua posição da seguinte forma:
Tem o doente a liberdade de aceitar ou recusar um tratamento qualquer, inclusive transfusão de sangue. Isto reflete o direito seu, fundamental, à liberdade, consagrada pela Constituição Brasileira no art. 5º, caput, inclusive nas projeções de liberdade religiosa (inciso IV) e direito à privacidade (inciso X). [130]
Celso Ribeiro Bastos, no entanto, fundamenta sua posição favorável ao direito de recusa à transfusão de sangue, no art, 5º, II da CF, como segue:
[...] o paciente tem direito de recusar determinado tratamento médico, inclusive a transfusão de sangue, com fundamento no art. 5º, II, da CF. Por este dispositivo, fica certo que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei (princípio da legalidade). Como não há lei obrigando o médico a fazer transfusão de sangue no paciente, todos aqueles que sejam adeptos da religião "Testemunhas de Jeová", e que se encontrarem nesta situação, certamente poderão recusar-se a receber o referido tratamento, não podendo por vontade médica, ser constrangidos a sofrerem determinada intervenção. O seu consentimento, nesta hipótese é fundamental. Seria mesmo desarrazoado ter um mandamento legal obrigando a certo tratamento, até porque podem existir ou surgir meios alternativos para chegar a resultados idênticos.
Ao abordar o direito à vida, Bastos considera que esse traz consigo ancorados todos os outros direitos existentes, sendo que seu conteúdo orienta-se por assegurar a inviolabilidade desta como um bem jurídico de maior grandeza. Entretanto, em sua opinião, isso não quer dizer que a vida seja indisponível:
Insista-se, neste ponto, que a Constituição acaba por assegurar, tecnicamente falando, a inviolabilidade do direito à vida, assim como o faz quanto à liberdade, intimidade, vida privada, e outros tantos valores albergados constitucionalmente. Não se trata, propriamente de indisponibilidade destes direitos.(...) Por inviolabilidade deve compreender-se a proteção de certos valores constitucionais contra terceiros. Já a indisponibilidade alcança a própria pessoa envolvida, que se vê constrangida já que não se lhe reconhece qualquer discricionariedade em desprender-se de determinados direitos. No caso presente, não se fala em indisponibilidade, mas sim de inviolabilidade. O que a Constituição assegura, pois, é a "inviolabilidade do direito á vida" (art. 5.º, caput). [131]
Desta forma, Bastos e Ferreira Filho consideram possível que a vida seja disponível através da manifestação de vontade do seu próprio detentor. Para estes autores a vida é disponível com fundamento no exercício de uma liberdade individual.
Ao assumir tal posicionamento, Bastos faz uma ligação do direito à vida com o princípio da dignidade da pessoa humana, destacando que o valor distinto da pessoa humana repercute na afirmação de direitos específicos de cada homem e no reconhecimento de que o homem, na vida social, não se confunde com a vida do Estado, havendo um deslocamento do Direito do plano do Estado para o plano do indivíduo. [132]
Rizzato Nunes, em obra específica sobre a dignidade da pessoa humana, cita Miguel Ekmekdjian, concordando com sua posição no que se refere a uma abordagem ética sobre a impossibilidade de existir vida sem dignidade:
Se realizarmos uma enquete sobre a relação hierárquica entre o direito à dignidade e o direito à vida, possivelmente grande parte das respostas apontaria em primeiro lugar o direito à vida e abaixo deste o direito à dignidade. O argumento que aparenta ser decisivo é que sem a vida não é possível a dignidade. Essa afirmação pode aparecer de grande impacto, contudo é errônea. Implica uma transposição de lugares. De um ponto de vista biológico, é certo que não é concebível a dignidade em um ser inerte, em uma pedra, ou em um vegetal. Assim como se afirma que sem vida não há dignidade (o que aceitamos somente de um enfoque biológico), nos perguntamos se existe vida sem dignidade. Que vida é esta? Era a vida dos escravos tratados como animais que servem para trabalhar e reproduzir-se? Biologicamente sim, mas eticamente não. [133]
Portanto, baseando-se na convicção de que a vida não se limita à esfera biológica, devendo estar firmada sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, Bastos considera que a intervenção judicial, muitas vezes solicitada por médicos diante da recusa à transfusão de sangue, viola frontalmente a liberdade individual e a dignidade da pessoa. O autor acredita que a intervenção, com o propósito de autorizar o médico a realizar o procedimento transfusional, estaria garantindo a vida do paciente no aspecto biológico, mas estaria se retirando sua dignidade. [134]
Também sobre a intervenção estatal na esfera individual, Mário Sergio Leite remete-se à uma famosa citação de Stuart Mill:
O único propósito para que o poder possa legitimamente exercer-se em uma comunidade civilizada, sobre um indivíduo e contra a sua vontade, é o de prevenir danos a outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não constitui suficiente justificação. Não se pode obrigar alguém a suportar algo em virtude de que seria melhor para si, porque ele seria mais feliz ou porque, pela opinião dos outros, o atuar desta maneira seria mais inteligente e mais justo. [135]
Soriano acrescenta:
É razoável admitir-se que a hierarquia dos direitos humanos depende de um juízo de valor. Dessa forma, esses direitos jamais poderiam ser formalmente elencados, segundo uma ordem decrescente de valores, que fosse válida para todos. Cada ser humano, com efeito, tem sua escala de valores, que é dependente da cultura, da genética e também da experiência de vida. Nessa esteira, seria razoável, em tese, a possibilidade de se renunciar à vida sob determinadas circunstâncias, como forma de resistência. Esta sempre foi a decisão dos mártires do cristianismo, incluindo o próprio Cristo. [136]
E complementa com as seguintes palavras de Ramón Soriano:
Es claro que la respuesta a la pregunta sobre los critérios de jerarquización de los valores dependem del plano de la situación del discurso : las libertades más urgentes non suelen coincidir com las más valiosas, aunque la complicación de unas y otras es a todas luces relevantes. Sin la vida – podría argüirse – los otros derechos y liberdades no puedem materialmente existir; sin la libertad, la vida no vale nada, mejor quizás la muerte. Por ello, la correlación entre las diversas formas de libertad debe ser situada en la historia personal o coletiva, y serán éstas las que determinen un ordem de preferencia [137].
É mister também destacar a determinação do art. 5º, inciso II da Constituição Federal, que prevê que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei"
Celso Ribeiro Bastos faz a seguinte consideração sobre o assunto:
O princípio da legalidade não é sena outro caminho tomado pela liberdade, com o que está, simultaneamente, assegurado um campo de autonomia. Mas este campo não é pré-fixado com precisão pela Carta Magna, ou melhor, a Lei Suprema dita um requisito para que exista à restrição à liberdade. Esta restrição consiste na necessidade de lei, com o que fica implícito que a restrição à liberdade pode existir. É dizer, as leis dotadas de caráter genérico e abstrato definem diversas situações, deixando uma margem de liberdade, ou melhor, um espaço para fazer ou não fazer alguma coisa. [138]
Neste caso, há de se concordar que não existe lei alguma que obrigue as Testemunhas de Jeová submeterem-se à transfusão de sangue, assim como não existe lei que obrigue qualquer pessoa a se submeter a qualquer tratamento médico ou cirúrgico.
Neste sentido Bastos acrescenta, que "ninguém pode ser constrangido a consultar um médico ou a submeter-se a um tratamento terapêutico específico contra a vontade livre e conscientemente manifestada". O autor, em um raciocínio simplista, ilustra o direito de recusa a tratamento médico com o exemplo de uma pessoa que, ao apresentar problemas visuais, fosse obrigada a procurar um oftalmologista e a usar os óculos por ele prescritos ou, ao passar por problemas econômicos, fosse compelida a consultar um economista e a seguir suas orientações.
Soriano, sobre o direito de recusa ao tratamento, também pondera o seguinte:
[...] ninguém é questionado por não se submeter a um tratamento de quimioterapia, ou de radioterapia, prescrito como forma de combater a neoplasia maligna, por exemplo. É cediço que a escolha do tratamento depende do paciente. É evidente a inexistência de lei que obrigue alguém a fazer esse ou aquele tratamento, incluindo, também, a transfusão de sangue. [139]
Acrescenta Bastos: "Em suma, aqueles que aderem à orientação das Testemunhas de Jeová também pretendem, como todas as pessoas, continuar vivos. Apenas ocorre que também objetivam uma vida em paz consigo mesmo, sem que a sua posição religiosa reste maculada." [140]
Christine Santini Muriel, juíza de direito em São Paulo, ao escrever um artigo sobre o tema, considera que "se o ato for absolutamente necessário para a manutenção da vida do paciente, deve ser ele realizado mesmo no caso de recusa. Se o ato for tão somente útil ou conveniente, deve a vontade do paciente ser respeitada, não se realizando a transfusão." [141]
No entanto, pondera:
Ainda é preciso que se diga que, no caso específico dos seguidores da Seita Testemunhas de Jeová, a jurisprudência internacional tem evoluído no sentido de que se respeite a vontade do paciente independente dos riscos dela decorrentes. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, alguns hospitais e Cortes adotam a teoria de que qualquer paciente adulto que não seja declarado incapaz tem o direito de recusar um tratamento, não importa quão prejudicial tal recusa possa ser para sua saúde. Adota-se em regra geral naquele país a teoria da necessidade do consentimento esclarecido do paciente para a prática da intervenção médica. O assunto é relativamente novo no Brasil, devendo haver maior discussão do tema em face dos direitos constitucionais à vida e à liberdade religiosa, aparentemente incompatíveis nesse caso. A prevalência de um direito sobre o outro não pode ser simplista, merecendo análise eventuais conseqüências nefastas à saúde mental do paciente, criadas pela transfusão não consentida por motivos religiosos. [142]
Podemos notar que a autora ao comentar sobre a jurisprudência estrangeira, considera uma evolução o fato de ser respeitada a vontade do paciente por hospitais e pelos tribunais. Demonstra também uma preocupação com a saúde mental do paciente forçosamente transfundido, contemplando assim, a questão da dignidade da pessoa.
3.4 A recusa à transfusão de sangue manifestada por representante legal de menor ou incapaz.
Quando o paciente é menor de idade ou incapaz, surge maior dificuldade de administrar o problema do ponto de vista médico e jurídico. O caso acaba por ser submetido à apreciação do poder do judiciário, através de medidas cautelares, no intuito de se obter ordem judicial permissiva à intervenção médica, primando pela preservação da vida do paciente.
A questão da decisão pautada na renunciabilidade da vida é abalada quando a decisão envolve menor ou incapaz. No caso de paciente menor, Soriano considera que "a solução pode estar no pátrio poder, pois os pais ou tutores têm, em tese, o direito de decisão". [143]
Nos casos que envolvem menores, há a situação em que os pais manifestam sua vontade em nome do filho. Essa responsabilidade parental é abordada por Ferreira Filho da seguinte forma:
Não se pode esquecer que a criança e o adolescente gozam, como é obvio, dos mesmos direitos fundamentais que o adulto. Assim, da liberdade, da liberdade religiosa e da privacidade. O chamado Estatuto da Criança e do Adolescente, lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990, reconhece-o expressamente na primeira parte do seu art. 3º. Mas, não tendo a maioridade, a vontade da criança e do adolescente não basta para a determinação de sua própria conduta. [144]
Prossegue o autor:
Sempre foi reconhecido que, entre os poderes dos pais ou representantes legais do menor, se inscreve a matéria religiosa, como também a eles cabe a responsabilidade por sua saúde, etc.
Assim, em princípio, é aos pais ou representantes legais do menor que cabe a decisão a respeito da assistência médica que deve ou não ser a eles dada.
Corrobora essa tese o fato de que, nos preceitos constitucionais sobre a prestação de assistência religiosa, com a redação anterior a esta Constituição, era expresso que sobre isto se deveria atender à vontade dos representantes legais do menor. E, na verdade, se a redação ora vigente assim não o diz, essa mesma solução resulta do sistema. [145]
No entanto, a posição de que os pais podem decidir pela desautorização da transfusão de sangue, é amplamente contestada. Trata-se do único ponto da celeuma a ficar próximo de um consenso: acredita-se que a vida do menor ou incapaz deverá ser sempre preservada.
A Constituição Federal de 1988 preceitua:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, á educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e á convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[...]
Assim sendo, ao ocorrer um caso de imprescindível necessidade de tratamento hemoterápico, cabe ao médico levar a recusa dos pais ou responsáveis ao conhecimento do judiciário.
Nesse sentido, Milena Elvira Vieira Lopes,
[...] quando a situação envolve menores de idade ou outros pacientes tidos como incapazes, como por exemplo, uma pessoa acidentada inconsciente, a questão ganha outras conotações, pois o papel de proteger o paciente, apesar da vontade expressa de seus responsáveis legais pode ser ampliada. [146]
Decisões de Tribunais estrangeiros e nacionais têm sempre salvaguardado a vida do paciente, ainda que contra a vontade dos pais ou representantes legais.
Até nos Estados Unidos, onde as decisões têm sido em favor da autonomia do paciente, mesmo mediante risco de vida, entende-se que " tratando-se de paciente menor ou incapaz, eventual recusa dos pais ou responsáveis leva ao imediato suprimento do consentimento pela autoridades judiciárias". [147]
Paulo Sergio Leite Fernandes destaca:
Nos Estados Unidos, hoje, baseiam-se os Tribunais, para outorga de tal autorização, no conceito de que o tratamento médico é necessidade básica da vida. Na medida em que o Estado tem atribuição para garantir à criança a satisfação das necessidades básicas, e sendo os cuidados médicos de fundamental necessidade, conclui-se que o juiz pode determinar que o menor seja tratado. [148]
No Brasil, o entendimento quanto ao dever do Estado de garantir ao menor suas necessidades básicas não é diferente, como pode ser visto no art. 227 da Constituição Federal. A Carta Maior coloca expressamente o menor e, por analogia, o incapaz sob a responsabilidade solidária da família, sociedade e Estado. Assim sendo, quando a família manifestar vontade contrária à vida ou ao bem-estar do menor, é dever da sociedade e do Estado intervir.
Acreditamos que a recusa à transfusão de sangue, manifestada por responsáveis legais de menor ou incapaz, em situação de perigo de vida, é caso de colisão aparente de direitos fundamentais. A norma constitucional não protege a renúncia à vida fundada no poder familiar ou de representação.