Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

A função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal em omissões penais prejudiciais às minorias

Agenda 21/10/2019 às 20:03

Diante de lacunas legislativas referentes à não concretização de mandamentos constitucionais de criminalização, a atuação da Corte Suprema em prol de direitos e garantias fundamentais torna-se necessária, mas enfrenta uma minuciosa problemática.

Introdução

Finalidade precípua de uma Constituição, que consubstancia sua razão de ser, consiste em, além de constituir um Estado e limitar seus poderes inerentes, instituir defesas à suas minorias políticas. Por conseguinte, merece análise as situações de omissões penais em desfavor de grupos minoritários, sob a ótica da (necessária) atuação do Supremo Tribunal Federal.

 

O NEOCONSTITUCIONALISMO E A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO

A partir do neoconstitucionalismo, pós 2ª Guerra Mundial, consequência dos esforços dispendidos para superar as barbáries facistas e evitar o advento de novos Estados autoritários, com base em estudos como os de Konrad Hesse (1991), surgiu a necessidade de dotar as Constituições de uma mais efetiva força normativa. Nessa linha, Luís Roberto Barroso (2017, p. 07):

(...) passou a ser premissa do estudo da Constituição o reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado.

 Neste cenário, o Poder Judiciário, em especial as supremas cortes dos países que adotaram o controle de constitucionalidade concentrado, assumiu posto de destaque, sendo responsável por defender o texto magno, controlando atos dos demais poderes. Na medida em que tal possibilidade fornece a juízes togados, não eleitos, a possibilidade de decidir e até mesmo invalidar atos de agentes eleitos e representativos, representa verdadeira função contramajoritária, condicionando a vontade de uma maioria à ordem constitucional (BARROSO, 2017, p. 27). Trata-se de verdadeiro esforço para adequar a representatividade ao Estado constitucional, democrático e pluralista. Consoante a Daniel Innerarity (2017, p. 59):

(...) muitas vezes, pode ser necessário corrigir a representação; não para que ela reflita, como um espelho, a sociedade, e sim para evitar a dominação histórica de certos grupos por outros quando a teórica igualdade de condições não é suficiente para que haja participação efetiva de todos.

  as omissões inconstitucionais e os mandamentos constitucionais de criminalização          

A Constituição Federal brasileira prevê expressamente em seu artigo 102, inciso I, alínea “a”, a atribuição do Supremo Tribunal Federal para o julgamento das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade, de efeito erga omnes. Compreendida em tal atribuição está não só a declaração de inconstitucionalidade positiva, a qual ocorre quando há a infração de dispositivos magnos através de um comportamento ativo, mas também a declaração de inconstitucionalidade por omissão, prevista no artigo 103, § 2º da Constituição Federal, que advém da inércia em concretizar dispositivos e princípios constitucionais. Corolário de tal advento, a Corte Suprema, vez que tutela a Carta Magna, sendo capaz de sobrepujar as decisões dos demais poderes aos mandamentos constitucionais, assume a árdua tarefa de defender as minorias políticas, contra infrações (ativas ou omissivas) de seus direitos fundamentais.  

 Nessa linha, sendo notório que o Estado pluralista e Constitucional da atualidade requer a erradicação de certos comportamentos repressivos a grupos minoritários, como é possível depreender de enfáticos dispositivos que disciplinam a essência da Constituição Federal brasileira, por exemplo, tais quais o artigo 1º, incisos III e V, c/c artigo 3º, incisos I e IV, surgem verdadeiros mandados constitucionais de criminalização. O próprio fundamentalíssimo artigo 5º da Carta Magna expõe, em seu inciso XLI que:

XLI. A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.

 Entretanto, estes mandamentos acabam por não serem concretizados pelos Poderes representativos, visto que são justamente constituídos pelas maiorias diametralmente opostas.  O Supremo Tribunal Federal, portanto, neste contexto, é a única instância a que podem estes grupos se socorrer, para, no exercício de mencionada função contra majoritária, enfrentar as omissões penais constitucionalmente relevantes.

POSSÍVEIS EFEITOS DE UMA DECISÃO DO SUPREMO: OS PRINCÍPIOS EM CONFLITO 

Recentemente, a citada Suprema Corte enfrentou, em polêmico julgamento, a ADO nº 26, que tratava da criminalização da homofobia. Visava a ação a declaração da mora do Congresso Nacional em cumprir o mandamento incriminador do dispositivo retro transcrito, omitindo-se em dar concretude a criminalização de uma forma de discriminação que nitidamente atenta contra direitos e liberdades fundamentais.

  Entretanto, o resultado da atuação do Supremo em casos como este enfrenta certos óbices. O conflito começa a se enraizar na medida em que, caso a decisão nestas causas tenha efeito meramente “apelativo”, qual seja o de “declarar a mora” do Poder Legislativo, sem, contudo, utilizar-se de nenhum mecanismo para compeli-lo a efetivar o mandamento constitucional, a força normativa da Constituição, tão buscada pelo neoconstitucionalismo, é desvencilhada, na medida em que não é imposta, mas “recomendada”, voltando neste ponto ao mesmo sentido de mera norma programática que possuía antes do século XX. Tal efeito é criticado, por exemplo, por Flávio Martins (2019, p. 579), para o qual enquanto o provimento final consistir em mero apelo há provocação da máquina jurisdicional de modo inútil.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

  Consoante a Gilmar Mendes (2008, p. 13), inobstante, a própria jurisdição constitucional brasileira tem desenvolvido diferentes técnicas de decisão, considerando que, para o caso de omissão, a invalidação prevista nas ações por atos inconstitucionais não seria eficaz.

  Contudo, por outro lado, caso a decisão emanada tenha o condão de impor ao poder omisso o suprimento da lacuna inconstitucional, haverá confronto com o princípio da tripartição dos poderes e da legalidade, posto que, de acordo com o artigo 5º, inciso XXXIX, cabe à lei criminalizar condutas e esta é resultado de processo do Poder Legislativo, e não do Poder Judiciário. Mesmo caso a decisão tenha efeito similar ao de uma “sentença aditiva”, a indicação de uma norma para reger a omissão penal ou do modo com o qual a omissão deva ser tratada dificilmente não contrariar-se-á o princípio da reserva legal.

PROPOSTA DE SOLUÇÃO

Ante ao nítido contexto problemático narrado, verifica-se urgente necessidade de uma solução obtida através da ponderação dos princípios em questão, de forma a prosperar o caminho que garanta a melhor aplicação possível de todos eles. 

Conforme já apontado, o relevante papel assumido pelo Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal no Brasil, remonta aos esforços para garantir força normativa à Constituição e aos direitos e garantias fundamentais contidos em seu bojo. Logo, em uma situação como esta, em que se coloca em cheque a eficácia de mandamentos constitucionais de tal relevo, requer-se imperiosamente a adoção de medidas que possam evitar a erosão de sua força normativa, tendente a dar guarida a crises humanitárias. 

Por consequência dos fatores históricos e evolutivos apresentados, é necessário que a Suprema Corte, no exercício de sua legítima função jurisdicional, seja colocada como um óbice à inércia do Poder Legislativo, de tal modo que esta atuação não represente uma usurpação de poderes, mas sim uma verdadeira concretização do sistema de freios e contrapesos idealizados por Montesquieu.

Logo, interessante resolução seria analisar situações análogas de interação dos Poderes, para tentar estruturar um sistema para o enfrentamento das omissões inconstitucionais penais prejudiciais aos grupos minoritários que considere e preserve a vasta gama de princípios em jogo.

Assim, verifica-se que no caso das ADIN's, diante de inconstitucionalidades positivas,  há eficácia em concretizar os emanamentos constitucionais, bem como há aceitação doutrinária unânime, visto que o STF se atém a declarar a inconstitucionalidade, sem usurpar a função legislativa, mas, ao mesmo tempo, o ordenamento garante vinculatividade a essa decisão. 

Ademais, outra interessante interação de Poderes reside nos procedimentos das Medidas Provisórias, que coloca o Executivo e o Legislativo em dialética, concretizando nítido exemplo do sistema de freios e contrapesos. Interessante trazer à tona, neste contexto, mais especificamente, o efeito do trancamento de pautas, que serve para compelir o Poder Legislativo a apreciar a matéria do ato (com efeito de lei) emanado pelo Presidente da República. 

Portanto, interessante solução à controvérsia em tela consiste na definição de um mecanismo jurídico constitucional próprio para as omissões penais inconstitucionais prejudiciais às minorias, que tenha o condão de declarar a mora do Poder Omisso, mas não fique apenas na esfera apelativa, revestindo-se do efeito de "trancar a pauta" do Legislativo enquanto não solucionada a omissão apontada pela Corte Suprema.

Ainda, por óbvio, deve este instrumento proposto ser revestido por limites rigorosos e minuciosos, com o intuito de evitar ativismos judiciais demasiadamente irrazoáveis, que possam dar origem a uma verdadeira "ditadura judiciária". 

conclusão

Ante a todo conteúdo abordado, resta-se evidenciado a polêmica residente no fato de que conflituam princípios e valores basilares do Estado Democrático no qual se assenta a República Federativa do Brasil.

Ademais, indo além, trata-se de uma controvérsia que diz respeito a aplicabilidade da Constituição e de direitos e garantias fundamentais, remontando à evolução histórica mundana para evitar novas bárbaries humanitárias. Evidente que qualquer argumentação gerará contraposições e incitará discussões, mas há urgente necessidade do uso da dialética para que uma solução seja definida. Presente artigo ateve-se a descrição do contexto problemático criado e emanou uma proposta de intervenção, pautada no fato de que concretizar a letra da Constituição é essencial e deve ser o principal norte de qualquer estudo acerca do tema. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Fábio Portela L. Criminalização da homofobia: riscos para a Democracia Constitucional. 2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/criminalizacao-da-homofobia-riscos-para-a-democracia-constitucional-24062019. Acesso em: 09 set. 2019.

BARROSO, Luís Roberto. Countermajoritarian, Representative, and Enlightened: The roles of constitutional tribunals in contemporary democracies. Revista Direito e Práxis, [s.l.], v. 9, n. 4, p.2171-2228, out. 2018. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2017/30806

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navegandi, Teresina, v. 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7547. Acesso em: 09 set. 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 10 set. 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26. Requerente: Partido Popular Socialista. Requeridos: Congresso Nacional; Presidente do Senado Federal. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, DF, 13 de junho de 2019. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4515053. Acesso em: 10 set. 2019.

FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Criminalização da homofobia: decisão do STF preserva legalidade e anterioridade penal. 2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/criminalizacao-da-homofobia-decisao-do-stf-preserva-legalidade-e-anterioridade-penal-11062019. Acesso em: 09 set. 2019.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. 34 p.

INNERARITY, Daniel. A política em tempos de indignação: a frustração popular e os riscos para a democracia. Rio de Janeiro: LeYa, 2017. 303 p.

MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. 1632 p.

MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 1504 p.

MENDES, Gilmar. Jurisdição Constitucional no Brasil: o problema da omissão legislativa inconstitucional. 2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=90357&sigServico=noticiaArtigoDiscurso&caixaBusca=N. Acesso em: 10 set. 2019.

MONTESQUIEU. Espírito das Leis. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo escrito para fundamentar apresentação em Programa de Iniciação Científica do VIII CICTED (Congresso Internacional de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento) realizado pela Universidade de Taubaté, no ano de 2019.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!