UM FATO QUE MERECE INVESTIGAÇÃO
Rogério Tadeu Romano
Determina o artigo 6º do CPP:
Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:
I – se possivel e conveniente, dirigir-se ao local, providenciando para que se não alterem o estado e conservação das coisas, enquanto necessário; (Vide Lei nº 5.970, de 1973)
I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; (Redação dada pela Lei nº 8.862, de 28.3.1994)
II – apreender os instrumentos e todos os objetos que tiverem relação com o fato;
II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; (Redação dada pela Lei nº 8.862, de 28.3.1994)
III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;
IV - ouvir o ofendido;
V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura;
VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;
VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;
VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;
IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter.
X - colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)
Quando a notitia criminis lhe chega ao conhecimento, deve o delegado proceder tal como disposto neste artigo.
Discute-se com relação aos objetos relacionados com o fato.
São todos aqueles que sejam úteis a busca da verdade real, podendo tratar-se de armas, mas ainda também de coisas totalmente inofensivas e de uso comum, que, no caso concreto, podem contribuir para a formação da convicção dos peritos. Em primeiro lugar, destinam-se tais objetos à perícia passando, em seguida, à esfera de guarda da autoridade policial, até que sejam liberadas ao seu legítimo proprietário.
Costuma se dizer que a investigação diretamente no lugar dos fatos, feita pela autoridade policial, propicia-lhe arrolar testemunhas, determinar a colheita de material para exame e outros elementos que auxiliarem a convicção do auto da infração penal, bem como da própria existência desta.
No caso em tela volto-me a preocupante informação que abaixo arrolo.
Segundo o site do jornal O Globo, em 2 de novembro do corrente ano tem-se:
“O presidente Jair Bolsonaro disse neste sábado que pegou os áudios das ligações realizadas entre a portaria e as casas do condomínio Vivendas da Barra antes que, segundo ele, os áudios fossem adulterados. A afirmação foi feita durante entrevista a jornalistas em Brasília. O presidente, no entanto, não especificou a data em que retirou os arquivos da portaria do condomínio.
— Agora, eu estava em Brasília, está comprovado. Várias passagens minhas pelo painel eletrônico da Câmara, com registro de presença, na quarta-feira geralmente parlamentar está aqui. Eu estava aqui, não estava lá, e outra, nós pegamos antes que fosse adulterado, pegamos lá toda a memória da secretária eletrônica, que é guardada há mais de anos, a voz não é minha. Não é o seu Jair. Agora, que eu desconfio, que o porteiro leu sem assinar ou induziram ele a assinar aquilo. Induziram entre aspas, né? Induziram a assinar aquilo — disse Bolsonaro.
A declaração foi uma referência ao depoimento do porteiro do condomínio, que disse ter ligado para a casa de Bolsonaro para autorizar a entrada de Élcio de Queiroz, um dos suspeitos do assassinato da vereadora Marielle Franco. O Ministério Público do Rio informou, na sexta, que os áudios contradizem o relato do porteiro.”
Por sua vez, o site do jornal O Globo, no dia 4 de novembro do corrente ano, publicou:
"O presidente Jair Bolsonaro negou, na noite deste domingo, que tenha agido para obstruir as investigações .
— O que eu fiz foi filmar a secretária eletrônica com a respectiva voz de quem atendeu o telefone. Só isso, mais nada. Não peguei, não fiz backup, não fiz nada. A memória da secretária eletrônica está com a Polícia Civil há muito tempo. Ninguém quer adulterar nada — afirmou.
Não cabe ao presidente da República determinar a apreensão de provas.
O grupo prerrogativas deu a seguinte nota:
"Trata-se de reconhecimento de crime, de interferência ilícita em apuração criminal, voltada assumidamente a resguardar interesses pessoais e familiares, o que exorbita nitidamente das competências do cargo exercido".
O episódio se reveste de gravidade e deve ser objeto da devida apuração criminal.
Prevê o artigo 347 do Código Penal o crime de fraude processual ao prescrever o seguinte tipo penal: “ Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, da coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito. A pena prevista é de detenção de três meses a dois anos, e multa.
Historicamente, o Código Rocco, no artigo 374, previa o ilícito.
Tutela-se a administração da justiça, visando-se sancionar o improbus litigator, sendo crime comum, que pode ser praticado por qualquer um, seja parte ou estranho ao processo.
O dispositivo previsto tem como objetividade jurídica regular a atividade da justiça, evitando a fraude que possa produzir o falseamento da prova e que possa levar ao erro no julgamento.
Como referenciado, qualquer pessoa pode cometê-lo, seja ou não interessada na solução da lide, podendo ser responsabilizado o funcionário público, se a conduta não configurar um crime próprio, ou ainda o procurador da parte, embora se exija, como sempre, que, de alguma forma, concorra para o resultado.
O tipo objetivo do crime previsto no artigo 347 do Código Penal é a inovação artificiosa, na pendência do processo civil, administrativo ou penal. O agente modifica, muda, deforma os objetos materiais(o estado de lugar, da coisa ou de pessoa), alterando a situação preexistente. Assim, tratando-se de pessoa, pode haver uma inovação no aspecto físico, ou externo, ou anatômico interno, mas não psíquico, civil ou social(RT 502/297). Como disse Paulo José da Costa (Comentários ao Código Penal, São Paulo Saraiva, volume III, 1989, pág. 568), se a alteração for grosseira, constatável a primeira vista, não se perfaz o delito. Mas a inovação há de vir acompanhada de um artifício. Lugar é qualquer ambiente que deve ser objeto de exame pelo magistrado ou perito. Coisa é a entidade móvel ou imóvel, podendo ser nela compreendida o cadáver, tendo-se como tal: lavar manchas de sangue, alterar escritura de livro mercantil, eliminar sinais de abalroamento de veículo. Entre as pessoas que poderão ser artificiosamente inovadas podem ser enumeradas não só o réu e a vítima como ainda todas as pessoas que devam ser objeto da investigação probatória.
Interessa-nos a fraude processual no processo penal.
Prevê o artigo 347, em seu parágrafo único, a fraude no processo penal , assim se dizendo: “Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.”
No caso que envolve a fraude no processo penal, não será necessário que se tenha iniciado o processo penal, pois é possível a prática do crime a partir do inicio das investigações para a apuração do ilícito, mesmo que não se tenha instaurado, formalmente, o inquérito policial ou a investigação pelo Ministério Público, titular da ação penal pública.
A Lei 12.850 prevê ainda tipo penal, no artigo 2º, um crime com relação a quem promova, constitua, financie ou integre pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa, incorrendo, nas mesmas penas, quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva a organização criminosa.
Consiste o crime organizado, a teor do artigo 2º da Lei 12.850/12, nas ações de promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa organização criminosa.
Analisemos o tipo penal disposto no artigo 2º, § 1º, da Lei 12.850, que se aproxima do delito de fraude processual.
Impedir é opor-se a, estorvar, não permitir, barrar, dificultar, obstar, sustar, tolher.
Embaraçar é dificultar, trazer desordem, confusão, perturbar.
A palavra investigação deve ser interpretada de forma extensiva, para abranger, não apenas, a investigação que é estritamente considerada(investigação pela policia ou pelo Parquet), como ainda o próprio processo judicial, afastando-se a incidência do artigo 344 do Código Penal, que é a regra geral.
Assim o agente pode esconder, queimar documentos que possam comprovar a prática de crime de organização criminosa prevista na Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013.
A pena in abstrato prevista é de reclusão, de 3(três) a 8(oito) anos e multa, sem prejuízo de outras correspondentes.
Trata-se de tipo penal misto alternativo, regido pelo princípio da alternatividade(a realização de um só verbo já configura o crime, pois caso as duas condutas sejam praticadas no mesmo contexto fático, estaremos diante de um mesmo crime). Pode ser sujeito qualquer pessoa, sendo o crime comum, doloso, formal.
Para o crime organizado, tão importante como planejar, financiar, é garantir a impunidade dos seus atos, que pode acontecer: matando-se testemunhas, ameaçando-as, destruindo provas documentais e periciais.
Trata-se de crime de perigo abstrato, presumido pela norma que se contenta com a prática do fato e pressupõe ser ele perigoso e sobre o qual cabe tentativa.
É crime que envolve perigo coletivo, comum, uma vez que ficam expostos ao risco os interesses jurídicos de um número indeterminado de pessoas.
É ainda crime contra a administração da justiça, independente daqueles que na societatis delinquentium vierem a ser praticados, desde que sejam punidos com penas máximas superiores a quatro anos ou revelem o caráter transnacional, havendo concurso material entre tal crime e os que vierem a ser praticados pela organização criminosa. Saliente-se que os bens protegidos no crime organizado não se limitam à paz ou a tranquilidade pública, senão a própria preservação material das instituições.
Dir-se-á que há uma verdadeira imunidade com relação ao presidente com relação aos fatos que não sejam conexos ao exercício da função.
Nessa linha de pensar, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da AP 305/QO, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 18 de dezembro de 1992, acentuou que o artigo 86, parágrafo quarto, da Constituição, ao outorgar privilégio de ordem político-funcional ao Presidente da República, exclui-o, durante a vigência de seu mandato – e por atos estranhos a seu exercício -, da possibilidade de ser ele submetido, no plano judicial, a qualquer ação persecutória do Estado. Sendo assim a cláusula de exclusão inscrita no preceito constitucional, inscrito no artigo 84, parágrafo quarto, da Constituição Federal, ao inibir a atividade do Poder Público, em sede judicial, alcança as infrações penais comuns praticados em momento anterior ao da investidura no cargo de Chefe do Poder Executivo da União, bem assim aqueles praticados durante a vigência do mandato, desde que estranhas ao oficio presidencial. Será hipótese de imunidade processual temporária.
Ficou acentuado que a norma constitucional consubstanciada no artigo 86, § 4º reclama e impõe, em função de seu caráter excepcional, exegese restrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal.
Como conclusão, tem-se que a Constituição, no artigo 86, § 4º, não consagrou o principio da irresponsabilidade penal absoluta do Presidente da República. O Chefe de Estado, nos delitos penais praticados ¨in officio¨ou cometidos ¨propter officium¨, poderá ainda que vigente o mandato presidencial, sofrer a ¨persecutio criminis¨, desde que obtida, previamente, a necessária autorização da Câmara dos Deputados.
Sobre isso, tem a posição do Ministro Celso de Mello(Inq. 927 – 9/SP, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 1, de 23 de fevereiro de 1995, pág. 3.507) quando disse:
“Os ilícitos penais cometidos em momento anterior ao da investidura do candidato eleito na Presidência da República – exatamente porque não configuram delicta in officio – também são alcançados pela norma tutelar positivada no § 4º do art. 86 da Lei Fundamental, cuja eficácia subordinante e imperativa inibe provisoriamente o exercício pelo Estado, do seu poder de persecução criminal”.
No inquérito 1.418 – 9, DJU de 8 de novembro de 2001, o Ministro Celso de Mello repetiu que:
“A cláusula de imunidade penal temporária, instituída, em caráter extraordinário, pelo art. 86, § 4\", da Constituição Federal, impede que o Presidente da República, durante a vigência de seu mandato, sofra persecução penal, por atos que se revelarem estranhos ao exercício das funções inerentes ao ofício presidencial. Doutrina. Precedentes”.
Mas é, na argumentação colhida no Inq 672 – 6 – DF, que o Ministro Celso de Mello registra:
“ Essa norma constitucional – que ostenta nítido caráter derrogatório do direito comum – reclama e impõe, em função de sua própria excepcionalidade, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal.
Sendo assim, torna-se lícito asseverar que o Presidente da República não dispõe de imunidade,quer em face de procedimentos judiciais que vissem a definir-lhe a responsabilidade civil, quer em face de procedimentos instaurados por suposta prática de infrações político-administrativas(ou impropriamente denominados crimes de responsabilidade), quer, ainda, em face de procedimentos destinados a apurar, para efeitos estritamente fiscais, a responsabilidade tributária do Chefe do Poder Executivo da União.”
Mas haveria impedimento constitucional de se proceder a qualquer investigação contra o Presidente da República por fatos anteriores ao mandato de forma a ensejar a informatio delicti?
Interessa-nos, principalmente, o trecho, naquele pronunciamento, em que o Ministro Celso de Mello conclui:
“De outro lado, impõe-se advertir que, mesmo na esfera penal, a imunidade constitucional em questão somente incide sobre os atos inerentes à persecutio criminis in judicio. Não impede, portanto, que, por iniciativa do Ministério Público, sejam ordenadas e praticadas, na fase pré-processual do procedimento investigatório, diligências de caráter instrutório destinadas a ensejar a informatio delicti e a viabilizar, no momento constitucionalmente oportuno, o ajuizamento da ação penal.”