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A opção por um tratamento sem sangue x o direito à vida.

O caso das testemunhas de Jeová e a aparente colisão dos direitos fundamentais

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Agenda 19/11/2019 às 15:34

3. DIREITO À LIBERDADE

Para possibilitar a compreensão deste assunto é importante conceituar direitos e garantias fundamentais. A Constituição Federal de 1988 instituiu o Estado Democrático de Direito, o qual objetiva assegurar a todos os brasileiros o exercício dos direitos sociais e individuais, tendo como valores supremos a liberdade, a segurança, o bem-estar, a igualdade, o desenvolvimento e a justiça, a fim de que se tenha uma sociedade fraterna e justa.

Vale referir que os direitos fundamentais são valores máximos do ordenamento jurídico maior, subordinando a sociedade como um todo, e onde se incluem o Poder Público e os particulares. Mostra-se, de tal forma, ser indissociável a relação entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais, pois até nas ordens normativas que não possuem referência expressa, a dignidade aparece na condição de valor informador de toda a ordem jurídica, desde que nela estejam reconhecidos e assegurados os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. Já as garantias fundamentais são os direitos que os cidadãos possuem para exigir do poder Pública a efetividade dos direitos fundamentais por intermédio dos meios processuais adequados para tanto. Conforme leciona Galindo (2006, p. 50),

A ideia dos direitos fundamentais está associada a prerrogativas de todos os cidadãos, enquanto que a ideia de garantias fundamentais está ligada à questão dos meios utilizáveis para fazer valer aqueles direitos, ou seja, salienta-se o caráter material dos direitos fundamentais e o caráter instrumental das garantias fundamentais Canotilho destaca que, a rigor, as garantias são também direitos, embora se saliente nelas o caráter instrumental de proteção destes últimos.

As garantias tanto seriam o direito dos cidadãos a exigir dos poderes públicos a proteção de seus direitos [...]. Para se ter uma vida digna os direitos fundamentais devem ser considerados, haja vista que são indispensáveis para a sua garantia. Observa-se que os direitos fundamentais são necessários para a concretização de uma existência centrada na dignidade da pessoa humana. 12 Aborda-se, a seguir, a concretização dos direitos fundamentais, mostrando como se trabalha a liberdade, o direito à vida, a dignidade humana e o direito à liberdade religiosa e de crença, os quais estão intrinsecamente ligados. Dessa forma, não havendo o reconhecimento dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, bem como a sua efetivação, estar-se-á negando a própria dignidade.

Ainda sobre as diferenças existentes entre direitos e garantias é importante referir que não há um consenso na doutrina sobre o tema, mas é fundamental discuti-lo haja vista a sua importância para o desenvolvimento do tema desta pesquisa. Lenza (2011, p. 863, grifos do autor) se manifesta sobre os direitos e garantias enfatizando que: Um dos primeiros estudiosos a enfrentar esse tormentoso tema foi o sempre lembrado Rui Barbosa, que, analisando a Constituição de 1891, distinguiu:

“as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos, estas as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a declaração do direito”. 9

Assim, os direitos são bens e vantagens prescritos na norma constitucional, enquanto as garantias são os instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos aludidos direitos (preventivamente) ou prontamente os repara, caso violados. Por fim, diferenciar as garantias fundamentais dos remédios constitucionais. Estes últimos são espécies do gênero garantia. Isso porque, uma vez consagrado o direito, a sua garantia nem sempre estará nas regras definidas constitucionalmente como remédios constitucionais (ex.: habeas corpus, habeas data etc.) em determinadas situações a garantia poderá estar na própria norma que assegura o direito.

Assim, direitos e garantias não se confundem, mas se complementam. Enquanto direitos são bens, vantagens que o cidadão pode usufruir, garantias são instrumentos colocados à disposição para assegurar sua concretização. No mesmo sentido, Schäfer (2001, p. 44) conceitua a diferenciação de direitos e garantias fundamentais:

Clássica e bem atual é a “contraposição dos direitos fundamentais, pela sua estrutura, pela sua natureza e pela sua função, em direitos propriamente ditos 13 ou direitos à liberdade, por um lado, e garantias, por outro lado. Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objecto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas perspectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projectam pelo nexo que possuem como os direitos; na acepção jurisdicional inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se.”10

Ou seja, o Texto Constitucional, pretendendo manter sua força normativa, estabelece institutos jurídicos cujos objetivos centram-se na proteção de seu núcleo essencial, meios através dos quais é possível tornar eficazes concretamente os direitos declarados em seu corpo, ou, ainda, proteção contra ataques a manutenção dos preceitos constitucionais. A esses instrumentos jurídicos é que se reserva a expressão “garantias dos direitos fundamentais” de um lado as declarações dos direitos; de outro lado, a estes ligados indissociavelmente, os mecanismos de sua proteção. É certo que o texto constitucional reconhece a força normativa das normas declaratórias, ou seja, dos direitos, das normas executórias e das garantias constitucionais, pois se assim não fosse o cidadão estaria à mercê da arbitrariedade do Estado. Ante as construções doutrinárias anteriormente referidas constata-se que falando em direitos, fala-se em normas de conteúdo declaratório, que são dispositivos que enumeram bens e vantagens aos cidadãos. Já as garantias são normas de conteúdo assecuratório, os chamados mecanismos constitucionais colocados à disposição do cidadão para ter o seu direito assegurado. Pode-se, ainda, referir que não existe uma divisão muito clara entre direitos e garantias fundamentais, até porque muitos direitos fundamentais são também garantias e induzem o leitor à dúvida.

Não é incomum se verificar em um mesmo dispositivo constitucional ou legal, a fixação da garantia como declaração do direito. Silva (2003, p. 185-186, grifos do autor) ressalta que: Constituição, de fato, não consigna regra que aparte as duas categorias, nem se quer adota terminologia precisa a respeito das garantias. Assim é que a rubrica do Título II enuncia: Dos direitos e garantias fundamentais [...]. O Capítulo I desse Título traz a rubrica:

“Dos direitos e deveres individuais e coletivos”, não menciona as garantias, mas boa parte dele constitui-se de garantias. Ela se vale de verbos para declarar direitos que são mais apropriados para enunciar garantias. Ou talvez melhor diríamos, ela reconhece alguns direitos, garantindo-os. Por exemplo: “é garantido o direito de resposta” (art. 5º, V). 1411

Isso por si só mostra o quão árdua é a tarefa de esclarecer o que é direito ou o que é garantia. O que se pretende dizer é que na maioria das vezes, por não se ter clareza quanto à extensão da norma, se é norma declaratória e assecuratória ao mesmo tempo, para a concretização dos direitos fundamentais há necessidade da utilização de mecanismos de proteção. Pode-se adiantar que medidas judiciais são importantes para a sua efetivação e mais ainda no caso a ser analisado neste estudo, pois dois direitos fundamentais estão em conflito.

Assim, em vista da relevância jurídica e social do tema e considerando a existência de divergências doutrinárias a respeito do assunto, impera a necessidade de compreender melhor o conflito entre o direito fundamental à vida e o direito à liberdade de crença religiosa. Na busca de um pertinente entendimento sobre o tema, necessário se faz uma análise acerca da classificação dos direitos fundamentais. Salienta-se, ainda, que o tema suscita muitos debates, razão pela qual se aborda a seguir o surgimento da cada uma das gerações/dimensões dos direitos fundamentais.

Neste sentido, sustenta Galindo (2006, p. 48-49) que: Teoricamente, há um debate acerca das múltiplas gerações ou dimensões dos direitos fundamentais, sendo o modelo tridimensional ou trigeracional o aceito pela maioria dos doutrinadores clássicos que tentam conciliar o surgimento de determinados direitos fundamentais, juntamente com as três principais correntes do pensamento jurídico, quais sejam, o positivismo normativista, o positivismo sociológico e o jusnaturalismo. Cabe referir que há uma pequena diferença em relação aos períodos históricos do surgimento dos direitos, mas que de forma alguma deixam de ter a mesma importância.

No entanto, como os direitos fundamentais fazem parte de uma construção cultural do próprio homem e que são criados de acordo com a necessidade social e história da humanidade, fala-se, também, em uma quarta geração, com surgimento no final do século XX. Importante ressaltar que as gerações/dimensões de direitos não são sucessivas e sim complementares, visto que as gerações que surgem complementam as já existentes, visando à construção de uma sociedade mais justa e livre. Bedin (2002, p. 42) refere que “a classificação proposta por T. H. Marshall (1967) é, sem sombra de dúvida, a mais aceita e valorizada pelos estudiosos na área.” Assim, sendo a sua exposição se torna imperiosa para a compreensão da evolução dos direitos, a qual se passa a descrever: 15 a) direitos civis ou direitos de primeira geração; b) direitos políticos ou direitos de segunda geração; c) direitos econômicos e sociais ou direitos de terceira geração; d) direitos de solidariedade ou direitos de quarta geração. Enfatiza-se que somente a partir do reconhecimento e da consagração dos direitos fundamentais pelas primeiras constituições é que essa divisão passou a ser relevante, visto que cada geração está vinculada às transformações sociais e políticas ocorridas nas sociedades, decorrentes de processo de desenvolvimento industrial, tecnológico e científico. Dando sequência ao assunto, o autor supracitado ressalta que: A primeira geração de direitos surgiu com as declarações de direitos de 1776 (Declaração de Virginia) e de 1789 (Declaração da França) e pode ser denominada de direitos civis ou liberdades civis clássicas. Esta geração de direitos abrange os chamados direitos negativos, ou seja, os direitos estabelecidos contra o Estado. Daí, portanto, a afirmação de Norberto Bobbio de que entre eles estão “todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reserva para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado” (Bobbio, 1992, p. 32).

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Assim, estes direitos estabelecem um marco divisório entre a esfera pública (Estado) e a esfera privada (sociedade civil). Esta distinção entre a esfera pública e a esfera privada – é bom ressaltar – é uma das características fundamentais da sociedade moderna, e é a partir dela que se estrutura o pensamento liberal e o pensamento democrático. Estes direitos de primeira geração, por outro lado, são tão importantes que Claude Lefort chegou a afirmar que eles constituem a pedra de fundação da democracia moderna e que, portanto, “onde sofrem restrições todo o edifício democrático corre risco de desmoronar” (Lefort, 1991, p. 58). (BEDIN, 2002, p. 43).

Apontados os motivos que induziram o reconhecimento desses direitos pode-se afirmar que a cada momento histórico surge a necessidade de tutela dos direitos humanos, demonstrando que foi uma conquista lenta e gradativa. Com relação à evolução dos direitos fundamentais, e dando sequência à cronologia referente à evolução das gerações/dimensões dos direitos, observa-se que a segunda geração de direitos surgiu no decorrer do século 19 e engloba os direitos políticos ou as denominadas liberdades políticas (BEDIN, 2002). O autor supracitado dá sua contribuição sobre a segunda geração de direitos, afirmando que: 16 Esta segunda geração de direitos, como nos esclarece Vera Regina Pereira Andrade, se “processou na esteira das potencialidades democráticas da cidadania civil, ou seja, na esteira dos direitos civil” [...] e, como tal, acrescentaríamos, pode ser vista como desdobramento natural da primeira geração de direitos. A vinculação, mencionada no parágrafo anterior, entre direitos civis e direitos políticos, no entanto, não nos deve impedir de compreender a especificidade de cada uma dessas gerações de direitos.

As primeiras como vêm, se caracteriza ou se distingue pelo fato de os direitos por ela abrangidos serem considerados direitos negativos, ou seja, direitos estabelecidos contra o Estado. A segunda geração de direitos, por outro lado, se caracteriza ou se distingue pelos fatos de os direitos por ela compreendidos serem considerados direitos positivos, isto é, direitos de participar do Estado. Este deslocamento, de “contra o Estado” para “participar no Estado”, é importantíssimo, pois nos indica o surgimento de uma nova perspectiva da liberdade. Esta deixa de ser pensado exclusivamente de forma negativa, como não impedimento, para ser compreendida de forma positiva, como autonomia. (BEDIN, 2002, p. 56). A partir dessa segunda geração evidencia-se que o cidadão pode ser participante da vida do Estado e projetar a sua cidadania política e social, englobando as chamadas liberdades socais, incluindo-se aí a liberdade de sindicalização, do direito de greve, entre outros. Na mesma linha de raciocínio, Bedin (2002) relata que a terceira geração de direitos surgiu no século 20, mais acentuadamente na segunda década, tendo sido influenciada pela Constituição de Weimar, de 1923 (Alemanha) e a Constituição Mexicana, de 1917 (México).

Sobre isso esclarece que: Esta terceira geração de direitos compreende os chamados direitos de créditos, ou seja, direitos que tornam o Estado devedor dos indivíduos, particularmente dos individuas trabalhadores e dos indivíduos marginalizados, no que se refere à obrigação de realizar ações concretas, visando a garantir-lhes um mínimo de igualdade e de bem-estar social. Estes direitos, portanto, não são direitos estabelecidos “contra o Estado” ou direitos de “particular no estado”, mas sim direitos e garantidos “através ou por meio do Estado”. Assim, não se trata de um novo deslocamento da noção de liberdade, por exemplo, como vimos, de não impedimento para a autonomia, mas sim da revitalização do princípio da igualdade. Por isto, podemos dizer com muita tranquilidade que esta nova geração de direitos representa não uma herança do liberalismo ou do pensamento democrático, como no caso das duas primeiras gerações de direitos, mas sim “um legado do socialismo” (Lafer, 1988, p. 127). (BEDIN, 2002, p. 62).

Diante disso parece salutar não deixar de mencionar o que Dallari (2004) menciona sobre os direitos fundamentais, haja vista que se encaixa de forma muito adequada ao que se 17 deseja abordar no próximo item sobre o conflito entre direitos fundamentais, mais especificamente, o direito à vida e à liberdade religiosa. O autor afirma que: A expressão direitos humanos é uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida.

Todos os seres humanos devem ter asseguradas, desde o nascimento, as condições mínimas necessárias param se tornar úteis a humanidade, como também devem ter a possibilidade de receber os benefícios que a vida em sociedade pode proporcionar. Esse conjunto de condições e de possibilidades associa as características naturais dos seres humanos, a capacidade natural de cada pessoa e os meios de que a pessoa pode valer-se como resultado da organização social. É a esse conjunto que se dá o nome de direitos humanos. Para entendermos melhor o que significa direitos humano, basta dizer que tais direitos correspondem à necessidade essencial da pessoa humana. Trata-se daquela necessidade que são iguais para todos os seres humanos, e que devem ser atendidas para que a pessoa possa viver com dignidade que deve ser assegurada a todas as pessoas. Assim, por exemplo, a vida é um direito humano fundamental, porque sem ela a pessoa não existe.

Então a preservação da vida é uma necessidade de todas as pessoas humanas. Mas, observando como são e como vivem os seres humanos, vamos percebendo a existência de outras necessidades que são também fundamentais, como a alimentação, a saúde, e tantas outras coisas. (DALLARI, 2004, p. 12, grifos do autor). Neste contexto significa dizer que os direitos fundamentais têm sua fundamentabilidade material centrada na dignidade da pessoa humana, que sem ela não vive, sobrevive ou convive na sociedade. No entanto, a questão que emerge como problemática reside no fato de os direitos fundamentais, muitas vezes, entrarem em colisão e revelarem a dificuldade de se reconhecer a nota de fundamentabilidade de um direito, notadamente, quando novos direitos estão sendo registrados e em vias de serem declarados como fundamentais, de modo solene, como o direito ao turismo e o direito ao desarmamento, conforme aduz Nunes (2007).

A respeito disso, Alston (apud NUNES, 2007, p. 36-37) atenta para “a tendência de a Organização das Nações Unidas e de outros organismos internacionais proclamarem inúmeros direitos, ditos fundamentais, sem a observância de quaisquer critérios objetivos.” Nesse diapasão, observa-se, segundo Ferreira Filho (2009, p. 35), que os direitos humanos ou ditos fundamentais devem “refletir um valor social fundamental importante, ser relevante, inevitavelmente em grau variável num mundo de diferentes sistemas de valor” e 18 desta forma serem reconhecidos pela comunidade jurídica e efetivados pelo poderes estatais, incluindo-se entre eles a liberdade religiosa e o direito à vida. Ambos apresentam-se como fundamentais e decorrentes de princípios constitucionais. 1.1 A liberdade e a legalidade como princípios fundamentais Em razão do entendimento de que os direitos englobam tanto os direitos fundamentais quanto os individuais, com toda uma nova série de prerrogativas e garantias que buscam assegurar o exercício da cidadania plena, entendida em sua conceituação mais ampla, é necessário explicitar o que significa liberdade e legalidade como princípios fundamentais e assim compreendê-los no contexto desta pesquisa. Conforme Adão (1999, p. 1-2, grifo do autor), Destaque importante, no campo dos direitos fundamentais individuais, era, e ainda é, prestado ao direito de liberdade. As teorias que se prestam a apresentar o conteúdo filosófico da liberdade são inúmeras. Surge, este direito individual, principalmente, como forma de libertar o homem das amarras do estado absolutista.

A esfera individual não mais poderia ser restringida pelo Estado de forma deliberada e absoluta. Destaca-se que o direito de liberdade nada mais é do que reconhecimento de que o indivíduo possui autonomia de vontade e esta se manifesta na possibilidade de querer ou não alguma coisa. Importante destacar, também, que a “liberdade individual” e a “autoridade estatal” precisam manter-se em constante equilíbrio, haja vista que a manutenção de ambas sem oscilações que causem desestabilização das relações é fundamental para o Estado Democrático de Direito. Sustenta Adão (1999, p. 1-2, grifo do autor) que o conceito de liberdade não é absoluto, não implica em ausência de coação. Liberdade consiste na ausência de coação anormal, ilegítima e imoral. Daí concluir-se que somente a lei geral estatal pode restringi-la, e assim mesmo devendo aquela ser elaborada segundo regras preestabelecidas e aceitas pela coletividade que busca regular. A lei limitadora do conteúdo da liberdade individual precisa ser normal, moral e legítima, no sentido de ser consentida por aqueles que a liberdade restringe. 19 O direito à liberdade não é absoluto, mas não se pode esquecer que para o ser humano se considerar livre é indispensável que os demais respeitem a sua liberdade. É evidente, porém, que essa liberdade está vinculada ao princípio da legalidade. Observa-se, portanto, que não há como desvincular a liberdade do princípio basilar do Estado Democrático de Direito, qual seja, do princípio da legalidade, sendo que baseado na lei o cidadão pode garantir/assegurar seus direitos. Assevera Adão (1999, p. 1, grifo do autor) que: Na Constituição Federal brasileira de 1988, percebe-se esta ligação no artigo 5 º , inciso II, que menciona que: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei.” A liberdade somente poderia ser limitada pela lei. Esta forma de considerar-se a legalidade frente à liberdade é baseada em um conteúdo negativo, sendo a liberdade o conceito geral e a restrição da lei a exceção. Não há uma relação no sentido de poderes fazer tudo o que a lei permite, mas de poder-se fazer tudo, exceto o que a lei expressamente proíbe.

Assim, infere-se que não há como dissociar o princípio da liberdade do princípio da legalidade, ambos se complementam, ainda mais quando se está diante de flagrante desrespeito à vida, por exemplo, no caso de uma pessoa negar-se a realizar um procedimento de transfusão de sangue ou tratamento médico que contrarie seus princípios éticos e religiosos alegando que a liberdade é um princípio e ao mesmo tempo um direito inerente ao ser humano. E, o direito de escolha faz parte deste grupo. Ademais, torna-se imperioso frisar que a CF/88, no art. 5º, inc. II, como já mencionado, deixa muito claro que “ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei.” Então, questiona-se: como resolver o conflito existente entre dois direitos fundamentais? Sabe-se que a vida é um direito inviolável e fundamental (grifo nosso) e que a liberdade religiosa para algumas pessoas, no caso das Testemunhas de Jeová, apresenta um valor mais elevado que a própria vida, quando se referem à renúncia de sua liberdade de consciência e fé.

Direito à Liberdade Individual

A liberdade de cada pessoa é essencial para se ter uma vida plenamente satisfatória. Quando alguém não possui a sua própria liberdade, ela não consegue se desenvolver como pessoa. A liberdade de se expressar, a liberdade de pensamento e de ação é fundamental para qualquer um que seja considerando ser humanos vivo, desde que tenha nascido.

Se alguém é impedido de pensar e de agir conforme o seu pensamento, sendo obrigado a agir de acordo com ideias diferentes as suas, isso causa um grande mal estar. Péssimo mesmo é quando certa pessoa pensa de uma forma correta sobre determinado assunto, mas é obrigada a pensar de uma forma errada por imposição de outros.

Existe no mundo um padrão sobre o que é pensar da forma correta sobre todos os assuntos. Porém, há muitas pessoas que pensam diferente dessa forma pré-estabelecida pela sociedade. É aí que entra a liberdade individual de cada um. E essa liberdade deve ser respeitada (desde que não represente uma ameaça a própria pessoa que deseja ter essa liberdade nem para as pessoas em sua volta). Principalmente quando a questão é de comportamento pessoal às ideias sobre o que é certo e o que é errado diferem muito.

Existem padrões de comportamento estabelecidos. Mas nem todos seguem tais padrões. Julgar tais pessoas que pensam e agem de forma diferente da tradicional como "anormais" ou até "insanas" muitas vezes é algo bastante injusto e deve-se ter muita cautela ao tomar uma posição dessas, contra a própria pessoa humana em atuais consciências.

Se as conclusões de alguém sobre como se deve agir quanto ao comportamento em sociedade são contrárias as usuais, pode-se saber se esse alguém está certo ou errado, de acordo com as suas atitudes na vida prática. Por tudo isso, é muito difícil estabelecer normas, costumes e valores para uma sociedade como um todo, pois cada um tem a sua própria maneira de se comportar. Todos têm direito á liberdade de pensamento e de ação. Basta saber usar essa liberdade para se tornar uma pessoa que mereça ser respeitada, mesmo apesar das diferenças.

Direito à Liberdade Religiosa

Não obstante seja, hodiernamente, um direito de nítida feição constitucional, a liberdade religiosa nem sempre foi reconhecida como direito fundamental a ser gozado pelos cidadãos brasileiros.

No Brasil Imperial, que durou pouco menos de um século, levando-se em conta o Período Regencial presenciado entre o Primeiro e Segundo Reinados. A Carta Política de 1824, outorgada por D. Pedro I após a dissolução da Assembleia Constituinte, foi bem clara, ao prever no seu art. 5º que versava: “A religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo.”

Como se depreende do dispositivo legal, o Império adotou como religião oficial o catolicismo, em que pese tenha mostrado certo grau de tolerância com os demais cultos religiosos, desde que celebrados de maneira particular, de forma a não afetar a ordem pública vigente.

Tal paradigma é finalmente rompido com a queda da Monarquia e consequente Proclamação da República, tendo sido promulgada, nesta ocasião (1981), a primeira Constituição Republicana que se tem nota da então incipiente história brasileira. Tal diploma, rechaçando veementemente os precedentes históricos, institui, pela primeira vez, a liberdade religiosa no Brasil, mormente no que toca aos direitos individuais dos cidadãos, como se observa do seu art. 72 § 3º, in verbis: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.”

Neste diapasão, as cartas que sucederam a Constituição Republicana de 1981 seguiram o mesmo caminho trilhado pelo constituinte daquela época, garantido o direito à liberdade religiosa a todos os cidadãos residentes no país, aniquilando por completo a realidade imperial, donde Estado e Igreja confundiam-se como um só ente.

O direito à liberdade religiosa atinge o seu grau máximo de proteção com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, tendo sido o mesmo elevado à condição de direito fundamental, e, por conseguinte, cláusula pétrea, com previsão expressa no rol de garantias do art. 5º deste diploma.

Interessante apontar que, além de ser garantida como direito individual dos cidadãos, a liberdade religiosa também é protegida pela atual Lei Maior em outras facetas, merecendo destaque no sistema tributário (art. 150, VI, “b”) ou mesmo na ordem social (art. 195, § 7º, por não citar outros).

Todavia, em razão do corte epistemológico a que se propõe o presente trabalho, urge reter a atenção para o direito à liberdade religiosa como garantia individual, de modo a explanar qual o seu grau de ingerência e importância em eventuais conflitos com outros direitos individuas de ordem constitucional, como o direito à vida.

Pois bem. Mister faz-se, nesse sentido, analisar o teor dos incisos VI, VII e VIII da Carta Magna de 1988, os quais são transcritos ipsis literis:

Art. 5º, VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias.

Art. 5º, VII: é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.

Art. 5º, VIII: ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.12

O primeiro dos incisos (VI) refere-se à liberdade de culto e de crenças, assegurada a todos, independentemente do segmento religioso que se identifiquem. Percebe-se, da leitura do dispositivo, que se trata de norma constitucional de eficácia relativa. Contudo, não existindo, até o momento, legislação complementar que trate da matéria, o exercício desta liberdade se dá de forma plena, tendo como único óbice, como não poderia deixar de ser, a observância de outros direitos e garantias fundamentais.

Igualmente, tal dispositivo de forma alguma obriga que o indivíduo adote esta ou aquela crença ou religião. Ao contrário, tal liberdade pode ainda ser interpretada no sentido de não se crer em absolutamente nada.

No tocante ao inciso VII, pode-se perceber o cuidado do legislador constituinte em estender o direito de assistência religiosa também àqueles que se encontra em entidades civis ou militares de internação coletiva, não mostrando preferência por religião específica.

Em outras palavras, um indivíduo que cumpre pena de detenção em presídio terá o direito à assistência religiosa, seja qual for a sua crença, na medida em que a sua condição temporária de detento não é, por si só, suficiente para impedir que continue a praticar os seus ritos. Ao Estado, por sua vez, é defeso optar por uma religião específica ao prestar essa assistência de ordem constitucional.

Finalmente, o inciso VIII trata da conhecida escusa de consciência. Nas palavras de Manoel Jorge Silva Neto (2008, p. 121): “É o direito reconhecido ao objetor de não prestar o serviço militar nem engajar-se no caso de convocação para a guerra, sob o fundamento de que a atividade marcial fere as suas condições religiosas ou filosóficas.”.

Em que pese o reconhecimento desta garantia, o dito objetor não está eximido de cumprir deveres legais, devendo o Estado fixar prestação alternativa para que seja cumprida.

Fica analisado, pois, o direito constitucional à liberdade religiosa, bem como os seus desdobramentos previstos na Constituição Federal. Passa-se agora, dando continuidade ao trabalho, a tecer algumas considerações acerca do método da ponderação de interesses, o qual servirá para solucionar conflitos práticos quando entram em rota de colisão dois direitos fundamentais.

Especial atenção deve ser conferida ao conflito entre o direito à vida e à liberdade religiosa, pois a tensão entre ambos mostra-se plena de aplicação no cotidiano, mormente no que concerne ao procedimento de transfusão de sangue realizados em testemunhas de Jeová.

Direito à Vida

Para atingir o cerne da discussão, qual seja, a contraposição entre o direito à vida e o direito à liberdade religiosa, é necessário traçar preliminarmente o conceito e limites de cada um destes, para que assim se possa obter visualização adequada para a resolução do conflito.

Em verdade, a discussão acerca do caráter absoluto do direito à vida possui estreita relação com a dicotomia entre direito público e direito privado. A revolução francesa, no século XVIII, deu surgimento ao chamado Estado Liberal. O poder do Estado foi limitado e os indivíduos gozavam de uma liberdade jamais vista, pois a interferência do poder público na vida em sociedade era mínima. O direito privado, positivado nas primeiras codificações, primava pela proteção à autonomia.

Com o advento da revolução industrial esse paradigma começou a se transformar. A percepção de que a mudança era premente surgiu com a exploração incessante dos trabalhadores nas fábricas, principalmente na Inglaterra, e com o consequente aumento da desigualdade social em toda a Europa. O Estado começa, então, a retomar seu caráter intervencionista e a autonomia era mitigada em prol do interesse público. As constituições se tornaram a base dos regimes jurídicos, ocorrendo o que foi chamado de constitucionalização do direito civil. O direito à vida se tornou um dos princípios basilares das constituições seguintes e a sua proteção era justificada em virtude do interesse público.

De acordo com a Constituição Federal de 1988, o direito à vida é inviolável e indisponível, daí que, apesar de ser titularidade por todos, ninguém possui direito sobre ele. É por isso que para parte da doutrina, como Roberta Kaufmann, o direito à vida deverá prevalecer sobre a liberdade religiosa, como no caso de um paciente que busca atendimento em um hospital público (2010, p, 21). Contudo, a jurisprudência pátria já começa a se pronunciar de forma contrária a esse entendimento, mitigando o direito à vida em prol da dignidade do sujeito que não se submete à transfusão de sangue. Nesse sentido, acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial. Tratamento médico que, embora pretenda a preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexistência do direito estatal de "salvar a pessoa dela própria", quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas. Agravo Provido.

(Agravo de Instrumento 70032799041, 12ª Câmara Cível, TJ/RS, Relator: Cláudio Baldino Maciel, Julgado em: 06/05/2010)13

A Constituição Federal é a lei maior do ordenamento jurídico brasileiro, e deve ser interpretado de maneira a maximizar a eficácia de proteção ao catálogo de direitos fundamentais, o que inclui a liberdade de escolha do cidadão.

Não se pode negar, ademais, a grande importância do direito à vida. É por essa razão que cresce na doutrina uma corrente intermediária, que defende que o direito à vida deverá prevalecer apenas nos casos extremos quando, por exemplo, a transfusão de sangue é o único recurso seguro para salvar a vida da testemunha de Jeová (SÁ, 2010). Enquanto houver alternativas à transfusão, o direito à liberdade religiosa deverá prevalecer. Portanto, a inviolabilidade do direito à vida deve ser mitigada, consoante a necessidade de preservar o direito à escolha ou autonomia dos indivíduos.

Nesse tocante, trecho de parecer do CREMEB:

Se não há iminente perigo de vida, o médico atenderá a vontade do paciente ou de seus familiares. Ao contrário, se estamos diante de iminente perigo de vida do paciente e o procedimento se impuser, é óbvio que nenhuma falta ética estará o médico cometendo face ao seu Código de Profissional de Medicina. (CREMEB, 2004, p. 3)14

Existe também a possibilidade de que, caso o paciente seja plenamente capaz, poderá recusar a transfusão mesmo que seja o único recurso que o médico tenha pra lhe salvar a vida. Essa tendência está presente na jurisprudência internacional. No Brasil, ainda prevalece o direito à vida em detrimento da liberdade religiosa.

Sobre a autora
Hellen Flavia Santos

Possui graduação em Direito pela Faculdade Pitágoras (2016). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito de Família e Criminal. Aperfeiçoamento Instituto Pedagógico de Minas Gerais em Direito Trabalho. Especialização Instituto Pedagógico de Minas Gerais em Direito Administrativo.

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