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Um embuste chamado democracia

Agenda 07/01/2006 às 00:00

- És um corrupto! Tu, um devasso! Tu, um patife! Ratos, eis o que sois todos vós!

É Cromwelll, indignado, por quando da dissolução do Parlamento inglês, designando a um e outro, e a todos, ao expulsá-los – coisa dos idos do século XVII.

Os Cromwells dos tempos cibernéticos hoje manifestam a mesma indignação. Passados trezentos anos, ingressamos em um novo milênio, e nada mudou.

Delete. Mudou. Para pior. Os ratos voltaram mais astutos e mais fortes, e se fizeram donos do Parlamento, cúmplices do Estado e donos do país.

Cromwell, a quem ainda devemos o merecido tributo pelo progresso político da Inglaterra, pelas liberdades e contra a tirania, viveu o seu sonho republicano, efêmero enquanto durou. Seu corpo, com a restauração do império, foi desenterrado pelos monarquistas, que, em júbilo, encenaram o seu enforcamento, e, desde então têm procurado, em vão, apagar a imagem do verdadeiro artífice da grandeza britânica. Sórdida campanha que, infelizmente, prevalece nos tempos hodiernos, maculando-o pelas perseguições sangrentas aos irlandeses católicos e pelo recurso à Ditadura, tentando esconder que os poucos anos de governo desse herói correspondem a duzentos anos de reinado de parasitas reais, em termos de desenvolvimento, honestidade, organização e supremacia. [1 – VASCONCELOS, J. Democracia no Terceiro Milênio. Nobel: São Paulo, 2001.].

En passant, recordo Oliver Cromwell. E o faço propositadamente, até porque a Inglaterra vive sob uma farsa – a falsa monarquia parlamentarista. Na verdade, a caterva de Buckingham reúne os bobos da Corte, a da Câmara dos Lordes "engoliu" a dos Comuns, e o Primeiro Ministro, ao invés de parlamentarismo, impõe, sob o manto deste, uma ditadura nos limites da sua vontade e com o aval da conivência privilegiada dos "representantes do povo".

Fui a Cromwell porque ele é o ícone do destruidor de corruptos, e inimigo mortal da corrupção, principalmente da corrupção parlamentar. God save Cromwell! Não só de mais Jesus, mas também de mais Cromwell – eis o que precisa o a mundo, mas ambos vomitariam se baixassem à Terra e ver que o hodierno é feito de ódio, de materialismo, de roubalheira, de espoliação, de exclusão, de genocídios pelas armas ou pela fome ou pela doença.

Corrupção parlamentar. Boodling, em inglês, é o verbete que a identifica no dicionário da Ciência Política. Brasília é a capital da boodling nacional. Mas há sucursais estaduais e municipais dessa corrupção institucionalizada de fato, o pancismo corporativo de espertalhões sorridentes e intocáveis. Eles podem caluniar, e a lei os beneficia quando reagem às críticas mais ácidas por parte da mídia.

Mas entremos rápidos no tema: democracia representativa. Primeiro, ela não é democracia. Segundo, sequer é representativa. Eleito por ele, o Parlamento, aqui, ali ou alhures, não é representante do cidadão, mas das vontades individuais do eleito, e dos interesses sacrossantos dos seus apadrinhadores.

O Parlamento é um consórcio de oportunistas e facilitadores. Coisas do liberalismo neokantiano, que vê na democracia representativa parlamentar o poder supremo. A vontade do Parlamento está acima da dos cidadãos, que devem permanecer silentes em relação aos comandos gerais emanados pelos ilustres Senhores das Alianças.

Grande pensador, Kant, o Immanuel, era um admirador do mundo, mas sequer conheceu o seu país. Era cosmopolita sem ter saído de Koenigsberg. Só o fato de defender uma democracia em que temos cidadãos ativos – que podem fazer tudo, inclusive votar e ser votado – e os passivos – empregados, mulheres, os não-proprietários, que não podem fazer nada, a não ser obedecer, ca-la-dos, mu-dos, sur-dos – já nos permite delinear o caráter do antiliberal autor de Crítica à razão pura. Um autêntico salaud, diria, crítico e com pura razão, o bom francês, também très révolter com as artimanhas dos não menos não-nobres e nada pobres legisladores de França.

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Não bastasse, o facundo, movido pela espórtula da aristocracia, dá-se à endrômena, fazendo do cidadão passivo um servil ao ser vil – o nobre com os seus privilégios constitucionais. O meu saudoso mestre Bobbio já mo havia advertido: "Não se encante com Kant".

Kant, na verdade, (e aqui fazemos a conta à ré, de frente para trás) é uma equação resultante de duas incógnitas, ou seja: Hobbes + Locke = Kant. Em síntese, um perverso neocontratualista. Após afirmar que a soberania pertence ao povo, na realidade ele nega a este o exercício de tal, pois a restringe a apenas uma parte do conjunto da sociedade.

O monge alemão explicita a relação intrínseca entre propriedade e liberdade: só é livre quem for proprietário – e, in casu, trata-se essencialmente da propriedade da terra, quer para Kant, quer para Locke. Linhas gerais: a relação indissociável entre propriedade e liberdade é justamente a essência do liberalismo, que, aliás, é o que vivemos neste patropi.

Rousseau, o último dos contratualistas, defendia a indelegabilidade da soberania popular. Foi enfático: "O povo não deve delegar o seu poder, o povo nunca deve transferir sua soberania, nem que seja por um segundo".

Jean-Jacques matizava, ideologicamente, a experiência da democracia de Genebra no pós-calvinismo. A democracia de uma pequena cidade, uma Cidade-Estado como havia sido Atenas.

Uma pequena cidade em assembléia para decidir seus destinos podia ser fácil. Mas, em um país, um povo não pode ficar sempre reunido em assembléia, pois, até mesmo geograficamente, há uma dificuldade prática, real. Tal democracia é a utopia de Rousseau.

Não foi fácil ao genebrino declarar que "a democracia da qual eu falo não existe, nunca existiu e, talvez, nunca existirá; também essa condição natural a que devemos aspirar – a do homem que não cede a sua soberania, a sua liberdade – não existe, talvez nunca tenha existido, e nunca vai existir. É um objetivo ideal para o qual devemos tender".

Rousseau percebe o elemento utópico presente em sua concepção. É quando ganha corpo a tese de Charles Secondat, o Barão de Montesquieu: a tripartição do poder, eliminando o absolutismo do monarca, dando autonomia ao Parlamento para a elaboração das leis, e idem ao Judiciário, para aplicá-las.

O Parlamento como instrumento de representação popular. Montesquieu também não sabia o que estava fazendo. E tudo vai desaguar na Revolução Francesa: igualdade, fraternidade e liberdade, eis o lema.

E o povo é usado, o rei deposto e guilhotinado. O poviléu se vinga dos áulicos palacianos. Julga e manda para a lâmina milhares de senhores e senhoras da aristocracia Mas, de repente, não mais que de repente, ei-lo submisso à burguesia, que, de camarote, a tudo assistiu e de tudo tomou posse, sem a necessidade de lavar as mãos, pois nem teve de usá-las.

Há desinformados – doutores e diplomados no rol – a afirmar que tudo começou com Maquiavel. Permitam-me os leitores que eu vá em defesa de meu patrício, pois culpa alguma cabe ao florentino quanto à vilania mundial da insaciável caterva parlamentar. Tem tudo a ver com Platão e Sócrates a "canalhocracia" da nova ordem mundial que domina nas repúblicas, incluindo a nossa – permito-me à ênfase, até porque aos que não se dão ao respeito aplica-se o vernáculo do establishment, sem mesuras e protocolos.

No mais, só Mickey Mouse é ficção.

Sobre o autor
Luiz Carlos Bordoni

jornalista, radialista e cientista político em Goiânia (GO), bacharelando em Direito pela UNIP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORDONI, Luiz Carlos. Um embuste chamado democracia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 918, 7 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7800. Acesso em: 18 dez. 2024.

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