UMA PROPOSTA DE REVISÃO DA EXPRESSÃO MODERAÇÃO NA LEGÍTIMA DEFESA
Rogério Tadeu Romano
I – O FATO
Segundo informou a Folha de São Paulo, em seu site no dia 4 de dezembro do corrente ano, o presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta quarta-feira (4) que pretende enviar ao Poder Legislativo projeto de lei que altera a definição de legítima defesa no Código Penal.
Na entrada do Palácio do Alvorada, onde parou para cumprimentar um grupo de eleitores, ele disse que a ideia é retirar o termo "moderadamente" do artigo 25. Para ele, a palavra não faz sentido.
A redação atual define que "entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem".
"O que é moderada? No sufoco, você atira em cima do cara. O cara está vindo em cima de você e você atira dentro da sua casa. Então, não tem de ter moderada. Se entrou na sua casa, você vai atirar. O que significa moderado, meu Deus?", questionou.
Infelizmente o presidente da República, além de seu desconhecimento de direito penal, por não ter uma formação humanista, acaba por fazer mais uma apologia da violência.
II – A LEGÍTIMA DEFESA
Exige-se para a legítima defesa:
- repulsa a agressão atual ou iminente e injusta;
- defesa de direito próprio ou alheio;
- emprego moderado de meios necessários;
- orientação de ânimo do agente no sentido de praticar atos defensivos.
São necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão. Já decidiu o Supremo Tribunal Federal que o modo de repelir a agressão também pode influir decisivamente na caracterização do elemento em exame(RTJ 85/475-7). Nessa linha de pensar, o emprego de arma de fogo não para matar, mas para ferir ou para amedrontar(tiro fora do alvo) poderia ser considerado, em certas circunstâncias, o meio disponível, menos lesivo, eficaz e, portanto, necessário. Tal solução merece sérios debates numa sociedade que precisa combater o uso de armas.
Há a análise da questão da proporcionalidade, na legítima defesa
Nelson Hungria(Comentários ao código penal, 3ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1955, volume I, t. 2, pág. 298 a 299).nos dá uma conclusão, a nosso ver radical, data vênia, quando embora entendendo que, no caso do roubo de frutas, se bastar a ameaça de arma, estaria excluída a legitimidade de disparas no ladrão. Destaca que, por mínimo que seja o mal ameaçado ou por mais modesto que seja o direito defendido, não há desconhecer a legítima defesa, se a maior gravidade da reação derivou da indisponibilidade de outro meio menos prejudicial, e posto que não tenha havido imoderação no seu emprego. Assim, para ele, à luz da doutrina alemã, abatendo o chamado sentimentalismo latino, qualquer bem jurídico pode ser defendido mesmo com a morte do agressor, se não há outro remédio para salvá-lo. Ora, data vênia, é brutal tal ponto de vista, pois a proporcionalidade da defesa deve ser condicionada não apenas a gravidade da agressão, mas ainda a relevância do bem ou interesse que se defende.
Ora, data vênia, não há direitos absolutos, pois não há falar em legítima defesa abusiva.
Pode-se falar em excesso doloso ou culposo na legítima defesa, assim como também há no estado de necessidade.
Aqui vem a ideia de excesso culposo, resultante de uma imprudente falta de compreensão, falta de contensão por parte do agente, quando isso era possível nas circunstâncias para evitar um resultado mais grave do que o necessário a defesa do bem agredido, que viria de um estado emotivo causado pela repulsa ao ato agressivo.
Esse estado emotivo pode-nos trazer uma imaginação em nosso subconsciente de situações que não condizem com a realidade fática.
É conhecido o surrado exemplo quando no auge de uma discussão áspera entre duas pessoas, uma delas leve a mão ao bolso, e a outra, supondo que ela ia sacar uma arma, ou coisa que o valha, atira primeiro, mas depois se descobre que a vítima estava desarmada. É a chamada legítima defesa putativa, que está inserida entre as discriminantes putativas, previstas no artigo 20, § 1º, do Código Penal.
Ainda é devido trazer outro exemplo quando certa pessoa, tarde da noite, caminha por uma rua mal iluminada, em situação que já seria bastante a preocupar, diante de assassinatos recentes que ali surgiram, ao desenvolver sua caminhada, encontra uma pessoa que caminhava em sua direção, e que tinha feições de um criminoso que se dava como perigoso assassino. O agente, em estado de tensão, saca a sua arma e dispara um tiro fatal contra o suposto agressor. Ao seu aproximar se choca ao verificar que a pessoa atingida, na verdade, era um conhecido, que procurava a sua ajuda.
Na doutrina, para a chamada teoria limitada da culpabilidade, nota-se que as discriminantes putativas são divididas entre as que ocorrem em relação a pressuposto fático de uma excludente de ilicitude(para uns, erro do tipo permisivo) e quando relacionadas ao limite ou a existência de uma causa de justificação(erro de proibição indireto). Com o devido respeito penso que o erro na discriminante putativa é o erro de proibição.
Para aquela teoria limitada da culpabilidade, no erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação, ocorre um erro do tipo permissivo. No erro sobre a existência ou sobre os limites de uma causa de justificação, configura-se o erro de proibição, com a exclusão da culpabilidade.
Entre as discriminantes putativas, além da legitima defesa putativa, existe ainda o estado de necessidade putativo, o exercício regular de direito putativo e o estrito cumprimento do dever legal putativo.
O quadro de legítima defesa putativa assim foi conceituada por Nelson Hungria:
¨Dá-se a legitima defesa putativa quando alguém erroneamente se julga em face de uma agressão actual e injusta, e, portanto, legalmente autorizado à reação que empreende(A legítima defesa putativa, Rio de Janeiro Livraria Jacinto, 1936).
O agente se imagina na presença de uma causa, que se realmente existisse, justificaria sua conduta, ou seja, uma causa de justificação.
Aquele que reage a uma suposta agressão, que se mostrou real apenas em sua imaginação, e que se existisse tornaria a sua ação legítima, age em legítima defesa putativa.
Repete-se o exemplo do agente que supõe que se encontra em meio a um incêndio, dada a quantidade de fumaça e os gritos dos circunstantes, ferindo alguém para safar-se do local e se apura que não havia incêndio(estado de necessidade putativo).
De outro modo, é conhecido o exemplo do policial, que munido de um mandado de prisão, recolhe à prisão A, supondo que este é B, irmão gênio daquele e objeto da ordem judicial ( estrito cumprimento do dever legal putativo).
Certo que há, no direito penal, o conceito de crime putativo ou crime imaginário, que se distancia da tentativa inidônea(crime impossível).
Adota-se o entendimento de que a lei penal adotou a chamada teoria objetiva na distinção entre inidoneidade absoluta e inidoneidade relativa de meios e de objeto. A tentativa absolutamente inidônea fica impune.
Por sua vez, o crime imaginário é um fato que o agente julga punível, mas que, na realidade, não é definido como crime pela lei. O crime existe apenas em sua imaginação e essa errônea opinião não bastaria para torná-lo punível. Para Aníbal Bruno(3ª edição, Rio de janeiro, Forense, 1967, tomo II, pág. 126)] haveria atipicidade, ausência de tipicidade.
Para Aníbal Bruno(Direito Penal) ainda há erro no crime putativo. O agente erra em supor criminoso o ato que pratica, na realidade não definido na lei como crime. Mas, não seria erro do agente que excluiria o tratamento penal, pois não haveria crime, porque não haveria nenhum tipo legal a que o ato praticado correspondesse. O fato na sua expressão objetiva e na sua elaboração psíquica seria totalmente estranho ao direito punitivo. Isso porque a norma proibitiva só existiria no subjetivo do agente.
Há, sem dúvida, um enorme abismo entre legítima defesa putativa e legítima defesa real. A primeira existe no conhecimento equivocado do agente em relação aos pressupostos objetivos da legítima defesa enquanto a segunda se configura com a existência concreta desses pressupostos.
Aliás, dispõe o artigo 20,§ 1º, do Código Penal: ¨É isento de pena quem, por erro, plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.¨
O agente supõe que está agindo licitamente ao imaginar que se encontram presentes os requisitos de uma das causas justificativas presentes na lei.
Estaríamos diante de um erro do tipo permissivo? Será caso de erro de proibição ou ainda um tipo intermediário?
Para isso, penso correto fazer uma divagação com relação a teoria da culpabilidade, desde a teoria normativa até a teoria finalista, para se verificar a dicotomia erro do tipo e erro de proibição.
III – A QUESTÃO DA MODERAÇÃO
Como ensinou Julio Fabbrini Mirabete(Manual de direito penal, volume I, sétima edição, pág. 177), na reação, deve o agente utilizar, moderadamente, os meios necessários para repelir a agressão atual ou iminente e injusta. Tem-se entendido que meios necessários são os que causam o menor dano indispensável a defesa do direito, já que, em princípio, a necessidade se determina de acordo com a força real da agressão(JTACrSP 44/159; 71/297; RT 434/328. Admitindo o emprego de revólver contra agressão de três pessoas, RJTJERGS 50/51).
Deve, então, o sujeito ser moderado na reação, ou seja, não ultrapassar o necessário para repeli-la. A legítima defesa, como ainda lecionou Fabbrini Mirabete(obra citada), porém, é uma reação humana e não se pode medi-la com um transferido, milimetricamente, quanto à proporcionalidade de defesa ao ataque sofrido pelo sujeito(RT 549/312, dentre outros). Aquele que se defende não pode raciocinar friamente e pesar com perfeito e incomensurável critério essa proporcionalidade, pois no estado emocional em que se encontra não pode dispor de reflexão precisa para exercer sua defesa em equipolência completa com a agressão. Não se deve fazer, portanto, rígido confronto entre o mal sofrido e o mal causado pela reação, que pode ser sensivelmente superior ao primeiro, sem que por isso seja excluída a justificatica, e sim entre os meios defensivos que o agredido tinha à sua disposição e os meios empregados, devendo a reação ser aquilatada tendo em vista as circunstâncias do caso, a personalidade do agressor, o meio ambiente etc. A defesa, pois, exercita-se desde a simples atitude de não permitir a lesão até a ofensiva violenta, dependendo das circunstâncias do fato, em razão do bem jurídico defendido e do tipo de crime em que a repulsa se enquadraria.
Assim havendo flagrante desproporção entre a ofensa e a reação, desnatura-se a legítima defesa. Haverá excesso na hipótese de responder-se a um tapa com um golpe mortal.
A moderação, como externou Guilherme de Souza Nucci(Código Penal Comentado, oitava edição, pág. 255), é a razoável proporção entre a defesa empreendida e o ataque sofrido, que merece ser apreciada no caso concreto, de modo relativo, consistindo na “medida, de meios necessários”. Se o meio fundar-se, por exemplo, no emprego da arma de fogo, a moderação basear-se-á no número de tiros necessários para deter a agressão. Não se trata de conceito rígido, admitindo-se a ampla possibilidade de aceitação uma vez que a relação de uma pessoa normal não se mede por critérios matemáticos ou científicos.
A liberdade de apreciação é grande, restando ao magistrado valer-se de todo o bom sendo peculiar à espécie a fim de não cometer injustiça.
A matéria, pois, deve ser estudada dentro dos limites hoje delimitados pelo Còdigo Penal, em sua redação dada para a parte geral, pela Lei 7.209/84.
IV – OS PERIGOS DA LICENÇA PARA MATAR
Sair disso é proporcionar o exercício da licença para matar, que é o que parece que o presidente quer.
O exemplo recente, exposto por Eliane Catanhete, em sua coluna no Estadão, intitulada Infernópolis, em 3 de dezembro de 2019, quando disse:
“Quanto menos direito à vida as comunidades, as crianças e os jovens pobres têm, mais o presidente Jair Bolsonaro defende o “excludente de ilicitude”, para livrar a cara de policiais que matam. Segundo ele, os bandidos “vão morrer na rua igual barata”.
O problema, presidente, é que nas democracias se matam bandidos apenas no último caso. E, na realidade brasileira, quem já está “morrendo igual barata” não são os bandidos, mas os filhos e filhas de pedreiros, empregadas domésticas, garis, pintores de parede. E sem o excludente de ilicitude... Com ele, a coisa vai ficar ainda mais macabra.”