A INCONSTITUCIONALIDADE DE MEDIDA PROVISÓRIA QUE ELIMINARIA O DPVAT
Rogério Tadeu Romano
I – A NATUREZA JURÍDICA DO DPVAT
Fábio Ercolani Davila, Alberto Fernando Funck Donato, Augusto Ismael Dumke, Samara Oliveira Florão, Claudionor do Prado Machado, Pedro Henrique Baiotto Noronha, Luize Graciele Giacomolli de Oliveira, Fagner Cuozzo Pias, Tamiris Ferreira dos Santos, Jonas Oliveira Severo, Enéias Cruz de Souza, Douglas Epiphanio Torme (Contratos de Seguro e suas principais espécies, Ambito Jurídico) expuseram o que segue:
“A espécie de seguro DPVAT é gênero da seguridade social, tem por fim indenizar as vítimas de acidentes causados por veículos automotores de via terrestre, no território brasileiro, sendo destinado aos danos pessoais, mas não aos materiais.
É contratado compulsoriamente, conforme o dispõe a lei 6.194/74, que em seu artigo 5° fixa responsabilidade civil objetiva do segurador, diante do cunho social deste seguro, nestes termos:
“Art. 5º O pagamento da indenização será efetuado mediante simples prova do acidente e do dano decorrente, independentemente da existência de culpa, haja ou não resseguro, abolida qualquer franquia de responsabilidade do segurado.”
Estão presentes no seguro obrigatório DPVAT elementos do contrato de seguro privado: garantia do pagamento da indenização, interesse legítimo de obter indenização por danos pessoais, risco de acidente de trânsito, prêmio pago anualmente pelos proprietários de veículos Automotores.
Além disso, o Seguro DPVAT é relevante instrumento de proteção social de cerca de 210 milhões de brasileiros, pois oferece cobertura por responsabilidade civil para todas vítimas de acidentes de trânsito em território nacional: motoristas, passageiros e pedestres.
Dos recursos arrecadados pelo DPVAT, 50% vão para a Uniãoe50% são direcionados para despesas, reservas e pagamento de indenizações às vítimas, pagamentos que são administrados pela Seguradora Líder.
Desse modo, a indenização do Seguro DPVAT tem caráter social e protege os brasileiros em casos de acidentes de trânsito, especialmente os de renda mais baixa, em um contexto de menos de 20% da frota brasileira segurada..Em 2018 foram R$ 4,669 bilhões, distribuídos da seguinte forma:a.45% (R$ 2,101 bilhões) foram usados para o financiamento do SUS;b.5% (R$ 233,5 milhões) foram destinados ao Denatran para financiamento de programas de educação no trânsito;c.50% (R$ 2,334 bilhões) foram usados para pagamentos de indenizações do DPVAT.
Nos casos de seguros gerais, havendo suicídio, o beneficiário não tem direito ao prêmio quando o segurado se suicida nos dois primeiros anos de vigência inicial do contrato, ou da recondução depois de suspenso, sendo vedadas outras formas de clausula contratual que excluam o pagamento, nos termos do artigo 798 e parágrafo único do Código Civil:
“Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado.”
Contudo, tal dispositivo não abrange o seguro em análise, DPVAT, visto que se trata de seguro especial, social, eis que a lei determina que haja apenas o sinistro e o nexo causal (que envolva o veículo automotor).”.
Observa-se, ainda, a opinião de Cavalieri Filho:
“Os riscos acarretados pela circulação de veículos são tão grandes e tão extensos que o legislador, em boa hora, estabeleceu esse tipo de seguro para garantir uma indenização mínima às vítimas de acidentes de veículos, mesmo que não haja culpa do motorista atropelador. Pode-se dizer que, a partir da Lei n. 6.194/74, esse seguro deixou de se caracterizar como seguro de responsabilidade civil do proprietário para se transformar num seguro social em que o segurado é indeterminado, só se tornando conhecido quando da ocorrência do sinistro, ou seja, quando assumir a posição de vítima de um acidente automobilístico. O proprietário do veículo, portanto, ao contrário do que ocorre no seguro de responsabilidade civil, não é o segurado, mas o estipulante do seguro em favor do terceiro. Em razão de suas características, pode-se, ainda, afirmar que não há contrato nesse seguro, mas sim uma obrigação legal; um seguro imposto por lei, de responsabilidade social, para cobrir os riscos da circulação dos veículos em geral. Tanto é assim que a indenização é devida, nos limites legais, mesmo que o acidente tenha sido provocado por veículo desconhecido ou não identificado e ainda que tenha havido culpa exclusiva da vítima. A lei n. 8.441/1992 foi ainda mais longe, incluindo entre as hipóteses em que a indenização é devida mais dois casos: veículo com seguro não realizado ou vencido, vale dizer, veículo identificado e comprovadamente sem seguro. A nossa lei, como se vê, adotou também aqui a responsabilidade fundada no risco integral. [...] Importante registrar que apenas 50% da arrecadação do DPVAT são destinados ao pagamento das indenizações, constituição de reservas e despesas operacionais. Dos 50% restantes, 45% são destinados aos SUS e 5% ao DENATRAN.” (Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª Edição. Editora Atlas. 2012. p. 161).
Veja-se, outrossim, a lição de Arnold Wald:
“[...] Não há, pois, qualquer base legal para considerar que o DPVAT não é seguro de responsabilidade civil obrigatório quando o legislador assim o concebeu e regulou, a não ser que se alegue a inconstitucionalidade da norma legal, o que evidentemente não ocorre no caso. Também, com a devida vênia, não há como aplicar, no caso, o Código de Defesa do Consumidor, pois a vítima de acidente de automóvel não é consumidor, nem usuário final, de qualquer produto ou serviços nos precisos termos da definição que consta no art. 21 da Lei n. 8.078/90. Acresce que, na realidade, a matéria é objeto de legislação no Código Civil, não havendo assim qualquer omissão ou lacuna que possa justificar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, que é anterior em mais de 10 anos à nova legislação civil que tratou expressamente do assunto.” (Wald, Arnoldo. A prescrição da ação de recebimento do seguro DPVAT. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais: RDB, v. 12. n. 46, out/dez. 2009.).
O DPVAT decorre de sua finalidade social, destinada a tutelar coletivamente o hipossuficiente, especialmente aquele pedestre que não pode arcar com a aquisição de um veículo e, por isso mesmo, está mais vulnerável em caso de acidentes..Com base nesse entendimento, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo(Embargos de Declaração: ED 2089352720098260100 SP 0208935-27.2009.8.26.0100 -Relator(a): Clóvis Castelo -Julgamento: 09/05/2011 -Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado -Publicação: 13/05/2011) assentou que tais elementos evidenciam seu caráter de contribuição social ou parafiscal, espécie do gênero tributo, a teor do art. 148 e 149 da Constituição Federal. Nesse sentido: É de se anotar que o seguro DPVAT configura espécie de contribuição social ou parafiscal (REsp n°s 68.146 e 218.418), dado o caráter impositivo de seu pagamento por parte dos proprietários dos veículos automotores, e ao fato de que, ocorrendo o sinistro, a indenização é devida, não importando se o veículo foi ou não identificado, e se havia ou não prova de contribuição para o seguro -o regime da parafiscalidade constitui meio de financiamento tanto da seguridade social (INSS), quanto para a reparação dos danos decorrentes de acidentes de veículos automotores (DPVAT). E tais elementos evidenciam o seu caráter de contribuição social ou parafiscal (espécie tributária, cf. arts. 148 e 149 da CF/88.
II – UMA MEDIDA PROVISÓRIA E A EXTINÇÃO DO DPVAT
Ocorre que o governo federal, através da Medida Provisória. no dia 11 de novembro, o extinguiu. Ele justificou o fim do seguro mediante os altos índices de fraudes e os elevados custos os operacionais. O DPVAT foi criado em 1974.
Em dez anos, o seguro foi responsável pela indenização de mais de 4,5 milhões de acidentados no trânsito brasileiro (485 mil desses casos foram fatais). Além de indenizações por mortes, o seguro também cobre gastos hospitalares e sequelas permanentes.
Nos casos de morte, o valor da indenização é de R$ 13.500 e de invalidez permanente, de R$ 135 a R$ 13.500. Já para os casos de reembolso de despesas médicas e suplementares, o teto é de R$ 2.700 por acidente.
A MP mencionada foi objeto de impugnação por meio da Adin 6.262.
O relator da ação, o ministro Edson Fachin, atendeu pedido da Rede e foi seguido por cinco colegas: Alexandre de Moraes, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber, Dias Toffoli e Luiz Fux.
Os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello rejeitaram o pedido de suspensão da MP. A ministra Cármen Lúcia não participou do julgamento. Luís Roberto Barroso declarou-se suspeito.
A matéria deveria vir por Lei Complementar. O ministro Fachin escreveu que a MP noticiada "atenta contra a cláusula de reserva de lei complementar prevista constitucionalmente" ao concordar com os argumentos da Rede, que pediu a inconstitucionalidade da extinção. Para tal assunto seria necessária a edição de lei complementar para dispor sobre o sistema financeiro. Aliás, a Constituição Federal estabelece a necessidade de edição de lei complementar no caso de Finanças Públicas, em geral(receita pública, despesa, operações de crédito e dívida pública; plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias, lei orçamentária anual, gestão patrimonial, financeira e contabilidade pública).
"Há, ao menos do que se tem do atual quadro processual, plena plausibilidade na alegação de inconstitucionalidade deduzida pela inicial [petição do partido]", afirmou o ministro.
O presidente Bolsonaro também havia extinguido o DPEM, seguro voltado a danos pessoais causados por embarcações. A decisão atinge todas as modalidades de seguros.
Ab initio, dir-se-á que a medida provisória se ressente da falta de seus requisitos constitucionais.
Tem-se do entendimento do Ministro Celso de Mello, na ADI 2.213 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 4-4-2002, P, DJ de 23-4-2004:: “A edição de medidas provisórias, pelo presidente da República, para legitimar-se juridicamente, depende, dentre outros requisitos, da estrita observância dos pressupostos constitucionais da urgência e da relevância (CF, art. 62, caput). Os pressupostos da urgência e da relevância, embora conceitos jurídicos relativamente indeterminados e fluidos, mesmo expondo-se, inicialmente, à avaliação discricionária do presidente da República, estão sujeitos, ainda que excepcionalmente, ao controle do Poder Judiciário, porque compõem a própria estrutura constitucional que disciplina as medidas provisórias, qualificando-se como requisitos legitimadores e juridicamente condicionantes do exercício, pelo chefe do Poder Executivo, da competência normativa primária que lhe foi outorgada, extraordinariamente, pela Constituição da República. (...) A possibilidade de controle jurisdicional, mesmo sendo excepcional, apoia-se na necessidade de impedir que o presidente da República, ao editar medidas provisórias, incida em excesso de poder ou em situação de manifesto abuso institucional, pois o sistema de limitação de poderes não permite que práticas governamentais abusivas venham a prevalecer sobre os postulados constitucionais que informam a concepção democrática de Poder e de Estado, especialmente naquelas hipóteses em que se registrar o exercício anômalo e arbitrário das funções estatais.”
O pressuposto da urgência admite relativa precisão conceitual. O conceito de urgência é relacional. Não existe urgência se a eficácia da disposição só puder se materializar após um lapso do processo legislativo, em algumas forma disciplinadas pela Constituição. Urgente, como disse Clèmerson Merliln Clève(Atividade Legislativa do poder executivo no estado contemporâneo e na Constituição de 1988, pág. 163), deve ser não apenas a vigência da norma editada como, igualmente, sua incidência. Por isso,não é admissível editar medida provisória para produzir efeitos apenas após o determinado lapso temporal, como avisou Pablo Santolaya Machetti.
A edição de medida provisória deve ser suficiente motivada.
José Levi Mello do Amaral Júnior destaca que “é próprio da decretação de urgência não ter âmbito temático pré-definido ou tê-lo definido de modo negativo (pela exclusão de determinadas matérias do seu campo material). Isso porque se destina a dar respostas a situações que escapam à previsibilidade — independentemente da matéria — e que exigem solução urgente” (Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo, Saraiva/Almedina, 2013, p. 1152).
Ora, se a extinção se dará apenas no próximo ano, é evidente que não há urgência. Assim, do ponto de vista objetivo, o próprio texto da medida provisória traz o elemento caracterizador da ausência de um dos requisitos constitucionais exigidos.
III – A AFRONTA ÀS REGRAS DE DIREITO FINANCEIRO
Se isso não bastasse a medida provisória atenta contra normas de direito financeiro envolvendo orçamento.
A extinção do seguro DPVAT constitui proposição legislativa que importa em renúncia de receita. Contudo, a medida provisória ora impugnada não foi acompanhada da estimativa de impacto orçamentário e 20financeiro, em flagrante descumprimento ao que dispõe o art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Há, por certo, uma renúncia financeira de forma que a MP editada não diz para onde iriam esses recursos.
De onde virão os recursos que deixarão de ser arrecadados para o SUS e para o Denatran? Não há qualquer informação quanto a isso. Em verdade, conforme já apontado anteriormente, há total dissenso entre responsabilidade fiscal e orçamentária e a Medida Provisória nº 904, pois: (i) há renúncia de receita destinada ao Sistema Único de Saúde e Denatran e, ao mesmo tempo;(ii) há aumento potencial da demanda de usuários dos sistemas de seguridade social e Sistema Único de Saúde, onerando duplamente o erário.
Ademais, não se pode alterar o orçamento sem prévia autorização legislativa, uma vez que não se pode afrontar o princípio da separação de poderes, disposto na Constituição Federal.