2 Autonomia estadual
2.1 Poder constituinte derivado decorrente
Os manuais de Direito Constitucional brasileiro há muitas décadas usam, quando vão tratar do Poder Constituinte, uma sequência regular de autores e temas. O capítulo referente passa pela lembrança ao pensamento do abade francês Sieyès[49], os contornos do exercício do Poder Constituinte, afirmando que sua falta de limites em teoria[50] não pode levar ao esquecimento das consequências que o arbítrio e a desconsideração da cultura de uma sociedade trazem na prática[51]. É a construção de um conceito liberal que, em seu surgimento no século XVIII, foi importante para garantir que o poder fosse depositado no povo e justificar a passagem do Antigo Regime para a modernidade, era a limitação do rei e do Estado perante a lei. Se todo poder emana do povo, ao povo cabe, a qualquer momento e independente de motivos anteriores[52], exercer o Poder Constituinte, alterar a política para que o Estado continue existindo para servir aos cidadãos.
Depois, os livros abordam, enquanto adentram na estrutura brasileira, a diferença entre as constituições dos entes federados menores e aquela que representa o poder soberano, que se manifesta nos atos do Poder Constituinte Originário - um fenômeno nacional e que cria um novo ordenamento jurídico para todo o Estado[53]. No Brasil, uma federação, é um acontecimento envolvendo necessariamente todos os entes federados. Aos estados e municípios, quando criam, depois disso, suas constituições e leis orgânicas, caberia apenas o exercício de autonomia, de escolhas políticas limitadas pela Constituição nacional. É o tecnicamente chamado de Poder Constituinte Derivado Decorrente, Secundário, Subordinado, de Segundo Grau ou, ainda, Estadual.
As abordagens sobre os exatos limites desse poder derivado dos estados são importantes e foram discutidas com profundidade no Brasil ao longo de décadas. Alguns trabalhos são de vários anos antes da Constituição de 1988 ser desenhada e marcaram os constituintes nacionais e estaduais. Desde os anos 1970, havia o caminho proposto em detalhes por Anna Cândida Cunha Ferraz, em sua obra "Poder Constituinte do Estado-Membro", que já existia na doutrina em defesas mais simples e recebeu a adesão de outros importantes doutrinadores da área[54]. Aos estados, nessa visão, caberia um poder constituinte genuíno. Ele era limitado, feito nos termos estabelecidos pela Constituição, mas não se afirmou que sua limitação fosse causa para que se negasse a atribuição de efetivo "poder constituinte"[55]. Em definitivo, o assunto parece se delinear para o uso do termo poder constituinte aos estados, mas até hoje há doutrina negando a possibilidade de ele ser, realmente, de maneira rigorosa, "constituinte", pois é essencialmente limitado[56].
Normativamente, algumas constituições haviam restringido muito o espaço dos entes federados menores. Um dos exemplos mais presentes para os constituintes gaúchos certamente era a Constituição de 1967, com artigo 188, que estabeleceu 60 dias para que suas normas fosse incorporadas às constituições estaduais ou seriam consideradas incorporadas automaticamente[57] - e a emenda constitucional em 1969, que, no art. 200, sequer deu prazo[58]. Houve constante resistência à norma no parlamento gaúcho, que aplicaram normas constitucionais federais em aspectos de processo legislativo, mas constantemente emendaram a Constituição estadual sem conhecer os limites materiais impostos, inovando constantemente e não tomando medidas para adaptar as normas federais de maneira sistemática quando discordavam do seu conteúdo[59].
Agora, a Constituição de 1988, no caput do artigo 25, havia estabelecido que os estados podiam se organizar com suas próprias constituições[60]. Dentre as manifestações da autonomia dos entes federados, essa era a mais relevante, e apresentava um teor não inteiramente definido de liberdade política para a organização de poderes. Foi com esse molde que trabalharam os constituintes estaduais de todo o Brasil.
Mais atualmente, o período das propostas doutrinárias sobre o tema parece ter passado, o assunto passou a ser progressivamente desenvolvido na jurisprudência constitucional, conforme o STF decidiu caso a caso quais os limites existentes, nem tanto na criação de uma resposta definitiva aos problemas e conceitos doutrinários, mas retirando do ordenamento jurídico aquelas normas que eram consideradas contrárias à Constituição.
O assunto passa ainda, em momentos, sobre o Princípio da Simetria, nunca inserido expressamente na Constituição de 1988, mas defendido em parte da doutrina como um princípio constitucional implícito. O tema é igualmente indefinido, mas vai para o caminho de que, se há o princípio, os estados deveriam seguir simetricamente os modos de organização da Constituição de 1988. Alguma alteração seria possível, mas a regra seria a simetria, uma proximidade grande. O STF adotou, ao longo do tempo, a postura de observar analiticamente a Constituição e verificar a constitucionalidade das demais normas, sem se pautar sistematicamente por essa limitação geral que a Constituição, afinal, poderia, mas não estabeleceu.
O STF, analisando individualmente, no entanto, foi farto em declarações de inconstitucionalidade na Constituição gaúcha e diversas outras. As primeiras declarações foram em meados da década de 1990 e seguem ocorrendo até hoje - trinta anos depois. Ao todo, 65 trechos da constituição foram declarados inconstitucionais no período de três décadas[61], a maior parte artigos, parágrafos e incisos em sua integralidade.
Essa possibilidade era uma preocupação dos constituintes gaúchos, apareceu desde as proposições iniciais de elaborar um roteiro de competência prévio aos trabalhos até os discursos de promulgação. Da afirmação que o texto havia respeitado as limitações[62], até críticas de que a Constituição de 1988 fora omissa em certos assuntos e inovar seu texto era um dever dos parlamentares estaduais[63]. O narrado é que a ideia de uma simples adaptação não era bem aceita entre os constituintes[64], o cuidado em respeitar a Constituição de 1988 não diminuiu a disposição em ter uma constituição própria do povo gaúcho - parte disso foi, efetivamente, desfeito pelo STF, mas a maioria das normas prevaleceu e vige atualmente.
2.2 As inovações dos constituintes do Rio Grande do Sul
Apesar das incertezas doutrinárias e preocupações com inconstitucionalidades, uma norma bastante diferente da federal foi posta em vigor. Assim, a seguir serão apresentados tópicos em que são abordadas as principais diferenças e inovações dos constituintes. A lista foi criada a partir da observação da Constituição estadual, dos discursos parlamentares, imprensa e de doutrina posterior, que ressaltaram normas que se tornaram particularmente relevantes com o tempo. Não serão inseridos assuntos que restaram não aprovados no processo constituinte e os elementos normativos incluídos posteriormente por emendas constitucionais[65].
2.3 Processo legislativo estadual
A Constituição do Rio Grande do Sul inovou em muitos aspectos do processo legislativo, não alterando apenas elementos procedimentais, mas também as possibilidades políticas à disposição dos poderes. O tema foi abordado em tese de doutorado comparando todos os estados da federação por Auro Augusto Caliman[66] e mostra um cenário de desprendimento em relação às normas federais. Diversas regras básicas de processo são seguidas pelos estados, o STF exige isso, mas o grau de liberdade outorgado pela corte se mostrou grande e isso contribuiu para consolidar uma rica diversidade estadual[67].
Dentre as diferenças mais relevantes, está que o Rio Grande do Sul é um do três que não adotaram o regime de leis delegadas, tendo sido acompanhado apenas por São Paulo e Espírito Santo[68]. A possibilidade de delegar algumas matérias atribuídas ao Congresso Nacional para o Presidente é prevista no art. 68 da Constituição de 1988 e, singelamente, não tem qualquer correspondência em normas estaduais[69].
Acompanhado dos mesmos dois estados, o Rio Grande do Sul também deixou de adotar o regime das medidas provisórias, em um fortalecimento relevante da Assembleia Legislativa. O instrumento, mais adaptado à sistemas parlamentares, mas que se desenvolve no presidencialismo brasileiro desde a Era Vargas, com a Constituição de 1937[70], não adentrou as normas estaduais.
Outra diferença é a iniciativa popular de leis. Ela não seria uma inovação gaúcha, a Assembleia Nacional Constituinte inserira regras ordenando aos estados-membros que criassem sistemas de iniciativa popular no processo legislativo estadual, matéria que seria regulada por lei[71]. Assim, a ordem fora dada a todos os estados. Além disso, no aspecto das exigências para ocorrência, o art. 68, §1º[72] da Constituição estadual é bastante semelhante às previstas no art. 61, §2º da Constituição de 1988[73] - a norma estadual exigia 1% do eleitorado das últimas eleições, distribuídos em um décimo dos municípios e não menos de 0,5% em cada um deles.
No entanto, a iniciativa popular gaúcha guarda algumas diferenças relevantes. A primeira é a existência do referendo popular, a ser feito em cento e vinte dias, caso 10% do eleitorado requeira ele após um projeto de iniciativa popular ser rejeitado pela Assembleia Legislativa.
A segunda diferença, inédita em relação a qualquer outra constituição estadual brasileira[74], é na previsão expressa de iniciativa popular para os projetos de lei orçamentária, diretrizes orçamentárias e plano plurianual - com os mesmos requisitos das leis ordinárias, conforme o art. 68, III. Em âmbito federal, leis orçamentárias são de iniciativa privativa do Presidente da República (art. 84, I). E essa trajetória estadual seria continuada, depois, em âmbito infraconstitucional - os Conselhos Regionais de Desenvolvimento, COREDES, participaram da elaboração do orçamento estadual pela primeira vez em 1994. Em 1988, a Lei Estadual 11.179, criou a Consulta Popular, feita diretamente aos cidadãos gaúchos, para escolher a destinação do orçamento[75].
Em mais uma alteração, quanto à iniciativa dos projetos de lei, a Constituição de 1988 é entrecortada por competências privativas, restringindo assuntos a determinadas autoridades tematicamente. Tal estrutura não foi adotada no Rio Grande do Sul - há, aqui, a autorização geral, que vai das emendas constitucionais às leis ordinárias, e preveem sempre a participação popular e das câmaras dos vereadores[76].
Por fim, há uma regra geral sobre o processo legislativo, as deliberações da Assembleia Legislativa devem ser feitas por "votos, individuais e intransferíveis", conforme o art. 51[77], norma que não encontra correspondente na Constituição de 1988 e, inicialmente, fora adotada apenas na Constituição de São Paulo. A consequência mais importante dessa regra, observada por Caliman, é que o veto acaba regrado de forma mais aberta na Constituição gaúcha[78]. Ao contrário da Constituição de 1988, na qual nada impedia que ele fosse secreto[79] ou feito por votação simbólica, a Constituição estadual exige, pela via indireta, votação por maioria e sem possibilidade de votação secreta.
2.4 Poder constituinte derivado popular
Foram estabelecidas modificações importantes no processo de emenda da Constituição estadual, diversos deles sem ligação com normas federais. O destaque principal é que a iniciativa popular foi incluída no rol dos meios capazes de iniciar uma proposta de emenda:
Art. 58. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I - de um terço, no mínimo, dos Deputados;
II - do Governador;
III - de mais de um quinto das Câmaras Municipais, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros;
IV - de iniciativa popular[80].
A via popular inexiste na Constituição de 1988, que tem apenas três incisos no seu art. 60[81], listando neles apenas representantes eleitos como aptos a iniciar o processo de emenda. É uma inovação relevante à sociedade e um mecanismo incomum no constitucionalismo brasileiro, que não têm em sua tradição a via popular para alterações constitucionais. Apesar da diferença relevante, o STF nunca declarou a inconstitucionalidade de tais normas, que vigem atualmente e sem emendas. Não é uma norma de todo incomum para constituições estaduais, existindo nas constituições de outros treze estados federados[82], mas é um dos elementos relevantes dentre as obras dos constituintes gaúchos.
A Constituição estadual explicita o meio pelo qual essa iniciativa precisa se manifestar: são as mesmas regras da iniciativa de leis ordinárias, conforme o já citado art. 68, §1º "no mínimo, um por cento do eleitorado que tenha votado nas últimas eleições gerais do Estado, distribuído, no mínimo, em um décimo dos Municípios". Também há o referendo quando há rejeição, previsto no art. 68, §3º. Apesar da importância, a possibilidade foi pouco utilizada na prática.
Sobre a competência das câmaras municipais, comparando os artigos 58 da Constituição Estadual e o art. 60 da Constituição de 1988, ainda é de se notar o afastamento na quantidade necessária de entes federados menores para iniciar o processo de emenda. Apenas 1/5 dos municípios precisam se manifestar no sistema estadual, quanto a norma nacional pede mais da metade das Assembleias Legislativas. O Rio Grande do Sul facilitou bastantemente o processo de emenda pela iniciativa dos entes menores.
2.5 Controle de constitucionalidade abstrato com participação direta da sociedade
O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade foi muito ampliado na Constituição de 1988 - primeiro pela preservação de institutos existentes anteriormente, como a representação interventiva, o habeas corpus, o habeas data[83], a via do recurso extraordinário estabelecido com inspiração no judicial review norte-americano[84].
Alguns institutos, no entanto, não foram apenas mantidos em grandes linhas, eles foram significativamente ampliados. Uma das principais mudanças foi no controle de constitucionalidade abstrato, concentrado em um Tribunal Constitucional e capaz de retirar leis do ordenamento jurídico - o modelo atribuído ao jurista austríaco Hans Kelsen no início do século passado[85]. Ele fora introduzido no Brasil pela Emenda Constitucional 16/1965 e chegara até 1988 sendo uma medida atribuída exclusivamente ao Procurador-Geral da República[86]. A Constituição ampliou o rol, uma das medidas que se mostraria importantes na expansão do papel do Poder Judiciário e do STF no Brasil na medida em que essa forma de controle se tornou uma das vias principais de, por meio da defesa da Constituição, tomar de decisões políticas de grande impacto social[87]. Valem as palavras do Ministro Gilmar Mendes, com atuação marcante no desenvolvimento desse tema no STF: o rol permitiu que praticamente todas as controvérsias constitucionais pudessem ser julgadas pela corte[88].
A ampliação das medidas pode ser lida no artigo 103 da Constituição de 1988[89], com as devidas ressalvas a respeito de, além de ter a atribuição menor em âmbito nacional, a necessidade de alguns legitimados só poderem iniciar o controle de temas em que haja pertinência temática, conforme a jurisprudência constitucional dominante[90]. O Rio Grande do Sul, nesse quesito, inovou ampliando ainda mais a lista, especialmente na sua abertura para entidades privadas e de representação social direta:
Art. 95. Ao Tribunal de Justiça, além do que lhe for atribuído nesta Constituição e na lei, compete: [...]
§ 1.º Podem propor a ação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual, ou por omissão:
I - o Governador do Estado;
II - a Mesa da Assembléia Legislativa;
III - o Procurador-Geral de Justiça;
IV - o Defensor Público-Geral do Estado; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 50, de 24/08/05)
V - o Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil;
VI - partido político com representação na Assembléia Legislativa;
VII - entidade sindical ou de classe de âmbito nacional ou estadual;
VIII - as entidades de defesa do meio ambiente, dos direitos humanos e dos consumidores, de âmbito nacional ou estadual, legalmente constituídas;
IX - o Prefeito Municipal;
X - a Mesa da Câmara Municipal[91].
Além dessa lista apresentada acima, sobre atos e leis estaduais, que amplia bastante o rol na direção da participação privada e da sociedade, ainda há o segundo parágrafo do art. 95. Nessa segunda lista há os legitimados para proposição ação em face de lei ou ato normativo municipal. Nela, a lista de legitimados é semelhante, mas não é a mesma: o patamar de participação social é ainda mais difuso, pois as entidades sindicais não tem âmbito mínimo e são incluídas até as associações de bairro e entidades de defesa de interesse comunitários com mais de um ano dentre os legitimados para iniciar o controle de constitucionalidade de leis municipais[92].
Dessa forma, o Rio Grande do Sul estabeleceu, também aqui, um acesso da sociedade ao controle abstrato muito significativo e inovador. A Constituição estadual ampliou o leque de legitimados especialmente no caminho de permitir a participação social de pessoas que não fazem parte da burocracia estatal. Não há na norma federal nenhuma menção a entidades privadas como de defesa do meio ambiente, direitos humanos, consumidores - chegando até às entidades de bairro e interesse comunitários para os municípios.
2.6 Vinculações orçamentárias à educação, pesquisa e tecnologia
A Constituição do Rio Grande do Sul previu que um percentual significativo, 35% das receitas resultantes de impostos, deveriam ser aplicadas no desenvolvimento do ensino público[93]. É uma das normas mais lembradas dentre os trabalhos dos constituintes. É, também, um dos alvos do controle de constitucionalidade, que nunca retirou de vigor a porcentagem, mas julgou inconstitucional um de seus detalhes, a entrega de ao menos um décimo desses recursos para escolas públicas estaduais por meio de transferências trimestrais às unidades (ADI nº 820/STF de 2008).
A inovação dos constituintes está no patamar de recursos destinados à finalidade. Existia medida semelhante na Constituição de 1988, que, no seu art. 212, estabeleceu para si que ao menos 18% dos recursos deveriam ir para o ensino; e, para estados, Distrito Federal e municípios, ao menos 25% - assim como ocorre para a saúde em patamares menores no art. 198. O Rio Grande do Sul ampliou generosamente seus números.
A segunda medida importante de vinculação foi outro percentual: 0,5% da receita líquida dos impostos próprios deveriam ir para o desenvolvimento do ensino superior comunitário[94]. Tal regra foi inovadora, sem paralelo federal. Com o tempo, ela seria alterada duas vezes, assumindo sua atual forma com a Emenda Constitucional 66/2012[95], se referindo agora também ao ensino superior público (não necessariamente comunitário) e concessão de bolsas.
Por fim, a terceira vinculação é feita à área de ciência e tecnologia, no art. 236. Duas são as medidas. Primeira, as despesas de investimentos e custeios de órgãos estaduais envolvidos com pesquisa científica e tecnológica são responsabilidade estadual, que deve cobri-las. A mais marcante e importante, a segunda, é a destinação de no mínimo a 1,5% por cento da receita líquida de impostos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - com investimentos no fomento ao ensino e pesquisa científica e tecnológica[96].
Esses percentuais, juntos, representaram um compromisso político com a educação, criando restrições importantes à discricionariedade dos representantes eleitos que posteriormente elaborariam os orçamentos. São alguns dos aspectos mais relevantes da constituinte estadual.
2.7 Participação cidadã na Administração Pública
A Constituição do Estado do Rio Grande do Sul deu passos novos na participação de cidadãos na Administração. A trajetória de incentivar a participação se dera de diversas maneiras na Constituição de 1988[97]. O texto gaúcho, no entanto, inovou em suas formas. O primeiro momento de grande destaque foi a criação e participação dos Conselhos Populares - eles teriam o papel de acompanhar e avaliar a ação político-administrativa do Estado de maneira geral, em uma cláusula aberta de participação[98]. As iniciativas infraconstitucionais oriundas foram diversas, foram narradas brevemente acima, como o COREDES, a consulta direta à população sobre o orçamento, o Orçamento Participativo estadual e o Processo de Participação Popular[99].
Outra norma existente era a do art. 213, sobre a eleição direta para os diretores de escolas e a participação da comunidade nos conselhos escolares[100]. O tema da gestão democrática do ensino público se desenvolvia de diversas formas e essa foi uma das muitas normas que chegou à constituição[101]. Genericamente, toda a política de ensino seria igualmente fiscalizada pela sociedade, na forma do art. 200, §2º. É um conjunto de normas decorrente do papel dos professores no estado e sua capacidade de organização. A eleição direta dos diretores, no entanto, acabaria julgada inconstitucional pelo STF em 2001, em entendimento que afetou diversas normas estaduais semelhantes em outros entes - a jurisprudência pacificada é no sentido da inconstitucionalidade medida. O principal argumento é que, por ser cargo em comissão, o preenchimento deve estar na esfera discricionária do chefe do Poder Executivo e protegida por regras relacionadas ao concurso público, afetando vários dispositivos constitucionais federais.
Outra iniciativa relevante durante a negociação, e também refletindo o importante destaque dado à educação, foi a existência de um Conselho Estadual da Educação em que apenas um terço dos membros seriam apontados pelo governo. Os restantes seriam indicados pela comunidade escolar[102]. O artigo, no entanto, teve vigência apenas até outubro de 2018, quando foi declarado inconstitucional pela ADIn nº 854/STF.
Em diversos outros momentos, a participação na constituição estadual foi prevista pontualmente: na segurança pública, por meio dos Conselhos de Defesa e Segurança da Comunidade, art. 126[103]; na criação das políticas de habitação, art. 173; nas políticas de preservação cultural, art. 200; na política de ciência e tecnologia, art. 235; na elaboração de programas de assistência, art. 261, IV; nas políticas de proteção aos índios, art. 264; nas políticas de desenvolvimento regional, art. 168.
2.8 Políticas educacionais
A área da educação recebeu grande atenção dos constituintes. Os movimentos da categoria dos anos 1980 reivindicavam uma série de melhorias e foram, ao menos no sentido de atenção às demandas na Constituição, exitosos. Além delas, houve melhorias não visíveis na Constituição, que iriam se concretizar no plano infraconstitucional, tratando do regime jurídico, planos de salários e outros temas.
Diversas foram as iniciativas da Constituição estadual sobre a educação. Recebem destaque especial como obra dos constituintes três iniciativas. A primeira política, relevante para o ensino infantil, é a implementação de creches e pré-escolas para crianças de zero a seis anos, assim como o dever de dar atendimento pré-escolar em todas as escolas de ensino fundamental[104]. Ainda que a universalização do ensino fundamental esteja sendo implementada no Brasil, o ensino infantil continua sendo um dos aspectos menos concretizados da Constituição de 1988 e as garantias do constituinte estadual tentaram auxiliar nessa questão.
A segunda, ainda no ensino infantil, é específica para os estabelecimentos prisionais destinados a mulheres e fica no art. 139 - todos devem ter creche e pessoal especializado para crianças com até seis anos. A iniciativa, se bem implementada, é importante para estabelecer os vínculos afetivos com a mãe. A medida é semelhante a um Direito Fundamental, no estilo dos listados no art. 5º da Constituição de 1988, e representa um avanço civilizatório importante.
Por fim, a terceira grande iniciativa é a distribuição de escolas e creches em municípios. O Rio Grande do Sul é um estado com alto número de municípios, mas o constituinte estadual decidiu garantir que houvesse estabelecimentos com creche, ensino fundamental e médio em cada um deles:
Art. 199. É dever do Estado:
[...]
III - manter, obrigatoriamente, em cada Município, respeitadas suas necessidades e peculiaridades, número mínimo de:
a) creches;
b) escolas de ensino fundamental completo, com atendimento ao pré-escolar;
c) escolas de ensino médio[105]; [...]
Além deles, diversas outras medidas ainda foram tomadas, ampliando os deveres estatais na área: a universalização do ensino médio, a existência de cursos no período noturno, cursos profissionalizantes e a expressa responsabilização das autoridades competentes pela oferta irregular de ensino obrigatório gratuito, com ampla lista de decisões relevantes nos arts. 199 e 200[106].
2.9 Políticas ambientais
A Constituição de 1988 estabeleceu a maior parte das políticas ambientais no artigo 225 da Constituição. Um artigo único que descreve o dever do Estado na sua defesa e preservação, criando diversas obrigações de legislação futura, voltadas a proteção do meio ambiente, da diversidade e na promoção de técnicas e educação ambiental. Apesar da evidente preocupação, o artigo é um criador de obrigações a particulares e ao estado, a maior parte delas a ser realizada.
A Constituição estadual adotou uma perspectiva diferente no assunto. A área é um dos locais ímpares de autonomia do constituinte[107] porque a maior parte das medidas são inéditas. Foram dedicados um total de dez artigos ao tema - do 250 ao 259. A primeira das inovações marcantes é a inclusão da sociedade na proteção ambiental. A comunidade é consultada na criação de políticas, em algumas situações até por plebiscito obrigatório[108], e há uma cláusula genérica afirmando que é dever da coletividade exigir do Poder Pública a adoção de medidas para a defesa do meio ambiente no artigo 251[109].
Além disso, o capítulo trouxe uma série de medidas concretas sobre a atuação estatal, detalhando em que situações deveriam ser exigidos estudos ambientais, o controle estatal ou, imediatamente, a escolha de quem seriam os responsáveis por danos ambientais ou ações para evitá-los[110]. Há também atividades vedadas como depósito de materiais nucleares, tóxicos e radiativos de outros entes e países[111] e dados sobre aquelas parcialmente limitadas por fiscalização ampla, como escavações em sítios arqueológicos e paleontológicos[112] e atividades industriais e petroquímicas com alto potencial de dano ambiental[113]. As disposições são mais numerosas e detalhadas do que as da Constituição de 1988, denotando um ambiente diferente de elaboração nessa área. Foi previsto, também de maneira inédita, um sistema estadual de proteção ambiental[114]. A Constituição de 1988 previu diversos outros sistemas, mas nenhum específico para o meio ambiente.
2.10 Habitação e políticas urbanas e agrícolas
Dos investimentos em programas habitacionais, 70% deveriam ser destinados a suprir deficiência de famílias de baixa renda, aquelas com renda inferior a cinco vezes o salário mínimo[115].
Outra inovação importante ocorre no ato das disposições transitórias, também na habituação, é a previsão de que seriam entregues imóveis aos moradores que haviam ocupado por mais de cinco anos, sem oposição judicial, áreas urbanas pertencentes ao estado. Essa previsão, somada ao uso preferencial de áreas urbanas ociosas para programas habitacionais a famílias de baixa renda, criam um sistema que busca utilizar imóveis estaduais com essa finalidade caso não tenham outra destinação. Essas duas regras deveriam ser feitas por lei complementar, o que correu em 1992[116].
Por fim, ainda houve destaque à ordem constitucional para que as instituições financeiras estaduais destinem 5% de suas operações creditícias para financiar aquisição de terras próprias para os pequenos agricultores - art. 183. O cooperativismo nas políticas agrícolas, que fora previsto na Constituição de 1988 (arts. 174 e 187) é igualmente ampliado na norma estadual, em meio a uma série de outros dados específicos sobre a política agrícola[117]. No Rio Grande do Sul, não apenas há o apoio explícito, com regras de acesso à terra e inclusive os meios pelos quais se fariam os assentamentos, reassentamentos e planos de colonização, mas, inclusive, normas prevendo expressamente o uso de imóveis estaduais (art. 181), criando condições de acesso a essas políticas explicando quem seriam os beneficiados[118].
2.11 Defesa do consumidor
A Constituição do Estado do Rio Grande do Sul encerra suas disposições com outra inovação em relação à norma federal. Há uma seção específicas e dois artigos sobre a defesa do consumidor - arts. 266 e 267. Nela há a previsão de um sistema de defesas ao consumidor[119] e a previsão de uma política de consumo, com participação da sociedade, para alcançar uma série de objetivos relacionados à defesa do consumidor. Nada semelhante foi criado em âmbito federal.
A norma federal estabeleceu parâmetros importantes para o assunto - inseriu ele no rol dos Direitos Fundamentais[120], previu ele nos princípios da ordem econômica e financeira (art. 170, V) e em competências legislativas comuns a todos os entes (art. 24, V e VIII) e previu até a elaboração de um código[121], norma que nos anos 1990 mudaria o panorama brasileiro na área trazendo avanços significativos. Apesar disso, uma seção inteira e normas constitucionais detalhadas na área foi uma característica da Constituição estadual. O seu fruto mais visível à sociedade foi o PROCON.