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Exercício de outra função pública por membro do Ministério Público:

incompatibilidade ou prerrogativa constitucional?

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Agenda 03/02/2006 às 00:00

Propomos o debate da necessidade de o Ministério Público poder emprestar seus membros ao exercício de outras funções públicas, desde que sujeitas a controles e compatíveis com as elevadas finalidades institucionais.

I. Razões e fundamentos da tese de incompatibilidade

Inicialmente, vale destacar o porquê deste trabalho, no vigente contexto nacional. Trata-se de enfrentar problema grave, urgente, normalmente relegado à superficialidade de debates estéreis ou demagógicos. Cuida-se de focar, ainda, questão concreta, atinente à vida político-institucional do Ministério Público brasileiro, com a qual nos deparamos em nossa vivência de agente ministerial licenciado temporariamente da carreira para exercício de outra função pública, nos moldes do art.129, IX, da Magna Carta. Uma análise detalhada e um pouco mais aprofundada pode e deve ser resgatada, porque a tendência parece ser o uso político, interna corporis, desse debate, para efeito de alimentar discursos eleitorais inerentes aos processos políticos no Ministério Público brasileiro e em tais cenários a demagogia, a superficialidade e a esterilidade andam juntas [01].

Nosso interesse pelo tema, portanto, se dá por várias razões, sejam institucionais, pessoais, políticas ou jurídicas. Cumpre destacar nossa própria experiência como Secretário-Adjunto de Estado da Justiça e da Segurança/RS, de novembro de 2003 até a data de fechamento deste trabalho (dezembro de 2005), ocasião em que solicitamos retorno aos quadros institucionais. Nosso afastamento se deu ao abrigo de licença concedida à unanimidade pelo Conselho Superior do Ministério Público gaúcho, por solicitação do Governador do Estado do Rio Grande do Sul ao Procurador-Geral de Justiça [02].

Nesta condição, tivemos de refletir sobre o ajuizamento de Reclamação contra o Decreto governamental que embasara o exercício daquelas funções, na condição de terceiro interessado, efetuando pesquisas e reflexões mais acuradas sobre o tema. Não adentraremos a matéria debatida naquela Reclamação, de cunho estritamente processual, até porque se trata de feito em curso [03], mas vale adiantar que o pano de fundo envolve o objeto deste trabalho.

Sustenta-se, Brasil afora, especialmente através de petições ao Supremo Tribunal Federal formuladas por Partido Político de escassa representatividade nacional, o PSL, Partido Social Liberal, com fluxo de interesses corporativos de segmentos da Polícia Civil brasileira, mas também por posicionamentos firmados pelo próprio Ministério Público Federal e de lideranças de alguns Ministérios Públicos Estaduais, a incompatibilidade de membro do Ministério Público, seja dos Estados, seja da União, exercer qualquer outra função pública, salvo uma de magistério [04].

Não é à toa que lideranças do próprio Ministério Público brasileiro defendem a incompatibilidade em análise. Devemos destacar que, historicamente, por influências importantes, muitas oriundas de líderes como Hugo NIGRO MAZZILLI e outros, também tivemos opinião contrária a essas licenças, por reputá-las incompatíveis com o ideário de pureza e independência do Ministério Público, na linha de uma visão lógico-gramatical do texto constitucional. Um conjunto de valores nos foi transmitido por lideranças históricas, importantes, do Ministério Público brasileiro, pós-88, no sentido de que a neutralidade e a distância da classe política ou dos Poderes Executivo e Legislativo seria a maior garantia de nossa independência. Assim, deveríamos guardar prudente distância de outras funções públicas, sob pena de sofrermos contaminações indevidas, perdendo autonomias e angariando vícios indesejáveis. Esse tipo de discurso pode causar deslumbramento em jovens autoridades ministeriais, porque mexe precisamente com o substrato idealista que as move.

Os valores que embasam a orientação restritiva em torno ao conhecido art.128, par.5º, II, "d", da Magna Carta, são, portanto, de distintas ordens, todas convergindo nos aparentes ideários de pureza, imparcialidade e independência do Ministério Público, bem assim na suposta necessidade de seu isolamento relativamente a outras funções públicas.

Há, pois, aqueles que defendem que o contato com outras funções públicas faz do Ministério Público um órgão menos imparcial e menos independente do que deveria ser, politizando-se indevidamente, eis uma linha histórica do pensamento que norteou uma parte dos constituintes de 1988 na formatação da ambigüidade semântica do dispositivo consagrado no art.128, par.5º, II, letra "d", da CF. Essa mesma concepção ainda hoje inspira arrazoados e posicionamentos institucionais, num corte nitidamente corporativo e de matriz purista.O pano de fundo histórico e político dessa orientação foi a busca de equiparação remuneratória e institucional com a magistratura, aliado a problemas políticos internos em determinados Ministérios Públicos, nos quais as autoridades licenciadas participavam ativamente do jogo político de poder. Outros sentimentos menos nobres talvez também influíssem nessa tomada de posição, eis que são poucas as autoridades licenciadas e muitas as que jamais receberam convite para qualquer espécie de afastamento provisório das funções originárias.

Há, também, aqueles outros segmentos que não se interessam, politicamente, pela presença de membros do Ministério Público fora de suas funções, porque os agentes ministeriais, em cenários externos, acabariam ocupando espaços que poderiam ser ocupados por outras carreiras públicas. Por isso, defende-se a incompatibilidade como ferramenta política na luta por espaços corporativos. Eis aqui outra importantíssima linha de orientação institucional em segmentos estranhos ao Ministério Público, embora organizados estrategicamente na defesa de tese simpática aos seus próprios e peculiares interesses. É verdade que nem sempre tais interesses se identificam, autenticamente, com essa tese, visto que espelham muito mais uma visão estreita de corporativismo defasado do que propriamente uma visão voltada à saúde institucional e corporativa.

Para não perdermos o foco no Direito positivo, e já considerando o substrato axiológico disponível, eis a incompatibilidade suposta, in verbis:

Art. 128. O Ministério Público abrange:

(...) § 5º - Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros:

(...) II - as seguintes vedações:

(...) d) exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério (grifos nossos);

Esboçando linha de entendimento na direção restritiva e isolacionista entre Poderes da República, ainda que em medida cautelar, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de assentar, numa tese provisória:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. LEI COMPLEMENTAR DO ESTADO DE MINAS GERAIS. ORGANIZAÇÃO DO PARQUET ESTADUAL - REQUISIÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS PELO PROCURADOR-GERAL. MATÉRIA DA COMPETÊNCIA DO GOVERNADOR. PRERROGATIVAS DE FORO. EXTENSÃO AOS MEMBROS INATIVOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE. FILIAÇÃO PARTIDÁRIA, DISPUTA E EXERCÍCIO DE CARGO ELETIVO. NECESSIDADE DE LICENÇA PRÉVIA. AFASTAMENTO PARA O DESEMPENHO DE FUNÇÕES NO EXECUTIVO FEDERAL E ESTADUAL. IMPOSSIBILIDADE.

1. A competência outorgada ao Procurador-Geral de Justiça para requisitar servidores públicos, por prazo não superior a 90 (noventa) dias, estando subjacente o caráter cogente da cessão, envolve imposição indevida de condições de governabilidade ao Chefe do Poder Executivo local, a quem cabe a direção superior da administração estadual. Violação aos artigos 84, II e VI; e 61, § 1º, II, c, da Constituição Federal.

2. As prerrogativas de foro dos membros do Ministério Público, em atividade, retratam garantias dirigidas à instituição como forma de viabilizar, em plenitude, a independência funcional do Parquet (CF, artigo 127, § 1º). Não se destinam a quem exerceu o cargo ou deixou de ocupá-lo. Inaceitável a extensão da excepcionalidade aos inativos.

3. A filiação político-partidária, a disputa e o exercício de cargo eletivo pelo membro do Ministério Público somente se legitimam acaso precedida de afastamento de suas funções institucionais, mediante licença. Precedentes. Interpretação conforme a Constituição dos dispositivos da norma legal que regula a matéria.

4. Incabível a imposição de restrições à concessão do afastamento do membro do Parquet para o exercício de atividade política, como não estar respondendo a processo disciplinar, cumprindo o estágio probatório ou, ainda, não reunir as condições necessárias à aposentadoria.

5. O afastamento de membro do Parquet para exercer outra função pública viabiliza-se apenas nas hipóteses de ocupação de cargos na administração superior do próprio Ministério Público. Inadmissibilidade da licença para o exercício dos cargos de Ministro, Secretário de Estado ou seu substituto imediato. Medida cautelar deferida em parte.

(ADI n° 2.534-MC/MG, Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 13.06.2003, p. 08) [05]

De igual modo, o mesmo STF já havia decidido que a Lei Orgânica do Parquet paulista (LC n° 734/93) [06], ao referir, em seu art. 170, parágrafo único, a possibilidade do "exercício de cargo ou função de confiança na Administração Superior", estaria referindo a Administração do próprio Ministério Público como o único lugar adequado para um membro da Instituição deslocar-se de suas funções originárias. Veja-se a ementa do julgado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 170, V E PARÁGRAFO ÚNICO; E 224, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI COMPLEMENTAR N.º 734/93, DO ESTADO DE SÃO PAULO (LEI ORGÂNICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL). ALEGADA OFENSA A DISPOSITIVOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Interpretação conforme à Constituição dada ao art. 170, V, da Lei Complementar nº 734/93, para esclarecer que a filiação partidária de representante do Ministério Público paulista somente pode ocorrer na hipótese de afastamento das funções institucionais, mediante licença e nos termos da lei, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Interpretação da mesma natureza dada ao art. 170, parágrafo único, da lei em apreço, para determinar que a expressão "o exercício de cargo ou função de confiança na Administração Superior" seja entendida como referindo a Administração do próprio Ministério Público.

Declaração de inconstitucionalidade da expressão "e XVIII deste artigo, bem como a prevista no art. 221 desta lei complementar, se o fato ocorreu quando no exercício da função", contida no parágrafo único do art. 224 da Lei Complementar nº 734/93.

Ação direta parcialmente procedente, na forma explicitada.

(ADI n° 2.084/SP, Min. ILMAR GALVÃO, DJ de 14.09.2001, p. 49)

Do ponto de vista processual, as decisões do STF não têm vinculado os demais Estados federativos, porquanto as realidades estaduais são distintas, sendo necessário o ajuizamento de ações diretas de inconstitucionalidade contra os diversos diplomas estaduais que permitirem licenças para membros do Ministério Público exercerem outras funções públicas, ainda que compatíveis com suas finalidades institucionais [07].

Ademais, ainda no plano processual, há que se sublinhar a possibilidade de que legislações estaduais tratem diversamente o tema contemplado no art.129, IX, e art.128, par.5º, II, "d", da Magna Carta, dando densidade normativa diferenciada a esses dispositivos constitucionais, através de conteúdos peculiares à norma que permita o exercício de outra função pública, inclusive no distinguir funções públicas compatíveis, ou não, com as finalidades institucionais do Ministério Público. Nesse passo, as ações diretas de inconstitucionalidade haveriam de levar em linha de conta tais aspectos singulares e próprios de cada legislação estadual, sem falar nos controles incidentais dos atos administrativos, que podem, caso a caso, ser interpretados conforme a Constituição.

Não há, portanto, posicionamento definitivo, firme, do STF sobre o tema, ao contrário do que se costuma imaginar. Uma crítica construtiva à linha jurisprudencial que se esboça, no entanto, é necessária, assim como também resulta imperiosa uma auto-crítica do Ministério Público brasileiro, no tocante à interpretação que vem emprestando ao instituto da licença que deflui do art. 129, IX, da Carta Magna e as distorções que daí possam estar emergindo.

Entendemos, com efeito, que, não obstante a visão restritiva imperante em múltiplos segmentos, a ocupação de espaços externos, no exercício de outras funções públicas, é uma prerrogativa constitucional do Ministério Público que advém do art.129, IX, da Magna Carta. Ao mesmo tempo, constatamos que tal prerrogativa tem sido largamente utilizada, e sempre sem uma regulamentação segura, no Ministério Público brasileiro como um todo, no deferimento de licenças para exercício de funções as mais diversas, nos domínios mais distintos, como Municípios, Estados e União. Daí que nossa proposta pretenda configurar uma linha intermediária entre o atual clima de desregulamentação legal e a tentativa de supressão, pura e simples, da prerrogativa constitucional. Defendemos a manutenção da prerrogativa e seu detalhamento e limitação normativa, desde uma perspectiva legal federal e desde critérios objetivos consagrados nas Instituições estaduais e federais [08]. Vejamos, pois, mais a fundo a tese restritiva encabeçada por várias lideranças do próprio Ministério Público brasileiro, observando sua consistência e sua resistência às críticas. Somente um teste semelhante pode respaldar, ou não, uma postura hermenêutica constitucional.


II.Desdobramentos e fundamentos da interpretação lógico-gramatical e formal: visão crítica da tese da incompatibilidade

A primeira providência que se impõe, relativamente à opção pela técnica lógico-gramatical, fundada em elementos históricos e baseada numa determinada concepção de independência funcional dos agentes ministeriais, é a percepção de suas reais e potenciais conseqüências na atualidade de nosso contexto jurídico-constitucional, não apenas relativamente ao Ministério Público, mas fundamentalmente em relação aos interesses sociais e individuais indisponíveis que constituem a razão existencial da Instituição. Nem sempre se buscam os desdobramentos necessários de uma dada postura hermenêutica, mas é imperioso que se resgate essa visão pragmática e axiológica, de modo a revitalizar uma postura histórica ou superá-la, atualizando-a em face dos valores republicanos vigentes.

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Buscaremos também elucidar e confrontar o real fundamento alegado para embasar a postura interpretativa em análise, qual seja, a suposta necessidade de resguardar o princípio da independência funcional, de tal modo a visualizar sua pertinência ou inadequação aos propósitos anunciados na defesa da incompatibilidade absoluta.

Do conjunto de naturais e pertinentes conseqüências da hermenêutica lógico-gramatical e da decorrente proibição constitucional de o membro do Ministério Público exercer qualquer outra função pública, salvo uma de magistério, devemos desde logo sinalizar a percepção de um horizonte de corporativismo hermético ao Ministério Público brasileiro, no longo prazo, bem assim o fechamento de acesso da sociedade às distintas e relevantes funções que um agente ministerial poderia vir a desempenhar. Nessa mesma linha, percebemos potenciais prejuízos aos relacionamentos entre Ministério Público e outras Instituições, sejam técnicas, sejam políticas, pelo esvaziamento dessa participação ministerial na sociedade, considerando que os agentes que ocupam cenários externos costumam costurar vias dialogantes e construtivas com outros segmentos sociais da mais alta importância, além de obter aprendizados diferenciados que sempre são úteis à Instituição de origem.

Necessário esmiuçar um possível custo social e político que haveria de ser compensado pela manutenção (?) ou construção (?) da independência do Ministério Público, circunstância a embasar a incompatibilidade de funções. Se essa relação lógica entre a incompatibilidade e a independência funcional não sobrevivesse, à luz de uma argumentação razoável, cairia por terra o único fundamento axiológico relevante a embasar a incompatibilidade, seus custos sociais e políticos, no bojo de uma interpretação puramente gramatical e subsuntiva.

De outro lado, analisaremos a consistência jurídica interna, a coerência e a harmonia dos elementos que integram a via interpretativa que conduz ao reconhecimento da incompatibilidade. Se estiverem ausentes predicados necessários a uma hermenêutica consistente e coerente, haveremos de perceber não somente a fragilidade dessa postura hermenêutica, mas sua inadequação para sustentar os custos sociais e políticos dela decorrentes.

a) Custos sociais e políticos de uma visão hermenêutica inconsistente: o balanço das alternativas disponíveis

Ao trabalharmos uma determinada opção hermenêutica, com seus elementos internos e suas conseqüências, levamos em consideração seu custo social e político, porque os juristas, no mais das vezes, diante de casos difíceis, deparam-se com pluralidade de alternativas. A eleição de uma ou outra alternativa depende de um plexo de valores e fatores que justificam, ou desautorizam, a decisão adotada. O teste de legitimação da opção não passa apenas por sua racionalidade, razoabilidade e plausibilidade diante do ordenamento jurídico vigente, mas também pelas conseqüências que acarreta à sociedade e aos legítimos interesses e expectativas em jogo. Daí porque nenhum ato interpretativo de uma norma jurídica pode mergulhar tão somente em sua lógica interna, como se isso bastasse à sua legitimação ética na comunidade.

Com efeito, para começar, de uma leitura literal, histórica e formal desse comando normativo do art.128, par.5º, II, letra "d", da Magna Carta, infere-se que está vedado ao membro do Ministério Público o exercício de qualquer outra função pública, salvo uma de magistério, mas assegurado – dentro da mesma lógica de raciocínio - o exercício de outras funções privadas, quaisquer outras, ressalvadas apenas aquelas vedações constitucionais ou legais explícitas. Uma interpretação literal do conjunto de dispositivos constitucionais que disciplinam as incompatibilidades, nos termos do art.128 da CF, conduziria a essa natural conseqüência, que é, sem dúvida alguma, um fato político a ser levado em linha de consideração, na percepção dos desdobramentos do ato hermenêutico em exame.

Há que se sublinhar o equívoco da conseqüência normativa apontada, justamente porque a interpretação literal das incompatibilidades é um método inadequado e contraditório de tratamento dessa matéria. Sabe-se que grande parte das funções privadas estarão vedadas pela lógica das chamadas incompatibilidades implícitas, ao mesmo tempo em que as funções públicas estarão regradas pela lógica da compatibilidade com as finalidades institucionais, é o que decorre de uma leitura a contrario sensu do art.129, IX, da CF.

Entender que o agente ministerial não pode exercer qualquer outra função pública, salvo uma de magistério, mas pode exercer qualquer outra função privada, salvo aquelas proibidas expressamente na própria Carta Política de 1988, ou na legislação federal pertinente, que é altamente lacunosa a respeito, seria natural conseqüência de uma interpretação literal, embora expressasse violência ao sentido sistêmico e teleológico da Magna Carta. Essa espécie de paradoxo indica a inconsistência da interpretação lógico-gramatical, do ponto de vista jurídico, para sustentar conseqüências gravosas aos interesses sociais. A postura estampada na interpretação lógico-gramatical é incompatível com a natureza superior e aberta das normas constitucionais e legais que disciplinam as vedações aos membros do Ministério Público. Não se pode adotar posturas simplistas para problemas complexos.

Outra importante conseqüência previsível da interpretação lógico-gramatical, na vida corrente, na linha racional da visão restritiva, encontra-se na proibição absoluta da participação de membros do Ministério Público em atividades da mais alta relevância social e aqui resulta necessário avaliar se tais atividades se enriquecem, ou não, pela presença de membros do Ministério Público como seus executores diretos e se a abertura é, ou não, positiva à sociedade como um todo.

Não se tem a menor dúvida de que a doutrina e a jurisprudência dominantes são taxativas em reconhecer um amplo conceito às funções públicas, até mesmo em relação às atividades transitórias de Comissões. Assim, na doutrina do saudoso Hely Lopes MEIRELLES, função é conceituada como sendo "a atribuição ou conjunto de atribuições que a Administração confere a cada categoria profissional, ou comete individualmente a determinados servidores e para a execução de serviços eventuais." [09] Especifica, ainda, o jurista que "todo cargo tem função, mas pode haver função sem cargo. As funções do cargo são definitivas; as funções autônomas são, por índole, provisórias, dada a transitoriedade do serviço a que visam atender. Daí porque as funções permanentes da Administração devem ser desempenhadas por titulares de cargos, e, as transitórias, por servidores designados, admitidos ou contratados precariamente. Os funcionários podem estabilizar-se nos cargos, mas não nas funções."

Entre as atividades que se encaixam no conceito de "outras funções públicas" – e é de se frisar, en passant, que a expressão em tela acarreta o efeito de alcançar uma quantidade infinita de atividades públicas, em realidade qualquer atividade pública - encontram-se aquelas abrigadas nas chamadas Comissões de Reforma Legislativa ou semelhantes [10], onde o agente ministerial, ao participar formalmente desses espaços, dá uma contribuição preventiva ao aperfeiçoamento do ordenamento jurídico, estancando ou regulando futuros conflitos sociais, precisamente através do exercício de outras funções públicas estranhas à carreira, onde pode aportar suas vivências e sua visão técnico-política sobre assuntos vitais aos interesses da coletividade organizada.

Levando a restrição às conseqüências necessárias, dentro da linha de uma hermenêutica lógico-gramatical, concluir-se-ia que um membro do Ministério Público jamais poderia participar de comissão de reforma legislativa por tratar-se de "outra função", distinta do magistério. E o que ganharia a sociedade com isso? O que perderia? É possível calcular tais custos sociais? Certamente não estamos no plano matemático, no qual os custos poderiam ser mais precisamente calculados, mas podemos lançar estimativas razoáveis.

A vingar a tese sustentada em vários segmentos do Ministério Público brasileiro e da Associação Nacional de Delegados de Polícia, ambos coincidindo no viés corporativista, embora por razões distintas, tem-se que o membro do Ministério Público não poderá exercer qualquer outra função pública, v.g., Conselheiro de um Programa Estadual de Proteção a Testemunhas, Conselheiro no Conselho Superior de Polícia, participante de Comissões Legislativas, assessoramento direto a Senadores, Secretarias Estaduais de Justiça e Segurança Pública, Secretarias Nacionais de Justiça e Segurança Pública, etc. A série de efeitos dessa interpretação é demolidora, conduzindo à ruína da participação externa do Ministério Público nos mais variados espaços político-institucionais, bem assim ao engessamento gradual e crescente da Instituição, com prejuízos inegáveis à sociedade [11].

A sociedade, ao ver ampliada a incompatibilidade dos agentes ministeriais aos níveis desejados por alguns setores, ganharia membros do Ministério Público fechados em suas "casas" de origem, no aguardo das legislações para então formularem críticas, ou medidas judiciais de controle a posteriori, sempre à espera dos equívocos de outros agentes públicos que desempenham funções no Poder Executivo, para só depois reprimi-los.

O custo mais evidente dessa interpretação aqui testada diz respeito ao fato de que a sociedade perde em prevenção, para justificar uma duvidosa aposta exclusiva na repressão, porque certamente se avolumariam os processos judiciais contra leis arbitrárias ou incorretas, sem falar nos desvios administrativos que se propagariam com maior intensidade ante a lacuna participativa do Ministério Público no Poder Executivo [12]. A perda é enorme, porque a qualidade das leis brasileiras já não é alta e mais baixa ainda é a qualidade dos serviços prestados pelo Poder Executivo, mas se a sociedade perder a oportunidade de contar com agentes do Ministério Público na confecção de projetos de leis ou na ocupação de espaços noutro Poder de Estado, certamente estará perdendo a contribuição de agentes públicos com experiências e visões interessantes.

A existência de um Ministério Público imparcial e independente, puro e distante dos demais Poderes da República, sob o pretexto de melhor controlá-los, cobra determinados custos sociais e políticos, não se pode ignorar tal realidade. A questão é se o princípio da independência funcional justifica ou exige esse preço social que se dá no afastamento de membros do Ministério Público de outras funções públicas, através de uma proposta hermenêutica inconsistente, repleta de contradições internas e fundamentada em elementos precários, tais como, a técnica lógico-gramatical ou a interpretação histórica. Veja-se que é de singular dimensão o ônus argumentativo dos que pretendem atrelar a incompatibilidade e seus custos às exigências da independência funcional, porquanto a técnica hermenêutica empregada é, nesse contexto, precária e de uma espantosa fragilidade, buscando sustentar justificativa para custos sociais e políticos de necessidade duvidosa. Daí a importância de restar a incompatibilidade do art.128, par.5º, II, "d", CF, bem atrelada à salvaguarda do princípio da independência funcional, sob pena de se desmoronar seu alicerce fundamental.

b) Impossibilidade de alicerçar a suposta incompatibilidade na defesa da independência e da imparcialidade funcionais

Se os custos sociais e políticos desse afastamento do Ministério Público da possibilidade do exercício de outras funções públicas são altos, ao que tudo indica, e pobre é a técnica interpretativa que o embasa, não se pode ignorar que o fundamento axiológico de uma visão literal, gramatical e restritiva do art.128, par.5º, II, alínea "d", da Magna Carta, vale relembrar, repousa na necessidade de assegurar independência e imparcialidade ao agente ministerial, afastando-o de outros contatos espúrios, especialmente com outras funções públicas (reconheça-se que a preocupação não é a mesma com as funções privadas) [13].

Cumpre, pois, olhar de perto essa fundamentação supostamente constitucional, para apreciar a sustentação máxima da linha hermenêutica ora em exame, e aqui devemos naturalmente retomar uma análise da argumentação já exposta na doutrina de Hugo Nigro MAZZILLI, seus seguidores e do próprio Supremo Tribunal Federal, no tocante ao tema controvertido.

Não será a exigência de independência do membro do Ministério Público que irá afastá-lo da possibilidade de exercício de outras funções públicas, desde que compatíveis com suas finalidades. E assim nos posicionamos por variadas e consistentes razões, sempre reconduzíveis ao sistema constitucional, mas também lastreadas em experiências históricas relevantes, ao efeito de concluir que é falso, ou equivocado, situar o fundamento da suposta incompatibilidade no princípio da independência funcional dos membros do Ministério Público ou na garantia de sua imparcialidade.

b.1.) Independência do Ministério Público e do Judiciário: algumas precisões

Antes de adentrarmos o núcleo da fundamentação que sustenta a tese da incompatibilidade de agentes ministeriais exercerem outras funções públicas, devemos apenas registrar algumas das facetas mais relevantes e singulares da independência do Ministério Público, distinguindo-a de outro tipo de independência, qual seja, a judicial. Ao sinalizarmos alguns traços marcantes da independência do Ministério Público, teremos condições também de avaliar se há indícios de que seja o Ministério Público brasileiro deficitário em sua independência, ou não. Mais ainda, com a compreensão em torno aos conteúdos do princípio da independência funcional, torna-se possível perceber em que medida a incompatibilidade supostamente vazada no art.128, par.5º, II, "d", da CF, tem cabimento, nos moldes da proposta hermenêutica restritiva, em face do formato de seu objeto de proteção.

No campo do senso comum, a independência de um sujeito traduz a possibilidade de que atue de acordo com sua consciência jurídica, com sua vontade ou sua auto-determinação, sem subordinação a elementos volitivos estranhos, sejam eles de ordem política, econômica ou institucional, externos ou imanentes ao sistema onde inserido. A independência constitui uma característica da autonomia e da capacidade de agir de uma Instituição e de seus representantes, com liberdade, sem amarras ou condicionantes outras que não aquelas ditadas diretamente pela ordem jurídica e pela própria Instituição, através das consciências coletivas e individuais de seus agentes.

É claro que, desde logo, convém ressaltar duas grandes facetas da independência: a externa, que se dá perante outros Poderes ou Instituições, e a interna, que se opera perante os colegas e os superiores hierárquicos. Quando se fala em proteger a independência do Ministério Público, não se pode desprezar tais contornos, menos ainda ignorar suas dimensões interna e externa, eis que ambas resultam umbilicalmente interligadas. Hoje, pode-se arriscar que o fortalecimento da independência interna tem tanta importância quanto o da independência externa; isso, porque ambas constituem sustentáculos da autonomia lato sensu de uma Instituição e de seus agentes.

A Carta Magna consagra o princípio da independência funcional às Instituições do Poder Judiciário e do Ministério Público, extraindo tal previsão do conjunto sólido de garantias constitucionais a ambas outorgadas, tanto que aproxima tais Instituições no tratamento dispensado às garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, além dos predicados das autonomias administrativa e financeira, todos direcionados, teleologicamente, à consagração e preservação do princípio da independência funcional.

Esse processo de aproximação entre o Poder Judiciário e o Ministério Público é histórico e consagrou, também, uma afinidade remuneratória e de regimes jurídicos, embora não tenha conduzido à identidade ou unificação institucional, tal como ocorre noutros sistemas e modelos de Direito comparado. Isso, porque talvez tais afinidades não logrem esconder diferenças substanciais nessas atividades, cujos perfis institucionais resultam absolutamente distintos e vocacionados a tarefas diferenciadas, o que repercute na formatação de conteúdos díspares à independência funcional de uma e outra Instituição, além da diferenciação nos respectivos regimes de incompatibilidades e regimes jurídicos, com carreiras distintas.

Não se pode equiparar a independência do Judiciário, ou dos Juízes, com a do Ministério Público e de seus membros, como não se equiparam as respectivas imparcialidades e incompatibilidades, nem a totalidade dos regimes jurídicos que lhes são próprios. E isso se dá em razão de vários fatores juridicamente relevantes, dignos de nota. Há características que separam o Judiciário do Ministério Público, com repercussões relevantes, tanto quanto outros traços comuns indicam a conveniência ou a necessidade de aproximações nos regimes jurídicos, observados elementos históricos importantes.

O Judiciário move-se sempre no plano do "terceiro imparcial", dotado de competências decisórias, passivas, condicionado pelos princípios do contraditório e da demanda, ambos inerentes à sua atividade, assim como pelo individualismo dos juízes naturais, subordinados apenas e tão-somente às suas consciências, sem qualquer vinculação, preocupação ou comprometimento com a unidade institucional. O Ministério Público, ao contrário, atua como parte ou fiscal da lei, sempre movido por sua convicção institucional, que será alheia ao princípio do contraditório, eventualmente pautada por dimensão coletiva alicerçada em canais de democracia interna, respeitada a consciência jurídica de seus membros. A unidade é um traço essencial do Ministério Público que não se faz presente no Judiciário, assim como a posição processual de um e de outro resulta absolutamente distinta.

Se pudéssemos traçar uma distinção decisiva, diríamos que a independência do Ministério Público é coletiva, institucional e marcada pela unidade, protegendo a consciência jurídica dos membros, diante de eventuais abusos e desvios de autoridades administrativas superiores ou de atores externos. Já a independência judicial, a seu turno, tende a ser radicalmente a do Juiz natural, individualista e unitária, nunca coletiva. Confundir tais categorias pode conduzir a equívocos lamentáveis, tais como estes que se reproduzem na tentativa de transformar o Ministério Público num Poder Judiciário às avessas [14], importando, inclusive, seus vícios.

b.2.) A independência do Ministério Público brasileiro e sua desconexão relativamente à possibilidade de seus membros exercerem outras funções públicas

Traçados alguns contornos básicos da independência do Ministério Público, forçoso formular uma indagação, que há de integrar o núcleo fundamental da tese da incompatibilidade: o Ministério Público brasileiro é, hoje, apesar do descumprimento sistemático e reiterado de uma suposta incompatibilidade estampada no art.128, par.5º, II, "d", da CF, independente dos Poderes Políticos? É uma Instituição independente? Parece-nos relevante tocar nesse tema, diante do fato de que os agentes ministeriais têm sido licenciados para exercício de outras funções públicas, desde 1988, abertamente, e se tal suposta incompatibilidade vem sendo ignorada no plano concreto, como é verdade, há que se perguntar sobre as conseqüências dessa suposta vulneração à incompatibilidade. Tornou-se o Ministério Público menos independente, desde 1988, considerando o contínuo licenciamento de seus membros para exercício de outras funções públicas? Queremos um Ministério Público mais independente do que hoje? O caminho para isso, se confirmada tal expectativa, passa necessariamente pela eliminação da possibilidade de os agentes ministeriais exercerem outras funções públicas? São indagações importantes, a nosso ver, embora raramente tocadas.

Entendemos que o Ministério Público brasileiro, em que pese não observar a suposta incompatibilidade ora em exame, é uma Instituição independente, tendo atuado com independência frente aos Poderes Públicos desde 1988, porque esta é uma tradição antiga no Parquet, que se submete à Lei e ao Direito, não podendo a consciência jurídica de seus membros ser violentada por atos espúrios ou marcados pelo desvio de finalidade. A independência ministerial nada tem a ver com a possibilidade de exercício de outras funções públicas por seus membros, desde que tais funções se mostrem compatíveis com as finalidades institucionais do Parquet, eis nossa constatação, que passaremos a justificar em maior detalhe.

Nenhum sinal aponta em sentido contrário à constatação da independência do Ministério Público, essa é uma questão de ônus argumentativo relevante. Aqueles que rechaçam, num plano de convicção íntima, tal assertiva, poderiam aportar dados e informações que justificassem um juízo de desvalor no tocante à independência ministerial, mas isso não tem sido feito publicamente, nos mais diversos espaços que existem para tal espécie de discussão. Problemas pontuais certamente não justificariam uma avaliação global negativa, nesse especial tópico.

Diga-se, aliás, que o Ministério Público é uma Instituição bem valorada pela sociedade brasileira, como demonstrou pesquisa IBOPE (2004) que situou tal organismo em quarto lugar num ranking bastante extenso, atrás apenas da Igreja, das Forças Armadas e da Mídia. Certamente, um dos fatores que pesa nessa avaliação positiva é a independência dos integrantes do Ministério Público e sua exposição positiva na mídia.

Constatada a independência ministerial, não vemos em que medida essa independência poderia ser abalada com a presença de agentes ministeriais no desempenho de funções estranhas à carreira, porquanto tal prática já ocorre e nunca gerou semelhante conseqüência. Aliás, há outros nichos de intervenção do Poder Executivo junto ao Ministério Público e nem mesmo tais possibilidades enfraqueceram a independência institucional ora em análise.

Afirmamos tranqüilamente, portanto, que a independência do agente ministerial, ainda que afastado para exercer outra função pública, pode e deve ser mantida na sua consciência ético-jurídica, nos controles ministeriais a que está submetido, nas garantias da carreira e na submissão de seu "mandato" externo ao crivo permanente e discricionário dos órgãos de Administração Superior da Instituição. Daí porque o afastamento provisório das funções tipicamente ministeriais, para exercício de outras funções de interesse institucional, não deve nem pode abalar a independência funcional do agente, que segue vinculado à sua carreira, submetido aos controles do Procurador-Geral e do Conselho Superior, os quais podem revogar sua licença [15].

Analogamente, diríamos que, se a presença de agentes ministeriais no cenário externo, sujeitos a todos os controles, efetivamente perturbasse a independência da Instituição, talvez perturbasse ainda mais a autonomia do Ministério Público, e ameaçasse sua independência, outro tipo de ingerência constitucional do Poder Executivo, muito mais incisiva e intensa. Repare-se, com efeito, na possibilidade de o Presidente da República escolher discricionariamente o Procurador-Geral da República, sem sequer submeter-se a uma lista tríplice [16], circunstância que permite a uma determinada autoridade permanecer, teoricamente, muitos anos no cargo e, dentro de sua esfera estrita de atribuições, mover-se de acordo com critérios peculiares, elásticos e soberanos, não raro coincidentes com os critérios e interesses políticos do Governo de plantão. Apesar da sensibilidade diante desta realidade, não se vislumbra tenha havido comprometimento da Instituição como um todo, a partir dessa participação tão intensa do Poder Executivo na vida institucional do Ministério Público da União, escolhendo discricionariamente sua chefia, com reconduções ilimitadas e ausência de lista tríplice.

Não se pode dizer que o Ministério Público Federal não tenha atuado com independência, como um todo, desde o advento da Carta Política de 1988, apesar de sua chefia ser escolhida ao talante do Poder Executivo Federal. Basta vermos a atuação dos Procuradores da República no cenário da vida política brasileira, para termos convicção em torno a essa independência. Se a eventual falta de independência do chefe máximo da Instituição não comprometeu a independência real de seus demais membros, nem o conjunto da Instituição, o que se dirá da possibilidade de um agente ministerial, afastado provisoriamente, em caráter precário, dos quadros, para desempenho de outra função pública, poder afetar a independência de toda uma Instituição? Realmente, não nos parece lógica tal hipótese [17].

No tocante ao comando constitucional que outorga ao Governador do Estado a prerrogativa de escolher o Procurador-Geral de Justiça, dentro de lista tríplice votada pela classe, na forma regulamentar e legal [18], embora seja legítimo anseio histórico da Associação Nacional de classe e das Instituições espalhadas pelo país introduzir modificações nesse dispositivo, suprimindo ou atenuando ainda mais a participação dos Governadores, não se pode acoimar de dependentes do Poder Executivo os Ministérios Públicos estaduais. Ao contrário, a independência tem sido a tônica em suas atuações, na esmagadora maioria dos Estados, senão em sua totalidade. E se mesmo quando o Procurador-Geral é escolhido pelo chefe do Poder Executivo, com todos os riscos inerentes ao jogo político prévio a essa escolha, não há comprometimento da independência dos membros da Instituição, não raro nem mesmo do próprio Procurador-Geral, o que se dirá de uma simples licença precária de outro agente para exercício de outra função pública? Obviamente que essa licença não terá o condão de afetar ou comprometer a independência da Instituição, nem de seus membros, nem mesmo do agente licenciado [19], que estará submetido aos controles de sua Instituição e aos deveres éticos e jurídicos aos quais resultará permanentemente vinculado.

Tais prerrogativas políticas do Presidente da República e dos Governadores dos Estados traduzem níveis distintos e intensos de ingerência do Poder Executivo na estrutura do Ministério Público, sendo interpretadas ora como meios de potencial pressão e interferência interna, ora como possível fonte de legitimação política do próprio Ministério Público, constituindo ferramenta para estancar eventual rodízio no poder por grupos corporativos que usem e abusem da máquina administrativa. De um modo ou de outro, não se pode dizer, hoje, que a Instituição ministerial não seja independente, porquanto a independência advém de um conjunto sólido de garantias e prerrogativas constitucionais, legais e regulamentares, no bojo de uma cultura institucional vocacionada, historicamente, à independência e à proximidade - não è identidade, frise-se bem - com a Magistratura, nesse especial aspecto.

O questionamento sobre o papel a ser desempenhado pelo Poder Executivo junto ao Ministério Público é legítimo e deveria suscitar maior debate no meio político e acadêmico, ao contrário do que ocorre normalmente. Isso, porque resulta legítimo aos membros do Ministério Público pleitear a escolha direta de sua própria chefia, sendo recomendável uma disciplina legal uniforme, de natureza federal, para o processo eletivo, criando normas de incompabilidades e de uso da máquina, não apenas no período eleitoral, mas no decorrer de todo o mandato do Procurador-Geral, do Corregedor-Geral e do Presidente da Associação de classe, sem prejuízo da identificação de outros cargos de relevância [20].

Muito além do debate sobre a independência externa, tão suscitada e defendida quando se trata de buscar a restrição à possibilidade de agentes ministeriais desempenharem funções externas à carreira, não se pode olvidar do problema da independência interna, é dizer, aquela que o membro do Ministério Público deveria ostentar em relação aos órgãos de Administração Superior da Instituição. Tal independência é necessária diante dos múltiplos mecanismos de pressão existentes, imanentes ao funcionamento do sistema, v.g., desde os benefícios econômicos até as mais distintas vantagens administrativas, funcionais e políticas. A independência interna também não resulta protegida pela norma de incompatibilidade ora sub examen, nem ela, nem a independência externa.

Equilibrar a independência interna com o ideário de unidade institucional, eis um desafio gigantesco pela frente. Essa discussão pode ser tão ou mais importante do que aquela atinente à independência externa. Não obstante reconhecermos variados e até preocupantes problemas nessa seara, seja diante da necessidade de desenvolvermos novas ferramentas assecuratórias de independência interna, seja na falta de políticas de unidade institucional, no Ministério Público brasileiro, jamais poderíamos dizer que os membros da Instituição não são independentes, mesmo que estejam submetidos a ambientes internos desprovidos de uma regulamentação detalhada e mais incisiva em torno às relações entre as Cúpulas e os agentes ministeriais, no tocante às atividades funcionais, ao processo eleitoral e ao uso da máquina interna. Nenhuma dessas lacunas afetou ou comprometeu a independência externa da Instituição,quando se trata de afrontar interesses submetidos ao crivo fiscalizatório do Ministério Público.

Como se vê, a discussão sobre independência funcional é complexa e não comporta simplificações, menos ainda hipocrisias intoleráveis. Importa notar, de qualquer sorte, que tanto o Ministério Público Federal – o exemplo mais notório do Ministério Público da União - quanto os Ministérios Públicos Estaduais não deixam de ser instituições autônomas e independentes, a partir da atuação firme de seus integrantes, ainda que suas chefias máximas sejam escolhidas pelo chefe do Poder Executivo, com ou sem lista tríplice. Se isso é certo, e pensamos que ninguém ousaria seriamente impugnar tal assertiva – a da independência do Ministério Público brasileiro -, não vemos lógica alguma em sustentar que o exercício de outra função pública, totalmente submetida ao crivo discricionário do próprio Ministério Público e seus órgãos de Administração, pudesse "contaminar" a suposta "pureza" do Ministério Público; não contaminou, historicamente, nem antes, menos ainda depois da Constituição de 1988.

Possuir membros atuando externamente, construindo "pontes", abrindo caminhos, participando ativamente das estratégias político-institucionais do Ministério Público e da sociedade brasileira, ofertando contribuições à comunidade na condição de agentes políticos qualificados, parece ser mais uma prerrogativa constitucional a serviço da Instituição e da sociedade do que um ato promíscuo e incestuoso capaz de envergonhar os membros do Ministério Público [21].

Quer-se reafirmar que a independência do Ministério Público brasileiro, hoje, não pode seriamente ser posta em dúvida, apesar das dificuldades pontuais eventualmente detectadas. A Instituição vivencia problemas de outra índole, não de falta de independência, inclusive no topo de suas estruturas, apesar do déficit existente. Agentes ministeriais de todos os níveis hierárquicos atuam com a mais absoluta tranqüilidade e independência, alguns ajuizando ações até mesmo estranhas, inéditas em todo o Direito brasileiro e Direito comparado, desde que compatíveis com suas soberanas consciências individuais. Dificilmente alguém poderoso irá escapar de uma ação judicial ou de uma investigação, se considerarmos apenas o dado da independência funcional das autoridades do Ministério Público. Escapam por outras razões, muito mais poderosas, que dizem respeito ao mau funcionamento do Estado e de todo seu aparato investigatório, não por falta de independência no agir ministerial, via de regra. Podem até escapar por falta de eficiência e unidade, não por falta de independência, regra geral, se tomarmos um contexto global como referência [22].

A independência ministerial é, inclusive, tão forte e tão marcante que pode ser tida, dentro de determinada concepção mais radical, como fonte de distorções dignas de atenção. Veja-se que cada agente ministerial pode chegar a ser o equivalente a uma Promotoria ou Procuradoria distinta, que se transforma por completo nas férias de seu titular, ante os novos entendimentos do substituto, ainda que pelo singelo período de um mês. Cada Procuradoria ou Promotoria poderia ostentar, nesse viés interpretativo, uma consciência jurídica ambulante que, algumas vezes, se recusaria a prestar contas de suas opções no plano interna corporis, sob alegação de que ninguém pode condicioná-la, ainda que suas convicções agredissem a ordem jurídica, o posicionamento cristalizado de Tribunais Superiores ou da própria Instituição. Um dos grandes desafios do momento consiste em criar mecanismos democráticos internos para formatar a vontade institucional, redefinindo os limites e conteúdos da independência funcional das autoridades públicas aqui consideradas, à luz dos princípios da eficiência e da responsabilidade, coibindo os desvios e abusos que muitas vezes ocorrem.

Pode-se arriscar um diagnóstico no sentido de que o princípio da unidade institucional talvez esteja sendo esmagado por uma determinada concepção radical acerca da independência funcional. E a falta de unidade conduziria a distorções funcionais de enorme relevância, quebrando-se o princípio isonômico, criando-se ambientes de aplicação seletiva das normas jurídicas, fomentando-se a insegurança jurídica diante da falta de critérios harmônicos e coerentes de autoridades revestidas de expressivos poderes institucionais, além da ineficiência e do descontrole inerentes às distorções mais profundas de uma independência ilimitada. Forma-se, assim, contexto propício ao abuso praticado ao abrigo da suposta independência, diante da falta de controles e de critérios, porque acaba prevalecendo uma concepção lastreada na irresponsabilidade dos agentes políticos. A independência descontrolada pode tornar-se o instrumento mais idôneo para acobertar ineficiência, falta de coerência, preguiça ou arbitrariedades, sempre em prejuízo não apenas da sociedade, mas do próprio Ministério Público, cujas prerrogativas e garantias poderiam, nesse lastro, vir a ser questionadas ou ardilosamente atacadas por seus adversários.

A construção de uma saudável relação entre os princípios constitucionais da independência e da unidade institucionais constitui uma questão central a ser enfrentada com vigor pela doutrina que se ocupa do Ministério Público brasileiro, já tivemos oportunidade de alertar [23], diante dos novos paradigmas de responsabilidade social que emergem nos cenários atuais e considerando o ideário da Nova Gestão Pública que alcança também as Instituições de controle. Trata-se, mais do que de um tema científico, de um problema de gestão do Ministério Público no século XXI.

Se tudo isto é certo, do que vem de ser exposto, percebemos que a manutenção ou o fortalecimento da independência funcional guarda grande relação com o fortalecimento da unidade e dos controles internos, mas não com a ausência de agentes ministeriais nos cenários externos. Esse último fator não entra em nenhum momento na linha causal relevante para a configuração do princípio da independência funcional, seja para seu robustecimento, seja para seu enfraquecimento. Assim como o método de escolha dos Procuradores-Gerais não tem tido força suficiente para estancar a independência do Ministério Público brasileiro, menos ainda o teria a presença de agentes ministeriais em cenários externos. Esta abertura revela-se relevante para outras estratégias político-institucionais do Ministério Público, não servindo para fortalecer nem enfraquecer sua independência.

Insista-se que as distorções que podem se originar a partir da presença de agentes ministeriais nos quadros do Poder Executivo ou do Poder Legislativo podem e devem ser resolvidas com os instrumentos administrativos de controle do "mandato" daquela autoridade, perante os órgãos de Administração Superior do Ministério Público. É um tema relativamente simples, que sequer carece de inovações no ordenamento jurídico. O que evidentemente não é lógico é que as distorções tenham o condão de produzir distorção ainda maior, qual seja, a supressão de uma prerrogativa constitucional. Na metáfora popular, repleta de sabedoria, não se pode pretender curar uma doença através da eliminação do doente; com efeito, busquem-se os remédios pertinentes.

Devemos constatar, em face do que foi até o momento exposto, que não vivenciamos, em realidade, problemas significativos de agressão à independência funcional dos membros do Ministério Público e da Instituição como um todo, ao menos a partir de estatísticas que tenham vindo à tona, no Brasil, seja por vias internas, seja por vias externas. Os problemas que existem devem ser muito localizados, sem expressão nacional. Afora a necessidade de aperfeiçoamento das Cúpulas, tema já recorrente, não há vícios ou contaminações relevantes que estejam a atingir o princípio da independência funcional dos membros do Ministério Público brasileiro, eis a premissa que temos como inquestionável e que foi objeto das reflexões precedentes.

Assim sendo, observa-se que a manutenção da independência do Ministério Público se dá num contexto em que se admitem abertamente as licenças fundadas no art.129, IX, da CF, para exercício de outras funções públicas, desde 1988. Frise-se, portanto, que a preservação da independência, ou da imparcialidade, não pode constituir pano de fundo para defesa de norma de suposta incompatibilidade derivada de visão literal do art. 128, par.5º,II, "d", da Magna Carta, sobretudo diante dos controles que se tem sobre o agente político afastado da carreira para exercício de funções compatíveis com as finalidades institucionais, e considerando, ainda, os conteúdos normativos subjacentes ao princípio da independência funcional, que jamais poderiam conduzir às conseqüências pretendidas nesse campo das incompatibilidades, e, ainda, os custos sociais e políticos decorrentes da tese que advoga a incompatibilidade.

Qual a interpretação correta, então, para os atos administrativos que deferem licenças de afastamento aos agentes ministeriais, frente ao artigo 128, § 5º, II, "d", da Constituição Federal, de modo a respeitar uma visão histórica, sistemática e teleológica em torno do assunto? Veremos que a hermenêutica a ser emprestada à compreensão da citada norma constitucional constitui válida e atraente alternativa ao intérprete, não apenas por sua coerência, racionalidade, razoabilidade, mas por seus reflexos sociais, institucionais e políticos, elementos embutidos na interpretação constitucional. Trata-se de uma alternativa que esmaga sua oponente, por serem incomparáveis seus níveis de legitimação diante da ordem constitucional e política vigente.

Sobre o autor
Fábio Medina Osório

Advogado Geral da União. Advogado. Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e nos cursos de pós-graduação da Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (RS). Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madrid, pela Capes. Mestre em Direito Público pela UFRGS. Ex-membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDINA OSÓRIO, Fábio. Exercício de outra função pública por membro do Ministério Público:: incompatibilidade ou prerrogativa constitucional?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 945, 3 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7909. Acesso em: 22 nov. 2024.

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