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A dimensão jurídica da Lei de Anistia

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Agenda 18/03/2024 às 19:57

4. Da Anistia de Modo Geral e da Anistia no Direito Penal

Conceitualmente, conforme leciona RENÉ ARIEL DOTTI, anistia, palavra que deriva do grego amnistia, é o ato pelo qual o Estado renuncia ao poder-dever de punir o autor de um delito, o que se dá a partir de razões de necessidade ou conveniência política, sendo sua concessão atribuição exclusiva do Congresso Nacional (art. 48, VIII, da CF). Trata-se de causa extintiva da punibilidade (art. 107, II, 1ª figura, do CP), sendo destinada a "fazer desaparecer o caráter reprovável do fato e a perdoar os seus autores" (DOTTI, 2005, p. 674).

PAULO CÉSAR BUSATO recorda que a anistia dirige-se a tipos determinados, operando, assim, um duplo efeito, tanto para os casos passados que foram apurados, quanto para os que não o foram, objetivando alcançar a "pacificação e a cessação de hostilidades entre grupos de pessoas, como aconteceu com a superação do golpe militar de 1964 no Brasil" (BUSATO, 2013, p. 610).

Nesse diapasão analítico, questão interessante, e que também está sendo ventilada na quadra atual, refere-se à possibilidade de haver revogação da Lei de Anistia e, por conseguinte, tornar viável a persecutio criminis. No caso, ainda que haja revogação da Lei nº 6.683/79, a regra revogadora ostentará conteúdo gravoso, não podendo retroagir (art. 5º, XL, da CF). No mesmo sentido, a posição de ANDRÉ ESTEFAM (2012, p. 497). Da mesma forma, segundo a lição de FERNANDO CAPEZ (2012, p. 599), a anistia, uma vez concedida, não pode ser revogada, posto que a lei revogadora seria prejudicial aos anistiados. Igualmente, a Advocacia-Geral da União, quando de sua manifestação no bojo da ADPF nº 153, aduziu que o desfazimento da situação consumada por força do exaurimento dos efeitos da Lei de Anistia "colidiria com o princípio da irretroatividade da lei penal" (STF, 2010).


5. Da Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Julia Gomes Lund e Outros ("Guerrilha do Araguaia") versus Brasil

Mesmo diante do aludido decisum do STF no âmbito da ADPF nº 153, advoga-se, novamente, a viabilização da punição de crimes cometidos durante os governos militares, invocando-se, em especial, as noções consubstanciadas na ideia de inconvencionalidade da Lei de Anistia (por uma suposta incompatibilidade com determinadas convenções internacionais), bem como no conceito de crime de lesa-humanidade, mormente a partir da decisão proferida, em 24/11/2010, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Julia Gomes Lund e Outros, cuja conclusão estabelece, em resumo, o seguinte:

30. [...] a jurisprudência, o costume e a doutrina internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno, tais como as disposições acerca da anistia, as normas de prescrição e outras excludentes de punibilidade, deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigação inalienável de punir os crimes de lesa-humanidade [...].

31. É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil [...]. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010)

Várias são as objeções que impedem a adoção, por parte do Estado brasileiro, da conclusão emanada da Corte Interamericana. Em primeiro lugar, cumpre registrar que a própria Corte Interamericana reconheceu que o Brasil ainda não ratificou a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade:

27. [...] 42 anos após a sua adoção no âmbito internacional, o Brasil permanece sem a devida ratificação da Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, não obstante tê-la assinado. Essa omissão certamente foi fruto de pressão política daquele grupo de militares que praticou as atrocidades descritas neste processo. Entretanto, essa falta de ratificação é superada, pois, como já entendeu esta Corte, a sua observância obrigatória decorre do costume internacional e não do ato de ratificação. A imprescritibilidade desses crimes surge como categoria de norma de Direito Internacional geral, que não nasce com a dita Convenção, mas sim é nela reconhecido [...]. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010)

Conforme registrado no transcrito item 27 da sentença, o Brasil não ratificou a aludida Convenção. Por conseguinte, somente através de um esforço hermenêutico voltado para a repressão penal é que se torna possível compreender a razão pela qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos, invocando a existência de um suposto costume jurídico internacional, superou, diante do caso concreto, a falta de ratificação, por parte do Estado brasileiro, da citada norma internacional. Ocorre que o Brasil não assumiu tal compromisso, não se enquadrando, assim, na regra prevista no artigo IV da dita convenção, segundo a qual os Estados-Partes comprometem-se a adotar, de acordo com seus processos constitucionais, as medidas legislativas necessárias para assegurar que o instituto da prescrição não seja aplicado aos crimes referidos nos artigos I (crimes de guerra) e II (crimes de lesa-humanidade). Nota-se, claramente, que o artigo IV é direcionado aos países signatários da convenção, sendo mesmo ilógico que a Corte Interamericana pretenda considerar inválida a Lei de Anistia, atacando de morte a soberania nacional, tudo com o propósito de tornar imprescritíveis os delitos supostamente enquadrados na definição de crime contra a humanidade.

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Importante frisar, ainda, que o que restou estabelecido na mencionada sentença versa sobre a responsabilidade (no plano internacional) do Estado brasileiro quanto ao fato noticiado, o que se dá a partir de premissas fincadas no Direito Internacional. Mesmo tendo a Corte Interamericana decidido que os fatos que lhe foram submetidos configuram crimes contra a humanidade, resta evidente que a intervenção do Direito Penal pátrio obedecerá ao que dispõe a legislação interna, com princípios que lhe são próprios, todos de índole constitucional.


6. Da Ausência de Definição de Crime Contra a Humanidade no Direito Interno.

Cabe registrar, de início, que não existe, no Direito Interno, qualquer definição apta a nortear o que vem a ser crime contra a humanidade, o que se comprova a partir de uma exegese histórica. Aliás, reportando-se ao método histórico, MARIA HELENA DINIZ ressalta que este refere-se ao histórico do processo legislativo, desde o projeto de lei, sua justificativa ou exposição de motivos, emendas, aprovação e promulgação, "ou às circunstâncias fáticas que a precederam e que lhe deram origem, às causas ou necessidades que induziram o órgão a elaborá-la, ou seja, às condições culturais ou psicológicas sob as quais o preceito normativo surgiu (occasio legis)" (DINIZ, 2001, p. 426). Tal concepção também é percebida por SÍLVIO VENOSA, segundo o qual "sob o prisma histórico, o exegeta deve, pois, analisar os trabalhos preparatórios da lei, os anteprojetos e projetos, as emendas, as discussões parlamentares, a fim de ter um quadro claro das condições nas quais a lei foi editada" (VENOSA, 2006, p. 176-177).

Tendo em vista que o Estatuto de Roma (art. 7º) faz referência à expressão crime contra a humanidade, o Poder Executivo Federal, através da Mensagem nº 700/2008, e objetivando dar cumprimento ao compromisso assumido pelo Estado brasileiro junto à comunidade internacional, encaminhou ao Parlamento Federal projeto de lei cuja ementa dispõe sobre o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional, institui normas processuais específicas, dispõe sobre a cooperação com o Tribunal Penal Internacional, e dá outras providências. A Mensagem nº 700 é acompanhada da justificação contida na Exposição de Motivos Interministerial nº 18/2007, ora sintetizada:

O Brasil assinou [...] o Estatuto de Roma que cria o Tribunal Penal Internacional (TPI), instituição [...] com competência para julgar indivíduos responsáveis pelos crimes de genocídio, guerra e contra a humanidade.

2. Após a aprovação de seu texto pelo Congresso Nacional [...], o referido ato internacional passou a vigorar, para o Brasil, em 1º de setembro de 2002. Desde então, faz-se necessária a regulamentação dos tipos penais criados pelo Estatuto de Roma e ainda não previstos em nosso ordenamento jurídico interno.

3. Com exceção do crime de genocídio, já tipificado em lei própria, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade ainda não são previstos em nossa legislação e demandam regulamentação legal. (BRASIL, 2008, grifo nosso)

Em pesquisa junto ao sítio da Câmara dos Deputados, nota-se que a referida Mensagem deu origem ao Projeto de Lei (PL) nº 4.038/2008, cujo art. 17. assim define o que se entende por crime contra a humanidade: "São crimes contra a humanidade os praticados no contexto de ataque, generalizado ou sistemático, dirigido contra população civil, tipificados neste Título" (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2008). Com efeito, a partir da leitura do citado PL, algumas inferências podem ser extraídas: a) não há, no Direito Interno, qualquer definição apta a forjar o conceito de crime contra a humanidade; b) inexiste, no Direito Interno, regra que possibilite afirmar que tais crimes sejam imprescritíveis; c) O Poder Executivo Federal, ao enviar a Mensagem nº 700, sinalizou a necessidade de se regulamentar, no plano doméstico, as previsões contidas no Estatuto de Roma; d) o Poder Legislativo, livre de qualquer pressão, também reconheceu que a carência de tais normas internas inviabilizam a aplicação do Estatuto de Roma. Ora, se o Executivo e o Legislativo reconhecem fundamental regulamentar o Estatuto de Roma no plano interno, conceituando o que se entende por crime contra a humanidade, é evidente que o costume internacional não possui, na seara doméstica, força normativa capaz de afastar a consequência jurídica ínsita à Lei de Anistia, vale dizer, a extinção da punibilidade.


7. Da Imprescritibilidade dos Crimes Contra a Humanidade no Direito Internacional.

O artigo I da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, de 1968, considera imprescritíveis, independentemente da data em que tenham sido cometidos, os crimes de guerra, como tal definidos no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de 1945, e confirmados pelas Resoluções nº 3, de 1946, e nº 95, de 1946, da Assembleia Geral das Nações Unidas, nomeadamente as infrações graves enumeradas na Convenção de Genebra, de 1949, para a proteção às vítimas da guerra. Da mesma forma, são considerados imprescritíveis os crimes contra a humanidade, sejam cometidos em tempo de guerra ou de paz, como tal definidos no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, bem como nas referidas resoluções, assim como a expulsão por um ataque armado ou ocupação e os atos desumanos resultantes da política de apartheid; e, ainda, o crime de genocídio, como tal definido na Convenção de 1948 para a prevenção e repressão do delito de genocídio, mesmo que estes atos não constituam violação do Direito Interno do país onde foram cometidos. Cumpre registrar, desde logo, que pesadas críticas foram lançadas em relação à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, razão pela qual não foi até hoje ratificada por inúmeros Estados, dentre os quais o Brasil, notadamente por prever a incidência retroativa sobre fatos delituosos ocorridos antes de sua entrada em vigor (artigo I), em nítida afronta ao princípio da irretroatividade da lei penal mais severa.

Ainda no âmbito das Nações Unidas, já nos idos de 1974, elaborou-se a Convenção Europeia sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, mas sem a referida previsão de incidência retroativa, instrumento este que foi ratificado por alguns poucos países, dado que torna evidente a completa ausência de consenso sobre tão delicada questão (imprescritibilidade).

Vinte anos depois, surgiu a Convenção Interamericana sobre os Desaparecimentos Forçados, de 1994, aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 127/2011, mas ainda não promulgada por decreto do Executivo, cujo artigo VII considera o desaparecimento forçado de pessoas como crime contra a humanidade e, por isso, imprescritível, estabelecendo, no entanto, uma ressalva:

A ação penal decorrente do desaparecimento forçado de pessoas e a pena que for imposta judicialmente ao responsável por ela não estarão sujeitas a prescrição.

No entanto, quando existir uma norma de caráter fundamental que impeça a aplicação do estipulado no parágrafo anterior, o prazo da prescrição deverá ser igual ao do delito mais grave na legislação interna do respectivo Estado Parte. (BRASIL, 2011)

Por fim, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998, igualmente versou sobre a questão da imprescritibilidade de determinados delitos internacionais, conforme prevê o artigo 29.

Feitas as considerações acima, cabe repisar um importante dado, constante da própria sentença da Corte Interamericana: o Estado brasileiro não ratificou a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, omissão que, segundo a sentença, seria decorrente de pressão política de militares. Tal afirmação desconsidera a própria história e tudo o que se seguiu ao Regime Militar, sobretudo a Carta de 1988, verdadeiro documento comprobatório de um novo Estado, absolutamente comprometido com a edificação de um sólido sistema internacional de proteção dos direitos humanos, conforme demonstram as disposições contidas nos arts. 1º, III; 4º, II, e 5º, § 2º, todos da CF. Por conseguinte, tal falaciosa "pressão militar" efetivamente não existe. Aliás, o Senado Federal, nas informações prestadas quando da ADPF nº 153, pugnou pela inépcia da exordial, uma vez que a Lei de Anistia teria exaurido seus efeitos no mesmo instante em que ingressou no ordenamento jurídico, há mais de trinta anos, na vigência da Constituição anterior (STF, 2010). Da mesma, a Advocacia-Geral da União, livre de qualquer suposta "pressão", assentou que "a abrangência conferida, até então, à Lei n. 6.683/79, decorre, inexoravelmente, do contexto em que fora promulgada, sendo certo que não estabeleceu esse diploma legal qualquer discriminação, para concessão do benefício da anistia, entre opositores e aqueles vinculados ao regime militar" (STF, 2010). Com efeito, é de se admirar a afirmação segundo o qual a ausência de ratificação da referida Convenção seria "fruto de pressão política daquele grupo de militares", posto que os militares, desde o término do governo do presidente João Figueiredo (15/03/1979 a 15/03/1985), não ostentam mais o poder político de outrora.

Assim, tendo em vista a não ratificação da aludida convenção pelo Estado brasileiro, imperioso concluir pela impossibilidade de se acolher a noção de imprescritibilidade estabelecida na dita norma internacional. No mesmo sentido, a opinião de ANDRÉ ESTEFAM:

De ver, contudo, que nosso país ratificou o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional (Decreto Presidencial n. 4.388/2002), o qual prevê a imprescritibilidade relativa a tais delitos em seu art. 29.

Em que pesem respeitáveis opiniões em contrário no sentido da vigência desta regra no plano interno, entendemos que ela encontra barreira intransponível no princípio constitucional da prescritibilidade. (ESTEFAM, 2012, p. 509)

Ao pontuar que nem mesmo o Estatuto de Roma (incorporado ao Direito Interno) supera o que preconiza a Carta da República sobre o tema prescritibilidade, ANDRÉ ESTEFAM demonstra não aceitar que uma convenção que sequer foi ratificada possa gerar compromissos ao Estado brasileiro.

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. A dimensão jurídica da Lei de Anistia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7565, 18 mar. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79513. Acesso em: 22 dez. 2024.

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