6 O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE REGRESSOS NA VISÃO DE JAKOBS
Imagine-se a seguinte situação: A, pretendendo matar B, se dirige a um ponto de táxi e revela ao motorista todo seu intento criminoso. Mesmo ciente do objetivo pelo qual A procurara seus serviços, o taxista (que também odiava B) segue viagem levando o agente ao local onde encontraria a vítima (desejando e esperando a consumação do crime). Pergunta-se: ao taxista poderá ser imputada a prática do homicídio?
Pautando-se nos ensinamentos de Jakobs sobre a teoria da imputação objetiva, na vertente correspondente à proibição de regresso (uma conduta inicialmente lícita não pode conduzir à responsabilização do agente por resultados ilícitos posteriores e cometidos por terceiros, embora relacionadas),se as pessoas se limitarem a agir de acordo com os papéis sociais aos quais foram incumbidas de desempenhar (o taxista tem o papel de dirigir adequadamente; o padeiro de vender pães; o dono da concessionária automobilística de vender carros, etc.), ainda que venham a contribuir para o cometimento de alguma infração penal, não poderão ser responsabilizadas. São essas as palavras do autor [42]:
Estas hipóteses se podem tentar solucionar partindo do fato de que elementos tão cotidianos como um alimento, ou algo que se possa definir arbitrariamente como motivo de um delito, ou uma possibilidade de transporte, sempre estão disponíveis, de modo que a proibição deste tipo de contribuições não é suscetível de evitar, de fato, o comportamento do autor.
Não obstante, na melhor das hipóteses, este modo de argumentar só acertaria pela metade, pois é certo que pode suceder que no caso concreto fosse possível evitar o comportamento do autor. Mas, inclusive se isto ocorresse, e aqui o ponto decisivo, a contribuição do terceiro não só é algo comum, mas seu significado é de modo invariavelmente considerado inofensivo. O autor não pode, de sua parte, modificar esta definição do significado do comportamento, já que de qualquer modo o terceiro assume perante o autor um comportamento comum limitado e circunscrito por seu próprio papel; comportamento comum e do qual não se pode considerar seja parte de um delito.
Desse modo, na proposta de Jakobs, mesmo que o taxista soubesse da finalidade ilícita do tomador de seus serviços, não poderia responder pela infração penal, pois que a atividade de fazer as corridas solicitadas pelos clientes, seja qual for sua utilização, consiste exatamente no papel a ser desempenhado pelo primeiro.
Se, no mesmo exemplo, aplicássemos o processo hipotético de eliminação de Thyrén, teríamos que a conduta do taxista é conditio sine qua non para a produção do resultado. Dessa forma, pode-se falar na presença do nexo objetivo entre a corrida e o homicídio, afinal, sem ela a morte não aconteceria da maneira como ocorreu.
Entretanto, embora tenha havido nexo de causalidade, mesmo com base na doutrina tradicional e seus consectários, é de todo equivocada a afirmação de que ao taxista poderá ser imputada a prática do homicídio. O fato de o último desejar e esperar a consumação do crime, de torcer para que isto ocorra, não nos autoriza dizer que houve adesão de vontade (liame subjetivo), requisito indispensável ao concurso de pessoas. Além disso, desejar, esperar e torcer são sentimentos eminentemente internos e, no escólio de Nilo Batista, uma das funções do princípio da lesividade é exatamente a de "proibir a incriminação de uma atitude interna" [43].
CONCLUSÃO
No decorrer da realização deste artigo foi feita uma abordagem introdutória sobre a relevância que o mundo jurídico tem dado a teoria da imputação objetiva.
Em seguida, passou-se ao desenvolvimento do trabalho propriamente dito, analisando-se primeiramente a teoria da equivalência dos antecedentes causais, adotada por nosso Código Penal [44] no que tange a determinação do nexo de causalidade, e algumas críticas a ela feitas.
Depois, fez-se um esboço do que propõe e para que serve a teoria da imputação objetiva. Expôs-se alguns casos em que a doutrina, defensora de sua adoção, enxerga nela a "solução" para a elucidação de alguns problemas, os quais, como procurei demonstrar, já estavam (e estão) satisfatoriamente resolvidos. Nessa esteira, observa Rogério Greco [45] que "na verdade, a teoria da imputação objetiva, embora muito atraente, encontra resistências, visto que algumas de suas soluções podem e continuam a ser dadas por outros seguimentos teóricos" [46].
Antes do arremate, faz-se necessário dizer que os próprios defensores da teoria da imputação objetiva não chegam a um consenso sobre como e quando aplicá-la. Os autores que a sustentam analisam vários exemplos em que, para os mesmos casos, alguns sugerem a punição enquanto outros a refutam [47].
Insta observar, por fim, que a proposta central deste trabalho foi a de demonstrar que um possível acolhimento da combatida teoria por nossa legislação ou que uma possível aceitação irrestrita de suas idéias pela doutrina, longe de se revelar imprescindível para o direito penal moderno, é por demais desnecessária. Que uma coisa fique bem clara: não procurei advogar a tese de que a teoria da imputação objetiva seja imprestável para solucionar os casos apontados no desenvolver deste artigo. O que tentei demonstrar foi que nosso arcabouço jurídico-penal já conta com institutos bastante suficientes para a resolução de tais situações.
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NOTAS
01 Cf. JESUS, Damásio de. A doutrina brasileira e a teoria da imputação objetiva – alguns posicionamentos. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, dezembro de 2002. Disponível em: .
02 Cf. Julio Fabbrini MIRABETE. Manual de Direito Penal – Parte Geral, p. 110-111.
03 Por não interessarem diretamente ao objeto deste trabalho, as três primeiras teorias não serão abordadas.
04 Há na doutrina quem sustente que não se deve a Stuart Mill e Von Buri a gênese da formulação dessa teoria, como se tem afirmado corriqueiramente, mas sim a Julius Glaser.
05 Há quem defenda na doutrina que o critério da eliminação hipotética não provém do sueco Thyrén, mas sim de Julius Glaser.
06 A exemplo de André ESTEFAM. Direito Penal 1 – Parte Geral, p. 59.
07 Rogério GRECO. Curso de Direito Penal – Parte Geral, p. 236.
08 Op. Cit., p. 112.
09 6ª ed., p. 157, 2003, publicado pela Editora Saraiva
10 A exemplo da análise do elemento subjetivo, do princípio da insignificância, da adequação social da conduta, da teoria do domínio final do fato, da cooperação dolosamente distinta, etc.
11 Como aduz Fernando CAPEZ, o sistema da dupla causalidade alternativa "ocorre quando duas ou mais causas concorrem para o resultado, sendo cada qual suficiente, por si só, para a sua produção" (Curso de Direito Penal – Parte Geral, p. 157).
12 Citado por José Cerezo MIR, apud Rogério GRECO, op. cit. p. 237.
13 Op. cit. p. 158.
14 Op. cit., p. 239.
15 Exatamente nesse sentido é o ensinamento do professor MORAIS, Abel Cardoso. Direito Penal, p. 18.
16 Com base na obra de Richard Honig, Causalidade e Imputação Objetiva, trazida a público em 1930, Claus Roxin e Günther Jakobs desenvolveram e aprimoraram a teoria em apreço, tornando-se, assim, seus principais ícones. No Brasil, seu defensor mais árduo talvez seja Damásio E. de Jesus.
17 Rogério GRECO, op.cit., p. 257.
18 Paulo QUEIROZ, apud Rogério GRECO, op. cit., p. 257-258.
19 Op. cit., p. 61-62.
20 Alcance do princípio da insignificância. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, agosto de 2002. Disponível em: .
21 Quando o legislador penal chamou para si a responsabilidade de tutelar determinados bens, como, por exemplo, o patrimônio, não quis abarcar todo e qualquer tipo de bem material, não importando seu valor. Ao tipificar o furto, obviamente, não o fez pensando em reprimir a conduta daquele que surrupia um palito de dente.
22 Outubro de 2001. Disponível em: .
23 Para ZAFFARONI e PIERANGELI, "a afetação jurídica é um requisito da tipicidade penal" (Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. p. 563).
24 Apud Rogério GRECO, op. cit. p. 56.
25 Possuir arma de fogo em casa, sem registro, configura crime?. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, dezembro de 2001. Disponível em: .
26 Cf. letra B supra.
27 O próprio Supremo Tribunal Federal recentemente decidiu questão semelhante a tratada no exemplo sugerido na letra "C", decidindo pela atipicidade da conduta de portar arma desmuniciada (e sem possibilidade de sê-la municiada prontamente), invocando em fundamentação tão somente o princípio da ofensividade, não mencionando, nem de longe, a teoria da imputação objetiva. Conferir Boletim Informativo do STF n° 349 e as "transcrições" do voto vencedor, da lavra do Min. Sepúlveda Pertence, consignadas no Boletim Informativo n° 385, do mesmo Tribunal.
28 Op. cit., p. 168-169.
29 Direito Penal – Parte Geral, p. 279.
30 Nesse sentido, dentre vários outros: ESTEFAM. op. cit., p. 141; MORAIS. op. cit., p. 45; NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, p. 248; MRABETE, que também é adepto da teoria restritiva complementada pela idéia da autoria mediata, adverte, todavia, que "segundo boa parte da doutrina, porém, o Código, na reforma de 1984, diante da aceitação da teoria finalista da ação, passou a adotar a teoria do domínio final do fato" (op. cit., p. 231).
31 Op. cit., p. 479.
32 Tem tido cada vez mais ressonância também na jurisprudência (STJ, 5.ª T., HC n. 20.819/MS, rel. Ministro Felix Fischer, v. u., j. em 2.5.2002; TJSP, in IBCCrim. – SP 29/99).
33 FUHRER, Maximiluanus C. A. e FUHRER, Maximiliano R. E., Resumo de Direito Penal, p. 90.
34 PACHECO, Wagner Brússolo, apud MIRABETE, op. cit., p. 231.
35 BACIGALUPO, apud Rogério GRECO, op. cit., 479.
36 Op. cit., p. 285.
37 Sobre este dispositivo, ensina Fernando GALVÃO: "No Código Penal Brasileiro, o §1° do art. 13 acolhe fórmula restritiva dos efeitos da teoria da equivalência, em franca concessão à teoria da causalidade qualificada. (...) Fica aqui evidente que a imputação do resultado mais grave não acontece, apesar de ter-se identificado uma de suas causas. Nos termos da equivalência dos antecedentes, a causalidade se apresenta. A imputação (responsabilidade), no entanto, é afastada pela relevância da causa superveniente" (Imputação Objetiva, p. 53-54).
38 ROCHA, Yuri Santana de Brito. Imputação objetiva e fato típico culposo. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 84, 25 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4252.
39 Op. cit., p. 148, nota de rodapé n° 2.
40 Imputação Objetiva, p. 31.
41 Op. cit., p. 135.
42 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal, p. 27-28.
43 Apud Rogério GRECO, op. cit., p. 56. Vale ainda transcrever a lição de GRECO na referida obra (p. 57): "A primeira das vertentes do princípio da lesividade pode ser expressa pelo brocardo latino cogitationis poenam nemo patitur, ou seja, ninguém pode ser punido por aquilo que pensa ou mesmo por seus sentimentos pessoais. Não há como, por exemplo, punir a ira do agente ou mesmo a sua piedade. Se tais sentimentos não forem exteriorizados no sentido de que produzam lesão a bens de terceiros, jamais o homem poderá ser punido por aquilo que traz no íntimo do seu ser. Seria a maior de todas as punições".
44 Nesse sentido, NUCCI (p. 137): "Por ora, parece-nos mais eficiente e menos sujeita a erros a teoria da equivalência dos antecedentes, adotada expressamente, pelo direito penal brasileiro, mantendo-se, para sua aplicação, a ótica finalista".
45 Op. cit., p. 266.
46 Convém citar a precisa crítica feita por Luiz Régis PRADO: "A imputação objetiva do resultado enseja um risco à segurança jurídica e, além disso, conduz lentamente à desintegração da categoria dogmática da tipicidade (de cunho altamente garantista), não delimita os fatos culposos penalmente relevantes e provoca um perigoso aumento dos tipos de injusto dolosos. (...) Longe de obter a uniformização dos critérios de imputação e a necessária coerência lógico-sistemática, a teoria da imputação objetiva do resultado introduz verdadeira confusão metodológica, de índole arbitrária, no sistema jurídico-penal" (...) (Curso de direito penal brasileiro, v. 1, p. 282). E ainda a lição de Cezar Roberto BITENCOURT: "Sintetizando, seus reflexos devem ser muito mais modestos do que o furor de perplexidade que está causando no continente latino-americano. Porque, a única certeza, até agora, apresentada pela teoria da imputação objetiva é a incerteza dos seus enunciados, a imprecisão dos seus conceitos e a insegurança dos resultados a que pode levar! Aliás, o próprio Claus Roxin, maior expoente da teoria em exame, afirma que ‘o conceito de risco permitido é utilizado em múltiplos contextos, mas sobre o seu significado e posição sistemática reina a mais absoluta falta de clareza’" (Erro de tipo e erro de proibição – uma análise comparativa, p. 20-21).
47 Essa "confusão" criada pelos adeptos da combatida teoria é claramente demonstrada por NUCCI, p. 133-138.