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A desnecessidade da teoria da imputação objetiva

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15/02/2006 às 00:00
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RESUMO

O presente artigo científico trata das questões básicas referentes à teoria da imputação objetiva. Dentre outros aspectos, no seu desenvolver faz-se uma abordagem introdutória sobre a relevância que o mundo jurídico tem dado ao tema; aborda-se a questão da determinação do nexo causal e de qual fora a teoria adotada por nosso Código Penal, nesse ponto; expõe-se a opinião da doutrina defensora da teoria da imputação objetiva e, também, o entendimento dos que a rechaçam, analisando-se vários casos. Conclui-se, por fim, ser absolutamente desnecessária a adoção da combatida teoria pelo direito penal brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: Causalidade - imputação objetiva - desnecessidade.


1 INTRODUÇÃO

Possivelmente, o assunto que mais se tem discutido no Brasil nos últimos anos, na seara das ciências criminais, seja a teoria da imputação objetiva. Basta fazer uma pesquisa na internet ou ir a uma livraria e constatar a vasta gama de artigos e livros que se tem publicado sobre este tema, principalmente, a partir do ano de 2000. Nos cursos e manuais de direito penal passou-se também a incluir, às vezes de forma sucinta, noutras mais extensivamente, os seus principais aspectos.

Percebe-se também, bastando para tanto inscrever-se em um seminário sobre direito penal, que as palestras proferidas sobre este assunto têm sido o grande atrativo dos simpósios mais recentes, tornando-se, invariavelmente, o momento mais esperado.

A cada dia as pessoas que militam na área jurídica estudam mais sobre tal teoria. Os concursos públicos com freqüência exigem que os candidatos dela tenham conhecimento. Enfim, definitivamente, é a "bola da vez" [01].

De antemão, alguns questionamentos merecem ser feitos: 1) Em que contexto, no estudo do direito penal, se insere a teoria da imputação objetiva? 2) Esta teoria fora adotada por nossa legislação? E pela doutrina? 3) A teoria da imputação objetiva se mostra imprescindível no direito penal moderno?

As respostas às indagações acima serão elaboradas ao longo deste trabalho, devendo-se frisar que a última pergunta constitui a razão principal deste artigo, o qual procurará demonstrar toda a desnecessidade da teoria supra citada, sendo, pois, totalmente despicienda.


2 A RELAÇÃO DE CAUSALIDADE E A TEORIA DA CONDITIO SINE QUA NON

O nexo causal pode ser visto como um requisito do fato típico, sendo o elo necessário que liga a conduta praticada pelo agente ao resultado por ela produzido. Ausente esse vínculo que une o resultado à conduta levada a efeito pelo agente, não se estabelece a relação de causalidade e, assim, tal resultado jamais poderá ser atribuído ao agente, haja vista não ter sido ele seu causador.

Inúmeras teorias surgiram com o fito de elucidar as nuances da relação de causalidade. Dentre estas, as principais são [02]: a) teoria da causalidade adequada; b) teoria da relevância jurídica; c) teoria da eficiência; d) teoria da equivalência dos antecedentes causais [03].

Conforme preceitua o artigo 13, caput, do Código Penal:

O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

Deste dispositivo, resulta a flagrante adoção da teoria da equivalência dos antecedentes causais [04] - conditio sine qua non - por nossa legislação. Quer isso significar que todos os fatos que antecedem o resultado se equivalem, desde que se revelem indispensáveis à sua ocorrência. Assim, tudo que concorre para a produção do resultado deve ser considerado sua causa.

Para verificar-se se o fato antecedente pode ser tido como causa da alteração do mundo naturalístico, deve-se lançar mão do sistema chamado procedimento hipotético de eliminação, preconizado por Thyrén [05]. Dessa forma, se, suprimindo-se mentalmente o fato, vier a ocorrer uma modificação no resultado, é sinal de que aquele é causa deste último.

Segundo afirma a doutrina [06], uma das preocupações primordiais da teoria da imputação objetiva consiste em restringir o alcance do nexo de causalidade, fundado na teoria da equivalência dos antecedentes, cuja extensão conduz a situações injustas e, às vezes, absurdas, como, por exemplo, quando se afirma a existência de nexo causal entre a ação do vendedor de um veículo automotor (ou até do fabricante!) e a morte provocada por atropelamento.

As principais críticas dirigidas à teoria da conditio sine qua non dizem respeito não só à possibilidade objetiva do regresso causal até o infinito, mas também a algumas hipóteses não solucionadas adequadamente pelo emprego da mesma, pois, conforme aduzem os doutrinadores, "existe falha na teoria da equivalência dos antecedentes causais [07]".

Não merece acolhida, segundo cremos, a argumentação que defende a adoção da teoria da imputação objetiva visando rechaçar a possibilidade de haver o chamado regressus ad infinitum, que poderia ocorrer com a aplicação da teoria da equivalência dos antecedentes. Isto porque, desde há muito, a doutrina, em peso, já solucionara tal problema, propondo a interrupção da cadeia causal no instante em que não houver dolo ou culpa por parte daquelas pessoas que tiveram alguma importância na produção do resultado. Nesse sentido é a lição de Mirabete [08]:

Mesmo estabelecida a relação de causalidade entre o ato e o resultado, a relevância penal da causalidade acha-se limitada pelo elemento subjetivo do fato típico, por ter o agente querido o fato ou por ter dado causa ao resultado ao não tomar as cautelas que dele se exigia, ou seja, só pratica conduta típica quem agiu com dolo ou culpa. A rigor, a adoção do princípio da conditio sine qua non tem mais relevância para excluir quem não praticou conduta típica do que para incluir quem a cometeu.

Ainda sobre este ponto, calha fazer uma observação. Em seu Curso de Direito Penal – Parte Geral [09], o professor Fernando Capez, defensor da teoria da imputação objetiva, vê na aplicação do princípio da conditio sine qua non um problema que pode acarretar o regresso causal até o infinito. Curiosamente, o mesmo autor, no mesmo ano, lançou pela Editora Damásio de Jesus a 10ª ed. de seu Direito Penal – Parte Geral, anotando na página 114, uma lição que contradiz totalmente a acima citada, não enxergando mais, na teoria da equivalência dos antecedentes causais, um problema que gerasse o regressus ad infitnitum, senão vejamos:

Diante da teoria da equivalência dos antecedentes, não poderia haver uma responsabilização muito ampla, na medida em que são alcançados todos os fatos anteriores ao crime?

Os pais não poderiam responder pelos crimes praticados pelo filho? Afinal, sem os pais, este não existiria e, não existindo, jamais poderia ter praticado o crime.

Neta linha de raciocínio, não se chegaria a um regressus ad infinitum?

Resposta: Não. A teoria da equivalência dos antecedentes situa-se no plano exclusivamente físico, resultante da aplicação da lei natural de causa e efeito. Assim, é claro que o pai e a mãe, do ponto de vista naturalístico, deram causa ao crime cometido pelo filho, pois, se este não existisse, não teria realizado o delito. Não podem, contudo, ser responsabilizados por essa conduta, ante a total ausência de voluntariedade. Se não concorreram para a infração, com dolo ou culpa, não existiu, de sua parte, conduta relevante para o Direito penal, pois, como já estudado, não existe ação ou omissão típica que não seja dolosa ou culposa.

Dessa forma, resta patente a absoluta desnecessidade da teoria da imputação objetiva para solucionar a questão (já outrora solucionada) do regressus ad infinitum. Resta-nos indagar: onde está a utilidade de um estudo que vem para desvendar o que é cediço?!


3 ALGUMAS FALHAS NA TEORIA DA EQUIVALÊNCIA DOS ANTECEDENTES

Como dito em linhas volvidas, há inegáveis falhas na teoria da equivalência dos antecedentes. Todavia, todos esses defeitos são contornados com a utilização de outros institutos [10] já existentes e em pleno vigor em nosso sistema jurídico penal, sendo dispensável a adoção da teoria da imputação objetiva com o fito de corrigir tais falhas.

O primeiro defeito ocorre quando não se pode aplicar o procedimento de eliminação hipotética, o qual passa a ceder espaço ao sistema da dupla causalidade alternativa [11] (ou cumulativa). Para entender-se tal situação, confira-se o seguinte exemplo: A e B, com animus necandi, ministram, independentemente, a C uma dose de veneno, cada um despejando um litro de Furadan na comida que vem a ser ingerida pelo último. Abstraindo-se a conduta de A, o resultado concreto (morte) teria ocorrido também como conseqüência da conduta de B. A mesma conclusão chegaríamos se fizéssemos a abstração da conduta de B. Neste caso, se aplicarmos a eliminação hipotética, nenhuma das condutas (a de A e a de B) poderá ser considerada causadora da produção do resultado morte.

Para resolver estes casos, Welzel [12] propõe a seguinte fórmula:

Se existem várias condições das que cabe fazer abstração de modo alternativo, mas não conjuntamente, sem que deixe de produzir-se o resultado, cada uma delas é causa para a produção do resultado.

Assim, se ambas as doses são absolutamente suficientes para atingir seu desiderato, todos os que concorreram para o sinistro devem responder pelo seu dolo (como no exemplo supra ocorreu a morte, A e B devem responder por homicídio consumado).

Fernando Capez [13] detecta outro defeito no princípio da conditio sine qua non, a nosso ver, data vênia, sem qualquer procedência. Seguem as palavras do autor:

Se um médico acelera a morte de um paciente terminal, que já está com danos cerebrais irreversíveis, desligando o aparelho que o mantinha vivo, não poderá ser considerado causador do homicídio, pelo critério da eliminação hipotética, já que, mesmo suprimida a sua conduta da cadeia causal, ainda assim a morte acabaria acontecendo, mais cedo ou mais tarde.

Como dito acima, não merece acolhida a lição supra, pelo fato de a doutrina mais especializada sobre o assunto nos ensinar que causa não é tão somente a conduta sem a qual o resultado não teria ocorrido, mas a conduta sem a qual o resultado não teria ocorrido como ocorreu. Dessa forma, se uma pessoa se encontra dependurada em um fino galho de uma árvore, para não cair em um despenhadeiro, e este galho esta se quebrando aos poucos, em função do peso da pessoa, ainda que se visualize como certo o resultado morte com a quebra do ramo de sustentação, este será imputado a alguém que, objetivando matar a vítima, acaba por despregar a parte da árvore e lançar o ofendido no precipício, pois, sem a conduta do agente, o resultado não teria ocorrido nas circunstâncias em que ocorreu. Nessa esteira, posiciona-se Rogério Greco [14]:

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O agente – concluindo – não deve, como vimos, interferir na cadeia causal, sob pena de responder pelo resultado, mesmo que este, sem a sua colaboração, fosse inevitável.

Então, devemos acrescentar a expressão como ocorreu na redação final do caput do art. 13 do Código Penal, ficando, agora, assim entendido: "Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido, como ocorreu" [15].

Assim sendo, é forçoso concluir que, no exemplo dado por Fernando Capez, o médico que acelera a morte do paciente em fase terminal desligando o aparelho que o mantinha vivo interfere na cadeia causal dos acontecimentos e, por isso, será tido como causador de sua morte, não merecendo respaldo sua afirmação no sentido de que "não poderá ser considerado causador do homicídio, pelo critério da eliminação hipotética".


4 ALGUNS TRAÇOS SOBRE A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA [16]

O interesse primordial dessa teoria é identificar as hipóteses em que alguém pode ser considerado o responsável por determinado resultado jurídico, não sob a ótica meramente causal (relação causa-efeito), mas sob um aspecto valorativo, vale dizer, quando é justo considerar alguém como verdadeiro responsável por determinada lesão ou ameaça de lesão a algum bem jurídico.

Afirma a doutrina que a relação de imputação objetiva constitui elemento normativo implícito do fato típico, cuja função essencial é a de servir como critério restritivo do dogma causal material. "Na verdade, a teoria da imputação objetiva surge com a finalidade de limitar o alcance da chamada teoria da equivalência dos antecedentes causais, sem, contudo, abrir mão desta última. Por intermédio dela, deixa-se de lado a observação de uma relação de causalidade puramente material, para se valorar uma outra, de natureza jurídica, normativa" [17].

A pretensão da teoria da imputação objetiva

não é, propriamente, em que pese o nome, imputar o resultado, mas, em especial, delimitar o alcance do tipo objetivo (matar alguém, por exemplo), de sorte que, em rigor, é mais uma teoria da ‘não imputação’ do que uma teoria ‘da imputação’. Trata-se, além disso, não só de um corretivo à relação causal, mas de uma exigência geral da realização típica, a partir da adoção de critérios essencialmente normativos, de modo que sua verificação constitui uma questão de tipicidade, e não de antijuridicidade, prévia e prejudicial à imputação do tipo subjetivo (dolo e culpa) [18].

Ao estudar a teoria em foco, duas séries de critérios devem ser observadas. A primeira (critérios de atribuição) estipula as situações em que uma conduta e/ou um resultado devem ser atribuídos ao agente e ocorrem quando este: cria ou incrementa um risco não permitido, se opera a realização deste risco proibido, o qual deve encontrar-se dentro do alcance do tipo, isso quer dizer que a esfera de proteção da norma deve-se prender aos lindes dos danos diretamente causados (assim, se A atropela culposamente B, causando-lhe a morte, não será responsabilizado pelo infarto fulminante sofrido pela mãe do último ao receber a notícia do sinistro).

Em contrapartida, há também os critérios de exclusão, os quais impedem a atribuição da conduta ou do resultado ao agente. Dentre outros, os principais são: a criação e a realização de um risco permitido, não desaprovado ou socialmente tolerado; a criação e a realização de um risco irrelevante/princípio da insignificância; a criação de um resultado visando a diminuição do risco; o princípio da confiança; a proibição de regresso, etc.

Por fim, colha-se a lição de André Estefam [19]:

Esquematicamente, o fato típico, nessa nova concepção, teria os seguintes elementos: a) conduta (dolosa ou culposa); b) resultado (nos crimes materiais ou de resultado); c) nexo de causalidade (nos crimes materiais ou de resultado); d) tipicidade; e) imputação objetiva (elemento normativo implícito).

A ilicitude e a culpabilidade não são afetadas dentro do novo sistema. É certo, porém, que muitos problemas penais que antes eram solucionados sob o prisma da ilicitude passam a ser tratados, com a aplicação da teoria da imputação objetiva, como fatos atípicos (é o caso da violência desportiva, das intervenções cirúrgicas e do consentimento do ofendido).

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Sobre o autor
Vinícius Marçal Vieira

Promotor de Justiça no Estado de Goiás. Membro do Núcleo de Apoio Técnico do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente. Membro-fundador do Instituto Goiano de Direito Constitucional. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Pós-graduado em Direito Penal. Exerceu a Advocacia em Goiás e o cargo de Delegado de Polícia do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Vinícius Marçal. A desnecessidade da teoria da imputação objetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 957, 15 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7957. Acesso em: 26 abr. 2024.

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