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O empresário irregular ou de fato e o Direito das Empresas em Crise.

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Agenda 04/08/2023 às 18:07

É possível ser empresário mesmo sem registro na Junta Comercial. Porém, pode não se submeter às regras da lei de falências e recuperações.

Resumo: Volta-se à análise do ordenamento jurídico vigente, incluindo as interpretações doutrinárias, naquilo que se refere à possibilidade de o empresário, individual ou coletivo, irregularmente constituído, vir a ter decretada a sua falência ou deferido o seu pedido de recuperação judicial, tendo em vista o silêncio da Lei nº 11.101/2005, quanto à exigência de regularidade da atividade empresarial, ao delimitar, em seu artigo 1º, o seu âmbito de incidência. Partindo-se de pesquisa bibliográfica, aliada ao exame das disposições legais pertinentes, verifica-se que, embora a princípio a Lei de Recuperações e Falências seja aplicável a qualquer dos devedores empresários não excluídos expressamente do seu regime, existem limitações decorrentes do exercício irregular da empresa, as quais podem ser aferidas a partir dos requisitos legais para o requerimento da falência ou da recuperação judicial. Faz-se possível observar que, embora haja ainda alguma resistência à aceitação do empresário irregular ou de fato como uma situação apta à produção de efeitos jurídicos próprios do regime empresarial, é voz corrente na doutrina mais especializada que a ausência do devido registro na junta comercial competente não afasta a condição de empresário, quando presentes os elementos próprios da atividade empresária, os quais estão definidos no Código Civil. Conclui-se, portanto, que os casos de insubmissão ao regime da Lei nº 11.101/2005, conforme o entendimento atualmente vigente, decorrem das próprias disposições do diploma normativo em referência, não bastando a mera ausência de registro da atividade empresarial para a exclusão do devedor empresário.

Palavras-chave: Lei nº 11.101/2005; Empresário irregular ou de fato; Falência; Recuperação judicial; Limitações; Possibilidade.


INTRODUÇÃO

A Lei nº 11.101, de 9 (nove) de fevereiro de 2005, seguindo uma tendência contemporânea, presente em diversos países, de transformação do direito das empresas em crise, apresenta um viés predominantemente recuperatório, privilegiando a manutenção da atividade empresária, em detrimento de um viés voltado à punição do empresário inapto, comumente aliado à priorização dos interesses dos credores em face de todos os demais interesses.

Essa característica do diploma normativo encontra seu substrato no entendimento, relativamente recente, de que a empresa cumpre uma relevante função social, seja ao produzir bens e serviços, seja ao gerar postos de trabalho ou ao promover a arrecadação de tributos. A Lei, portanto, ao trazer inovações atinentes ao tratamento a ser dispensado ao empresário em situação de crise, fundamentou-se no reconhecimento das importantes contribuições da atividade empresária para a sociedade e para o Estado, bem como dos efeitos deletérios da falência para a coletividade.

Muitos estudiosos, contudo, defendem que a Lei nº 11.101/2005 foi bastante tímida em seu propósito de promoção da função social da atividade econômica, exemplo disso encontra-se na manutenção da distinção entre a insolvência do empresário e a de quem exerce atividade econômica não organizada sob a forma empresária. A esse respeito, defende José Alberto Rôla que a proteção ao crédito público seria muito mais efetiva com a adoção do sistema ampliativo, sujeitando às disposições legais quem quer que exerça atividade econômica2.

Outra crítica dirigida à Lei de Recuperações e Falências repousa na permanência da exclusão das empresas públicas e sociedades de economia mista do âmbito de incidência dos institutos por ela regulados. Para Marlon Tomazzete, incorreu o diploma legal em inconstitucionalidade, em razão do caráter discriminatório da exclusão das empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica, uma vez que estas estão sujeitas ao regime jurídico das entidades de direito privado3.

José Alberto Rôla, por sua vez, entende que a exclusão dessas entidades do novo sistema de recuperação e falência vai de encontro ao objetivo preconizado pela Lei nº 11.101/2005, qual seja o de permitir a recuperação dos devedores e a manutenção das atividades empresárias acometidas pelo estado da insolvência, haja vista que mesmo as empresas administradas pelo Estado ou com participação deste estão sujeitas às situações de crise4.

Nesse contexto, a situação do empresário individual ou sociedade empresária irregular ou de fato se mostra absolutamente relevante, haja vista que estes exercem atividade empresária apta a produzir os mesmos efeitos sociais decorrentes do exercício regular da empresa, os quais, portanto, ensejam o interesse coletivo na atividade.

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Desse modo, o estudo do tratamento dedicado ao empresário irregular ou de fato pela Lei nº 11.101/2005 se faz necessário, pois, consoante ensina Gladston Mamede, os limites da aplicabilidade das disposições legais a tal circunstância fática não se encontram nitidamente delineados, sendo necessário certo esforço do intérprete para que, fazendo o cotejo entre as normas do Código Civil atinentes ao empresário e as regras relativas à recuperação e falência deste, possa identificar e sopesar as limitações impostas pelo novo sistema legal5.

Nesse diapasão, o presente estudo busca oferecer um compilado bibliográfico das principais reflexões empreendidas acerca da possibilidade de o empresário irregular ou de fato vir a se submeter aos processos de falência e de recuperação judicial previstos na Lei nº 11.101/2005.


DO EMPRESÁRIO IRREGULAR OU DE FATO

O conceito de empresário

Ao estabelecer as regras gerais concernentes ao direito de empresa, o Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, em seus artigos 9666, 9817 e 9828, delimitou os conceitos de empresário e de sociedade empresária, expressando que para a caracterização de ambos é exigido o exercício profissional de atividade econômica organizada para a produção e circulação de bens ou serviços ou, em outras palavras, é necessário que haja o exercício da empresa.

É de se notar que o anterior conceito de comerciante fora substituído pelo conceito de empresário, pois, conforme observa José Alberto Rola, o Código Civil de 2002, em seu artigo 2.0459, revogou expressamente a primeira parte do Código Comercial de 185010, e com ela o Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850, o qual, em seu artigo 1911, determinava o que se considerava mercancia, terminando por definir o comerciante.

A esse respeito, ao citar Aclibes Burgarelli, ensina Amador Paes de Almeida que, embora a figura do comerciante tenha sido substituída pela do empresário, este último é um conceito mais amplo do que aquele, uma vez que neste compreende-se também a atividade econômica por meio da produção ou circulação de serviços, não mais se restringindo à produção ou circulação de bens12.

Acerca dos requisitos legalmente exigidos para que uma atividade seja considerada empresária, os quais estão presentes quer se trate de empresário individual, quer de sociedade empresária, ensina Marlon Tomazette que o exercício da empresa consiste em um conjunto de atos voltados para uma finalidade comum, sendo marcado pela economicidade, organização, profissionalidade, produção ou circulação de bens ou serviços, direcionamento ao mercado e assunção do risco pelo titular da atividade13.

Nessa mesma perspectiva, entende Amador Paes de Almeida que são dois os elementos definidores da empresa, quais sejam a natureza de atividade econômica organizada, estando aí compreendida a pessoa do empresário (aspecto subjetivo), o(s) estabelecimento(s) em que a atividade se desenvolve (aspecto objetivo), os empregados (aspecto corporativo) e a atividade considerada de per si (aspecto funcional); e a profissionalidade, traduzida no caráter permanente da atividade empresarial14.

Da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis e atividades afins

Para a constituição do empresário individual ou da sociedade empresária, contudo, acrescenta-se às condições relacionadas ao modo pelo qual a atividade é desenvolvida, outra, de natureza formal, consistente na obrigatoriedade de inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, consoante dispõe o Código Civil em seus artigos 967 e 985:

Art. 967. É obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade.

Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).15

De igual maneira, a Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, ao regulamentar o Registro Público de Atividades Mercantis e atividades afins, explicita, em seu artigo 1º, inciso I, que uma das finalidades do registro é assegurar a validade jurídica dos atos empresariais. Confiram-se, a seguir, os termos legais:

Art. 1º O Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, observado o disposto nesta Lei, será exercido em todo o território nacional, de forma sistêmica, por órgãos federais, estaduais e distrital, com as seguintes finalidades:

I - dar garantia, publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos das empresas mercantis, submetidos a registro na forma desta lei;

...16

Vê-se, portanto, que a concepção jurídica do empresário, individual ou coletivo, somente se completa com a sua inscrição no registro competente, posto que, em se tratado de empresário individual, o Código Civil prescreve a obrigatoriedade do registro e, no caso da sociedade empresária, enuncia o Diploma Civilista que apenas nesse momento ter-se-á o nascimento regular da sua personalidade jurídica. Assim, ainda que seja possível o exercício da empresa sem que esteja formalizada a inscrição do empresário perante a junta comercial competente, tal exercício será tido como irregular, resultando em limitações à atividade empresária.

Do exercício irregular da atividade empresária

Observa-se que a condição de empresário, individual ou coletivo, enquanto agente titular da atividade empresarial, traduz-se em um estado de fato, não sendo possível negar-lhe a existência tão somente pela ausência do registro em conformidade com as disposições legais.

A esse respeito, argumenta Fábio Ulhoa Coelho que o registro no órgão competente não integra o núcleo do conceito de empresário, sendo assim caracterizado aquele que exerce atividade empresária17.

Nesse sentido já se pronunciava Rubens Requião, ao comentar a sistemática anterior ao Código Civil de 2002, afirmando que se constituía o comerciante a partir da prática dos chamados atos de comércio, elencados no artigo 19 do Regulamento nº 737/1850, bem como daqueles previstos no artigo 36 do Decreto nº 1.102, de 21 de novembro de 190318. Defendia, portanto, que o registro na junta comercial consistia em prova da qualidade de comerciante, possuindo natureza meramente declaratória dessa condição, e não constitutiva19.

Contudo, observa Fábio Ulhoa Coelho que a ausência do registro acarreta a negação de certos benefícios aos empresários assim constituídos, os quais não têm legitimidade ativa para o requerimento da falência de seu devedor, não podem requerer a recuperação judicial e estão impossibilitados de terem os seus livros autenticados no Registro de Empresa, além das restrições de caráter administrativo, exemplificadas pela impossibilidade de participação em processos de licitação. Ademais, aponta o jurista que, em se tratando de sociedade empresária, a ausência do registro acarreta a responsabilização solidária e ilimitada dos sócios pelas obrigações contraídas no exercício da atividade empresária20.

Defende, ainda, Fábio Ulhoa Coelho, que é errôneo o entendimento, positivado pelo Código Civil, de que a personalidade jurídica das sociedades empresárias apenas surge com o efetivo registro na junta comercial competente, pois, no seu entender, a personalização da sociedade acontece no instante em que os sócios celebram acordo de vontades, passando a atuar conjuntamente21.

Não obstante, o fato é que o próprio Diploma Civilista estabelece, em seus artigos 986 e seguintes22, regras especiais a serem observadas pelas sociedades ainda não inscritas no Registro Público de Empresas Mercantis, dispondo que a elas, as quais são denominadas sociedades em comum, serão aplicadas, em caráter subsidiário, as normas referentes às sociedades simples, naquilo que com estas guardem compatibilidade.

Em relação às sociedades em comum, dispõe o Enunciado nº 58, aprovado na Primeira Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, que no instituto, previsto no Código Civil de 2002, estão compreendidas as figuras da sociedade irregular e da sociedade de fato: “58 – Arts. 986 e seguintes: A sociedade em comum compreende as figuras doutrinárias da sociedade de fato e da irregular”.23

Importa considerar, nesse sentido, a distinção apontada por Rubens Requião. Para o comercialista, a sociedade irregular seria aquela que, embora possuindo contrato escrito, não teve a inscrição efetuada perante o Registro de Comércio, enquanto a sociedade de fato seria aquela constituída à margem de qualquer formalidade, não possuindo sequer contrato firmado entre os sócios24.


A LEI Nº 11.101/2005 E O EXERCÍCIO IRREGULAR DA EMPRESA

A Lei nº 11.101/2005 estabelece, em seu artigo 1º, a quem as suas disposições se aplicam, limitando-se a apontar o empresário individual e a sociedade empresária, omitindo-se em fazer qualquer referência à exigibilidade de regularidade do exercício da atividade empresária: “25

Em relação aos termos empresário e sociedade empresária eleitos pelo legislador ordinário, explica Marlon Tomazette que quando a Lei se refere ao empresário, está fazendo alusão ao empresário individual, à pessoa física que exerce a atividade empresária em nome próprio, assim como às Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada (EIRELIs). Salienta o jurista, no entanto, que o empresário individual, a EIRELI e a sociedade empresária constituem espécies do gênero empresário, a quem se dirigem as disposições legais26.

Considerando-se as disposições legais supracitadas, e tendo em conta que o entendimento majoritário, contemporaneamente, é tendente a aceitar a compreensão do empresário irregular ou de fato no conceito legal de empresário, predomina a inteligência de que aquele não está excluído da disciplina legal, salvo quando houver restrições decorrentes da própria lei.

Nessa perspectiva, tem-se o escólio de Marlon Tomazette, que, ao discorrer acerca do tema, defende que se aplicam aos empresários irregulares, isto é, aos empresários não registrados e aos impedidos de exercerem a titularidade de atividade empresária, as disposições da Lei de Recuperações e Falências, por força do seu artigo 1º, que não faz quaisquer exigências além da qualidade de empresário individual ou de sociedade empresária do devedor27.

No mesmo sentido se posiciona Amador Paes de Almeida, ao entender que a Lei nº 11.101/2005 não exige que esteja o devedor inscrito no Registro de Empresas, nem obriga o credor requerente da falência a fazer prova da condição de empresário do devedor28.

Também Gladston Mamede assume tal posicionamento, observando que a Lei nº 11.101/2005, em seu artigo 1º, revela que as suas disposições aplicam-se ao empresário, e este, nos termos estatuídos pelo Código Civil, constitui-se antes da sua inscrição no registro competente, uma vez que o Diploma Civil fala em obrigatoriedade da inscrição do empresário29.

Faz-se relevante observar, ainda, que a Lei de Recuperações e Falências, em seu artigo 2º, enumera os casos em que as suas disposições não são aplicáveis, fazendo-o nos seguintes termos:

Art. 2º Esta Lei não se aplica a:

I – empresa pública e sociedade de economia mista;

II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.30

Conclui-se, desse modo, que mais uma vez a Lei não pretendeu excluir do seu âmbito de incidência o empresário irregular ou de fato, tendo em vista que mesmo não tendo o legislador a intenção de elencar um rol taxativo das atividades empresárias excluídas do seu âmbito de incidência, em nenhum momento a abertura do alcance do dispositivo conduz a uma interpretação voltada à exclusão do empresário irregular ou de fato. Nessa perspectiva, entende Gladston Mamede que a expressão “e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores”31

Acrescente-se, ademais, que a Lei nº 11.101/2005 prevê explicitamente a possibilidade da sociedade empresária irregular ou de fato vir a falir, em seu artigo 105, inciso IV32, ao permitir ao devedor a instrução do pedido de autofalência tão somente com a indicação dos sócios, dos seus endereços e dos seus bens pessoais, em não havendo contrato social ou estatuto social em vigor.

Ora, o registro da sociedade empresária se dá mediante a inscrição de seus atos constitutivos na junta comercial competente, conforme assinala o supracitado artigo 985 do Código Civil. Assim, conclui-se que há permissão legal expressa para a sociedade empresária devedora requerer a autofalência, ainda que não esteja devidamente registrada.

Nessa mesma perspectiva, Rubens Requião, ao comentar o artigo 8º, inciso III do revogado Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 194533, entendia que tanto a sociedade irregular quanto a sociedade de fato estavam sujeitas à falência, por previsão expressa do texto legal34.

Sobre a autora
Antonia Angélica Pinto de Araújo

Graduanda em Direito, Universidade Federal do Ceará, Estagiária, Ministério Público Federal, Fortaleza, Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Antonia Angélica Pinto. O empresário irregular ou de fato e o Direito das Empresas em Crise.: Legitimidade ativa e passiva nos processos de recuperação e falência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7338, 4 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79580. Acesso em: 22 dez. 2024.

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