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A constitucionalização da readaptação: comentários ao texto da EC n° 103/2019

Agenda 17/02/2020 às 01:06

A Reforma da Previdência, implementada pela EC n° 103/2019, constitucionalizou o instituto da readaptação. Este breve ensaio busca promover reflexões quanto à referida forma de provimento derivado de cargos públicos.

Considerações iniciais

A readaptação é uma forma de provimento derivado dos servidores públicos, regulamentada nos diversos regimes jurídicos da federação. Todavia, com a recente promulgação da Emenda Constitucional-EC nº 103/2019, esse instituto passou a ter assento constitucional.

O objetivo deste breve ensaio, muito mais do que oferecer respostas, é apresentar provocações, contribuindo para a reflexão em face da nova normatividade e das possíveis situações que poderão ocorrer no âmbito da Administração Pública.


A readaptação na legislação estatutária

Conforme já mencionado, antes mesmo da previsão da readaptação na CF de 1988, essa espécie de provimento derivado já encontrava suporte nas diversas leis que instituíram os regimes jurídicos dos servidores dos entes federativos. Não é demasiado ressaltar que o provimento derivado se caracteriza pelo provimento de novo cargo público por servidor que já possuía vínculo com a Administração Pública, submetido ao mesmo regime jurídico. É o caso da readaptação, situação em que o agente público, em virtude de sofrer alguma limitação física ou mental que o impede de exercer as atribuições do cargo para o qual foi nomeado, passa a ocupar novo cargo.

A Lei Federal nº 8.112/1990, Regime Jurídico dos Servidores Civis da União, exemplificativamente, assim regulamenta o instituto em tela:

Art. 24. Readaptação é a investidura do servidor em cargo de atribuições e responsabilidades compatíveis com a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental verificada em inspeção médica.

§ 1º Se julgado incapaz para o serviço público, o readaptando será aposentado.

§ 2º A readaptação será efetivada em cargo de atribuições afins, respeitada a habilitação exigida, nível de escolaridade e equivalência de vencimentos e, na hipótese de inexistência de cargo vago, o servidor exercerá suas atribuições como excedente, até a ocorrência de vaga.

Dessa forma, a Lei Federal nº 8.112/1990 dispõe que a readaptação deve ocorrer em cargo com atribuições compatíveis com a limitação sofrida pelo servidor. Caso julgado incapaz, será aposentado. Destaca-se ainda que o § 2º do artigo 24, que determina que a readaptação se dê em cargo com atribuições afins, sendo ainda necessário levar em conta a habilitação exigida, o nível de escolaridade e equivalência e vencimentos. Na hipótese de inexistência de cargo, determinou o legislador que o servidor exerça as atribuições do cargo em que for readaptação como excedente, até surgir vaga.

Em relação ao dispositivo, cabe sublinhar que a doutrina o interpretava no sentido de que se o cargo de origem exigisse determinado nível de escolaridade, necessário que o provimento derivado por readaptação ocorresse em cargo que possuísse a mesma exigência de escolaridade. Nesse sentido Almeida, ao discorrer sobre a readaptação: “Assim, se, por exemplo, o cargo de origem do servidor exigir nível médio de escolaridade, não poderá ocorrer a readaptação em cargo de nível superior (2019, p. 201). No mesmo sentido se posicionou Martins, ao apontar que “não se admite que um servidor venha a exercer atribuições de cargo que possua nível de escolaridade superior ou inferior” ao antes titulado (2016).

Novamente se valendo da lição de Almeida, em relação à previsão legal de o servidor readaptado exercer atribuições como excedente: “Atuar como excedente significa trabalhar normalmente até que surja um cargo vago, quer pela aposentadoria de algum servidor, ou até pela sua demissão”, de forma que, ao surgir a vaga, esta será garantida ao servidor (2019, p. 201).


A readaptação na Constituição Federal

Com a promulgação da EC nº 103/2019, a readaptação passou a ter previsão expressa na CF/1988, sendo pertinente destacar o que dispõe o § 13 do artigo 37:

§ 13. O servidor público titular de cargo efetivo poderá ser readaptado para exercício de cargo cujas atribuições e responsabilidades sejam compatíveis com a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental, enquanto permanecer nesta condição, desde que possua a habilitação e o nível de escolaridade exigidos para o cargo de destino, mantida a remuneração do cargo de origem.

O primeiro ponto a se destacar é no sentido de que a regra constitucional da readaptação se destina somente ao titular de cargo efetivo. Ainda, da mesma forma que prevê a Lei Federal nº 8.112/1990, determina que a readaptação ocorra em cargos cujas atribuições sejam compatíveis com a limitação sofrida pelo servidor. A norma constitucional torna evidente que a readaptação só vai perdurar enquanto o servidor permanecer na situação de limitação física ou mental.

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Questão interessante é de que a regra prevista no § 13 do artigo permite a interpretação de que o servidor deve possuir a habilitação ou o nível de escolaridade exigidos para o cargo de destino. Ou seja, nessa possível interpretação não haveria necessidade de que o cargo de origem e o de destino apresentassem os mesmos requisitos legais de habilitação e nível de escolaridade, mas sim que o servidor, como condição pessoal, implementasse tais requisitos. Nessa perspectiva, sendo as atribuições do cargo de destino compatíveis com a limitação sofrida pelo servidor, este, desde que comprove os requisitos de habilitação e escolaridade, poderia prover o cargo de destino, ainda que de escolaridade distinta do cargo de origem. Além do mais, a linguagem versada pelo constituinte também admite que nessa situação o servidor mantenha a remuneração do cargo de origem.

Em relação a essa possível interpretação, ou seja, a comprovação do servidor de que apresenta a habilitação e nível de escolaridade do cargo de destino, são necessárias algumas ponderações.

O instituto da readaptação encontra fundamento em princípios constitucionais, sendo necessário, para interpretação do instituto, justificar sua existência. Assim, na perspectiva do servidor, é um tratamento consentâneo com a dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho a permissão para continuar prestando serviços, não obstante as limitações de saúde que sofreu. Na dimensão da Administração Pública, a readaptação significa a possibilidade de não aposentar determinado servidor por invalidez e continuar contando com sua força de trabalho. Logo, a readaptação não foi criada com o propósito de burlar a regra de acesso a cargos efetivos por meio do concurso público.

Nesse sentido, crê-se que a Administração, regra geral, deve se valer de todos os esforços para que a readaptação se dê em cargo que demande a mesma habilitação, nível de escolaridade e vencimentos do cargo de origem. Ademais, em que pese não estar expresso no texto constitucional, é pertinente que, na medida do possível, essa readaptação ocorra em cargo com atribuições semelhantes àquelas previstas para o cargo anteriormente ocupado.

Ou seja, entende que na interpretação e aplicação da regra, somente em situações excepcionalíssimas é possível a readaptação em cargo que exija habilitação ou nível de escolaridade não previstas para o cargo anteriormente titulado pelo servidor, ou ainda sem respeitar a equivalência de vencimentos. Nessas situações excepcionais, é fundamental que o ato derivado esteja devidamente motivado, a fim de possibilitar o controle por parte do Poder Judiciário e dos tribunais de contas. Cabe ainda ressaltar que essa excepcional situação não se confunde com a ascensão, forma de provimento derivado na qual o servidor passa a titular, sem concurso público, cargo de carreira diversa, o que não é aceito pela jurisprudência da Suprema Corte (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 231/RJ, v.g.). Isso, pois a readaptação, conforme já observado, possui uma justificação principiológica específica que a distingue da ascensão. Ou seja, não tem a finalidade de embaçar a ampla acessibilidade aos cargos públicos.

Ainda no que tange à excepcional hipótese de readaptação em cargo que demande habilitação e escolaridade diversa do cargo de origem, é importante a correta interpretação da parte final do § 13 do artigo 37.

É possível depreender que o constituinte, ao se valer da expressão “mantida a remuneração do cargo de origem”, tinha por objeto garantir, de forma expressa, mesmo no caso de readaptação, a irredutibilidade de vencimentos.

Por outro lado, a imposição da manutenção da remuneração do cargo de origem pode ser de difícil aplicação, caso a Administração, de forma excepcional, promova a readaptação em cargo de remuneração superior. Essa situação pode configurar uma injustificada quebra de isonomia de tratamento a servidores que exercem idêntica função pública, além de caracterizar, como consectário lógico, enriquecimento ilícito do Estado. Quando ocorrer o inverso, ou seja, na hipótese de o servidor ser readaptado em cargo de remuneração inferior, ressalta-se novamente que há a incidência da garantia da irredutibilidade remuneratória, harmônica com a justificação principiológica da readaptação. Nessa última hipótese, entende-se que não seria o caso de violação à igualdade em relação aos agentes públicos que exercerão as mesmas funções públicas do servidor readaptado, em face da especial situação do agente público que sofreu limitações em sua saúde.

A bem da verdade, essas últimas observações ressaltam ainda mais a necessidade de que a Administração empreenda todos os esforços para que a readaptação se dê em cargo com mesmo nível de habilitação e escolaridade do cargo de origem, além de observar a equivalência de vencimentos.

Outro aspecto que merece reflexão é a necessidade de o servidor ser estável ou não para poder ser readaptado. Destaca-se que não é requisito para concessão de aposentadoria por invalidez a estabilidade, o que, aliás, não seria consentâneo com a proteção previdenciária em situações de infortúnios. Ademais, não se olvida que a CF de 1988 determina que o servidor somente seja aposentado quando insuscetível de readaptação, nos termos do artigo 40, § 1º, inciso I, na redação da EC nº 103/2019. Dessa forma, a constitucionalização da readaptação como espécie de provimento derivado e como requisito à concessão da aposentadoria por invalidez, tornam ainda mais evidentes a conclusão de que é possível esta forma de provimento derivado inclusive no curso do estágio probatório.


Conclusões

Conforme mencionado introdutoriamente, a finalidade desse breve estudo era provocar reflexões acerca da readaptação, guindada recentemente ao texto constitucional.

Em síntese, observou-se que a regra do artigo 37, § 13 da CF/1988 demanda que a readaptação é exclusiva para titulares de cargo efetivo, sendo temporária, ou seja, enquanto perdurar a limitação de saúde do servidor. Na interpretação proposta, a fim colaborar com o discurso de fundamentação da norma, é importante compreender que a readaptação não deve ser interpretada como uma espécie de burla à regra do concurso público, mas sim como um tratamento digno aos servidores que sofreram uma limitação física ou mental e, simultaneamente, conveniente aos desígnios da Administração Pública.

O texto versado pelo constituinte permite a interpretação de que o servidor a ser readaptado deve apresentar, como condição pessoal, habilitação e nível de escolaridade exigidos para titulação do cargo de destino.

Contudo, considerando a própria fundamentação do instituto da readaptação, que não visa burlar a ampla acessibilidade aos cargos públicos por meio de concurso público, compreende-se que a Administração, em regra, deve se valer de todos os esforços para que a readaptação se dê em cargo que demande a mesma habilitação, nível de escolaridade e vencimentos do cargo de origem. Também se concluiu a pertinência de, na medida do possível, a readaptação ocorra em cargo com atribuições semelhantes àquelas previstas para o cargo anteriormente ocupado.

Somente situações excepcionalíssimas seria possível, portanto, a readaptação em cargo que exija habilitação ou nível de escolaridade não previstas para o cargo anteriormente titulado pelo servidor, ou ainda sem respeitar a equivalência de vencimentos. Em tais situações, a fim de possibilitar o controle, é necessária a devida justificação dos atos administrativos.

Dentre as reflexões propostas, entendeu-se que em qualquer situação deve ser observada a irredutibilidade de vencimentos do servidor que será readaptado. Na excepcional situação de o servidor ser readaptado em cargo de remuneração superior, entende-se que o servidor deve perceber a diferença, sob pena de quebra de isonomia. Contudo, ressalta-se novamente que a Administração deve empreender seus esforços para garantir a equivalência de vencimentos.

Por fim, destacou-se que a readaptação atualmente é requisito constitucional para a aposentadoria por invalidez. Tal modalidade de inativação não demanda a estabilidade como requisito, de sorte que se alcança a conclusão de que a readaptação pode ocorrer no curso do estágio probatório.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Fabrício Bolzan de. Manual de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/emendas/emc/emc103.htm. Acesso em: 13 fev. 2020.

BRASIL. Lei Federal nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm. Acesso em: 13 fev. 2020.

MARTINS, Bruno Sá Freire. Os limites da readaptação no regime próprio. Disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/colunas/previdência-do-servidor/os-limites-da-readaptacao-no-regime-proprio. Acesso em: 12 fev. 2020.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 231. Relator: Ministro Moreira Alves. Brasília, 05 ago. 1992.

Sobre o autor
Jonas Faviero Trindade

Mestre em Direito. Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Regimes Próprios de Previdência. Especialista em Teoria e Filosofia do Direito. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Processual Público - CEISC-UNISC.

Informações sobre o texto

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