1- Considerações Preliminares
A formação do processo ocorre no instante em que a demanda é proposta, iniciando-se desde esse momento, a litispendência(1). Inicialmente a litispendência produz efeitos apenas perante o demandante. Somente com a citação válida ela gera efeitos perante o demandado, é nesse momento que a relação jurídica processual se perfaz. (2)
Tal exigência é corolário do direito ao contraditório e do direito à ampla garantidos pelo inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal. O processo não pode produzir efeitos nem prosseguir na sua caminhada sem que o demandado seja convidado a se defender.
Com a citação válida, a litispendência passa a produzir uma série de efeitos perante o demandado. Efeitos de ordem processual e material.
São efeitos processuais da litispendência: complementar a relação jurídica processual, prevenir o juízo nos casos de competência concorrente, induzir litispendência(3) e estabilizar a demanda.
Os materiais são: fazer litigiosa a coisa, constituir o réu em mora e interromper a prescrição.
Traçado esse panorama, passaremos agora à análise do tema proposto.
2- A interrupção da prescrição
(4)Nosso objeto de análise será um dos efeitos materiais da litispendência, a interrupção da prescrição. (5)
Conforme a disciplina do nosso Código de Processo Civil, a mera propositura da demanda(6) possui o condão de interromper a prescrição. Tal interrupção ocorre em caráter provisório, sendo ratificada posteriormente pela citação válida do demandado. (7) É a citação válida, portanto, que interrompe a prescrição.
Passado tal momento, integrado o demandante à relação jurídica processual, caso o processo caminhe normalmente e seja extinto com o julgamento de seu mérito, nenhuma dúvida surgiria quanto á interrupção da prescrição.
O problema surge, e esse é o tema do nosso trabalho, no caso da extinção do processo sem julgamento do mérito. A prescrição seria interrompida? Os efeitos da citação persistiriam ou seriam apagados por completo?
3- Interrupção da prescrição e a extinção do processo sem julgamento do mérito.
Tal questão tem sido objeto de grandes controvérsias na doutrina e na jurisprudência.
Julgados do Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo e do Supremo Tribunal Federal corroboram a tese de que em tais condições a prescrição não seria interrompida:
"prescrição Interrupção Citação em demanda anterior extinta sem julgamento do mérito Inocorrência Não interrompe a prescrição a citação realizada em processo anterior extinto sem julgamento do mérito". (8)
"Extinção do processo sem julgamento do mérito Artigo 175 do Código Civil Desaparecimento do efeito interruptivo da citação, dado o efeito ex tunc da decisão.". (9)
"Julgado extinto o processo sem julgamento do mérito, cessaram os efeitos da citação, notadamente o de interromper a prescrição.
Na Segunda execução entende-se por válida a citação nela realizada, não aproveitando, para interrupção da prescrição, a citação feita no processo findo". (10)
"como a absolvição da instância extingue o processo em todos os seus efeitos processuais e de direito material, incluindo-se assim a citação, deixa esta de produzir a interrupção da prescrição". (11)
O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, entende de forma diversa:
"processual civil Previdenciário Reajuste de benefício Ação contra o INSS Citação válida Causa interruptiva da prescrição Decreto n. 20.910/32 e súmula n. 85/STJ.
- Extinto o processo, sem apreciação do mérito da pretensão material deduzida em juízo, por inépcia da inicial, tendo em vista a ausência de apresentação de documentos tidos como essenciais, é de se reconhecer a eficácia do ato citatório e, de conseqüência, a ocorrência de causa de interrupção do prazo prescricional". (12)
"processual civil Prescrição Interrupção Causa válida.
Se a ação anterior, ajuizada no curso do prazo prescricional, foi extinta por inépcia da inicial, não afetando o direito vindicado, e sendo certo que a citação foi válida, e, portanto, interrompendo o prazo, forçoso é reconhecer que a hipótese não está alcançada pela prescrição do direito de ação, a teor do disposto na Súmula 85 do STJ". (13)
Na doutrina o assunto também é bastante controvertido. Para Arruda Alvim a prescrição não seria interrompida:
"nas hipóteses de extinção do processo, sem julgamento de mérito, (nos casos do art. 267, II e III) de um modo geral, os efeitos oriundos da citação inicial válida ficam despidos de valor, tal como se a citação nunca tivesse existido.
Ou, em outras palavras, com a extinção do processo, nesses dois casos, desfaz-se a relação jurídica processual que se formara com a citação inicial válida. Se, realizada a citação, fora a prescrição interrompida, ou se impedira a consumação da decadência ocorrendo a extinção do processo, sem julgamento do mérito, tais efeitos desaparecerão, isto é, o direito que não teria prescrito, prescreverá, e a decadência que não se teria consumado, ter-se-á consumado". (14)
Já para Cândido Rangel Dinamarco, Eduardo Arruda Alvim e Antônio Luís da Câmara Leal:
"segundo o Código de Processo Civil, a citação válida é apta a interromper a prescrição, ainda quando determinada por juiz incompetente (com aquela construção tradicional e bastante conhecida, segundo a qual a prescrição se considera interrompida já ao aforamento da demanda: art. 219). Essa disposição é bastante harmoniosa com o sistema do processo civil comum, que manda prosseguir o processo perante o juiz que seja competente, em todos os casos. Como o processo das pequenas causas não prossegue e se extingue quando a incompetência é declarada, poderia parecer que aqui a solução fosse diferente e, extinto o processo pela incompetência, não mais se considerasse interrompido o curso do lapso prescricional. Não é assim, todavia. Inexiste disposição contrária ao art. 219 do Código de Processo Civil e sem a evidência de uma situação incompatível com ele não é lícito ao intérprete impor distinções e diminuir o alcance daquele dispositivo. Ao contrário, as normas que conduzem à perda do direito é eu merecem muita cautela e interpretação eventualmente restritiva, porque o normal é a satisfação das obrigações, e a sua extinção por prescrição é que é excepcional. Por isso, extinto o processo das pequenas causas sem julgamento do mérito, mesmo em virtude de incompetência, a interrupção da prescrição é efeito já produzido e que permanecerá; a prescrição recomeça a correr, como quer o art. 173 do Código Civil, do dia em que preclusa a sentença de extinção". (15)
"importante consignar que havendo extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267, I a XI), há quem entenda que os efeitos da citação desaparecem por completo, como se nunca houvessem existido (há opiniões contrárias a este posicionamento específico). Para nós, operam-se, contudo, efeitos tais como a interrupção da prescrição e constituição em mora (caput do art. 219)". (16)
"diversos Códigos estrangeiros consideram a prescrição como não interrompida, apesar da validade da citação, se o autor desiste da ação, ou a demanda se torna perempta, ou é rejeitada. Nesse sentido dispõem os Códigos francês, italiano, alemão e chileno.
Nosso legislador, porém, tendo dado à citação, em si, o efeito de interromper a prescrição, só à nulidade desde, por defeito de forma, ou à sua ineficácia por circundução, ou à sua inadmissibilidade por perempção da instância ou da ação, é que se atribui o efeito de impedir a interrupção prescricional". (17)
Pontes de Miranda, apesar de preferir, de lege ferenda que a prescrição fosse interrompida, acredita haver encontrado no art. 175 do Código Civil a solução para o problema:
"quanto à extinção do processo (= perempção da instância), seria de discutir-se se a) se apaga a citação, desde o despacho, ou b) se esse fica incólume, por se tratar de eficácia de direito material, que haveria de permanecer, a despeito do desaparecimento, ex tunc, da relação jurídica processual. Tal solução de lege ferenda seria a melhor; porque a relação jurídica processual é efeito próprio processual da citação e a interrupção da prescrição efeito próprio de direito material. Todavia, há lei escrita, Código Civil de 1916 (art. 175): a prescrição não se interrompe com a citação nula por vício de forma , por circunduta, ou por se achar perempta a instância, ou a ação. A própria redação é má: primeiro, porque a perempção da instância não produz nulidade da citação (toda razão de nulidade ou de anulação é anterior, ou, pelo menos contemporânea ao ato jurídico de direito material ou de direito formal); segundo, a perempção (ou absolvição) da instância faz não ter sido a relação jurídica processual e o efeito interruptivo é efeito próprio da citação (razão por que a citação nula por incompetência do juízo pode tê-lo, art. 172, I). O Código Civil de 1916, art. 175, preexclui o efeito de direito material se a instância vem a ser perempta. É a regra jurídica escrita, que derroga os princípios". (18)
Yussef Said Cahali também tece suas considerações com vistas ao artigo 175 do Código Civil:
"parece-nos mais técnico o sistema do nosso Código Civil, a que se permite, como regra de direito material, elidir a eficácia interruptiva da prescrição, atribuída à citação que se promoveu no processo, no qual, por julgado extinto sem julgamento do mérito, nenhum proveito terá resultado à pretensão do demandante". (19)
Ora, tal dispositivo destoa totalmente da disciplina que o nosso direito confere à matéria. A citação válida em um processo extinto sem o julgamento do mérito produz, no mínimo, os mesmo efeitos que o protesto, que é uma das causas interruptivas da prescrição. A citação válida, mesmo com a extinção do processo sem julgamento do mérito, demonstra, para o devedor e para a sociedade, que a pessoa que detêm o direito não está inerte, o que enseja, sob o risco de que se cometa grandes injustiças, a interrupção da prescrição. Na vida dos direitos, a regra é a satisfação. A prescrição é exceção e como tal deve ser tratada.
Não bastasse essa justificativa sistemática, à medida que o Código de Processo Civil adentrou no ordenamento jurídico brasileiro, regulamentando sistematicamente toda a matéria referente aos efeitos da litispendência (dentre os quais a interrupção da prescrição), todas as normas que disciplinavam anteriormente a matéria foram revogadas. O artigo 175 do Código Civil foi excluído do nosso sistema. É a modalidade de revogação denominada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior de revogação global. Conforme o eminente mestre, ela "ocorre por meio de uma norma revogadora implícita, sem a necessidade de incompatibilidade, bastando que a nova norma, por exemplo, discipline integralmente uma matéria, mesmo repetindo certas disciplinas da norma antiga. Assim, se viesse a ser promulgada uma lei geral das obrigações, ainda que esta repetisse muitas disposições do Código Civil e Comercial, todas elas ficariam revogadas porque a matéria foi reformulada integralmente". (20) Portanto, ao contrário do alegado por Pontes de Miranda e por Yussef Cahali, não há no direito brasileiro nenhuma norma expressa sobre o tema.
Para nós, via de regra, tendo-se em vista não existir na disciplina dada à matéria pelo Código de Processo Civil nenhuma exceção ao disposto no caput do art. 219 do Código de Processo Civil, "a citação válida...interrompe a prescrição", a citação válida, mesmo que operada em processo extinto sem o julgamento do mérito, possuirá o condão de interromper a prescrição.
As soluções apresentadas nesse sentido pecam, não obstante, por tratarem uniformemente todas as situações em que o processo é extinto sem o julgamento do mérito. [21] É necessário introduzir ressalvas a elementos sistemáticos que eventualmente venham a excepcionar essa disciplina. Haverá casos em que a citação operada nessas condições não possuirá o condão de interromper a prescrição.
Como exemplo, sem excluir a existência de outras possíveis exceções, pode-se citar o caso da extinção do processo sem julgamento do mérito em virtude de ilegitimidade ad causam. Proposta a demanda por pessoa que não possui legitimidade para tanto ou em face de quem não é parte legítima para figurar em seu polo passivo, a prescrição não é interrompida. A ressalva deve-se ao disposto no artigo 472 do Código de Processo Civil o qual impede que a coisa julgada produza efeitos perante terceiros. Daí a impossibilidade de o sujeito legitimado para propor uma demanda se locupletar de uma pretensa interrupção da prescrição operada em processo extinto sem julgamento do mérito do qual ele não foi parte. Assim como no caso de demanda proposta em face de pessoa que não possua legitimidade para figurar no polo passivo. A citação realizada em tal processo não interrompe a prescrição perante aquele em face de quem a demanda deveria ser proposta.
NOTAS
- - litispendência em sentido técnico, indicando a existência de "processo pendente".
- - antes da citação apenas o demandante e o juiz participam da relação jurídica processual, com a citação ela se angulariza e o demandado também passa a fazer parte.
- - litispendência em sentido vulgar como proibição, do demandante após proposta a demanda e do demandado após a citação válida, de propor nova demanda idêntica (mesmas partes, mesma causa de pedir e mesmo pedido) a que foi proposta.
- - A prescrição é tradicionalmente definida pela doutrina, arraigada à concepção imanentista da ação, como um fenômeno de direito processual, a prescrição seria a "morte da ação". Tal concepção vai totalmente de encontro com as novas conquistas da ciência processual, sob tais influxos a prescrição há de ser concebida como um fenômeno de direito material. "a interrupção da prescrição é efeito de direito material atribuído à citação". Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, tomo III: arts. 154 a 281, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, p. 239.
- - Tais considerações também valem para a decadência.
- - essa disciplina é introduzida com o intuito de evitar que o demandado tente "fugir" da citação, o que poderia ser uma fonte de grandes problemas para o concretização do escopo máximo do processo, a pacificação com justiça. Esse efeito da litispendência, que de acordo com a disciplina anteriormente exposta deveria operar perante o réu apenas após a sua citação válida, por razões pragmáticas, é corretamente antecipado em caráter provisório.
- - é o que se depreeende de uma interpretação conjunta do caput e do §1º do art. 219 do Código de Processo Civil.
- - 2º TAC, Ap. n. 510.135, 2ª Câm., Rel. Juiz Vianna Cotrim, j. 2.3.98.
- - 1º TAC, Ap. n. 0421498, 2ª Câm., Rel. Juiz Jacobina Rabello, v.m., j. 27.9.89, publicado na RT 647/130.
- - STF, AG n. 92.546/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Alfredo Buzaid, v.u., j. 26.8.83, publicado na RTJ n. 108/1105.
- - STF, 1ª Turma, j. 14.11.66, publicado na RTJ 39/674.
- - STJ, Resp. n. 187.344/SE, 6ª Turma, Rel. Min. Vicente Leal, v.u., j. 11.5.99, publicado no DJ de 31.5.99.
- - STJ, Resp. n. 119.613/RJ, 6ª Turma, Rel. Min. Willian Patterson, v.u., j. 1.9.97, publicado no DJ de 6.10.97.
- - Arruda Alvim, Manual de Direito Processual Civil, vol. 2, 5ª ed., São Paulo, Ed. RT, 1996, p. 253-254.
- - Cândido Rangel Dinamarco, Manual das Pequenas Causas, Ed. RT, p. 30.
- - Eduardo Arruda Alvim, Curso de Direito Processual Civil, vol, 1, São Paulo, Ed. RT, 1998, p. 364.
- - Antônio Luís da Câmara Leal, Da Prescrição e da Decadência, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1982, p. 183.
- - Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, tomo III: arts. 154 a 281, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, p. 240-241.
- - Yussef Said Cahali, Aspectos Processuais da Prescrição e da Decadência, São Paulo, Ed. RT, 1979, p. 48.
- - Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão, Dominação, 2ª ed., São Paulo, Ed. Atlas, 1994, p. 203-204.
- - essa relatividade já havia sido, em parte, percebida por Yussef Cahali "deve-se indagar se a sentença (CPC, art. 513) elide a citação quanto à eficácia interruptiva da prescrição; ou se tal eficácia remanesce aproveitável a benefício do credor". Aspectos Processuais da Prescrição e da Decadência, São Paulo, Ed. RT, 1979, p. 46