5. NASCE O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
A moção no action foi endossada de forma esmagadora pelos participantes (114 votos a favor, 16 contra e 20 abstenções), indicando o desejo da Conferência de manter a integridade do pacote final. Após os votos terem sido contados e a moção, adotada, a sala “explodiu” em aplausos e celebrações entusiasmadas, pois ficava clara a amplitude do apoio ao Estatuto. Todavia, isso não representava o final das deliberações, pois os Estados Unidos também haviam proposto emendas ao Estatuto, as quais introduziam mais ressalvas à jurisdição do Tribunal. Mais uma vez, a Noruega contrapôs a essa proposta uma moção no action, agora com apoio da Suécia e da Dinamarca (com o Catar e a China se pronunciando contrariamente). Essa moção também foi adotada por uma maioria esmagadora (113 votos a favor, 17 contrários e 25 abstenções)71. Mais uma vez, houve aplausos longos e entusiasmados, refletindo um alívio geral das acumuladas, deixando evidente que o Estatuto havia superado obstáculos de grande porte e estava agora próximo da conclusão. Não havia mais propostas de emenda. Por fim, o Estatuto foi adotado pelo Comitê Pleno, sem votações, e se bateu o martelo em meio a uma atmosfera de euforia. O Estatuto foi, então, encaminhado à Plenária, em uma reunião iniciada às 22 horas, na qual os Estados Unidos solicitaram uma votação não registrada sobre o Estatuto. O Estatuto de Roma foi adotado por uma imensa maioria de 120 votos a favor, 7 contrários e 21 abstenções, concluindo de forma dramática os anos de esforços para sua elaboração e dando mais um passo rumo a um TPI independente e eficaz.72
Neste contexto, podemos mencionar a ideia do saudoso Valerio de Oliveira Mazzuoli, que destaca:
Foi aprovado por 120 Estados, contra apenas 7 votos contrários – China, Estados Unidos, Iêmen, Iraque, Israel, Líbia e Quatar – e 21 abstenções. Não obstante a sua posição original, os Estados Unidos e Israel, levando em conta a má repercussão internacional ocasionada pelos votos em contrário, acabaram assinando o Estatuto em 31 de dezembro de 2000. Todavia, a ratificação do Estatuto, por essas mesmas potências, tornou-se praticamente fora de cogitação após os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington, bem como após as operações de guerra subsequentes no Afeganistão e Palestina. Assim foi que em 6 de maio de 2002 e em 28 de agosto do mesmo ano, Estados Unidos e Israel, respectivamente, notificaram formalmente o Secretário-Geral das Nações Unidas de que não tinham a intenção de se tornar partes no respectivo tratado.73
Para que o referido Estatuto entrasse em vigência, seria necessário a presença de no mínimo 60 países signatários e estas ratificações se consolidaram apenas em 11 de abril de 2002, fazendo com que este entrasse em vigor no dia 1º de julho de 2002.
5.1. A jurisdição do Tribunal Penal e a soberania
A jurisdição do Tribunal Penal Internacional é conexa às jurisdições penais nacionais, o que dessa afirmação, reconhecida pelo décimo parágrafo do preâmbulo e pelo artigo 1º do Estatuto de Roma, garantiu a soberania de cada país em relação ao julgamento dos crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Antes da constituição do Tribunal Penal Internacional através do Estatuto de Roma, a soberania era garantida pelo princípio da não-intervenção (ingerência), que era o fiel da balança e garantia o equilíbrio entre as nações. Neste sentido, Mario Bettati faz a seguinte observação:
A soberania é a garantia mútua dos torcionários. E, no entanto, desde há decênios que tribunais de direito internacional repisavam que o princípio da não intervenção constituía a base de todo equilíbrio mundial. As faculdades de direito, as chancelarias, as organizações internacionais celebravam o culto da soberania absoluta, que apenas se podia autolimitar através de acordos internacionais tão precários como a boa-fé daqueles que o assinavam. Acima dos Estados Unidos? Nada. No interior dos Estados? A prerrogativa exclusiva. A nossa geração conheceu alguns exemplos célebres disso. A França, envolvida no drama argelino, negou à ONU o direito de debater, afirmando que se tratava dos seus assuntos internos. Os militantes antiapartheid depararam-se com as mesmas objecções por parte dos antigos governantes de Pretória. Antes da guerra, Hitler já tinha se precavido dela e a SDN deu-lhe razão de suas deliberações; a organização genebresa baseou durante muito tempo o direito internacional no princípio de não-ingerência.74
Como vimos, o princípio da não-ingerência era a alegação principal dos Estados para poderem garantir sua soberania. Contudo, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, de acordo com o previsto no Estatuto de Roma, tem caráter complementar às jurisdições nacionais, atuando somente quando estas não puderem ou não tiverem interesse em realizar o julgamento, ou quando não forem observados, pelos Estados julgadores, os procedimentos considerados fundamentais para o julgamento do suspeito.
Segundo Luciana Lima Nogueira da Gama (in 2003, p. 54), os fatores que determinam a ineficiência da atuação da jurisdição nacional poderão ocorrer nas seguintes circunstâncias: pessoas favorecidas pela imunidade penal; demora injustificada em pôr fim às investigações ou à persecução penal; falência do sistema judicial de determinado país, impossibilitando a necessária produção das provas ou qualquer outro procedimento judicial pertinente.
A jurisdição do Tribunal Penal Internacional deverá observar as regras de competência em relação à matéria, ao tempo, à pessoa e ao lugar.
5.2. Crimes de competência do tribunal penal internacional
A competência deste Tribunal se limita aos crimes mais graves que afetam a comunidade internacional no seu conjunto. O Tribunal Penal Internacional, em sua consonância com o Estatuto de Roma, tem a legitimidade para julgar os seguintes crimes:
Crimes de genocídio;
Crimes contra a humanidade;
Crimes de guerra;
Crimes de agressão.
Estudaremos com maior ênfase àquele relacionado aos atos de guerra, tendo em vista este se tratar do ponto mais objetivado no presente trabalho, porém, sempre consignando que o Tribunal Penal Internacional, com personalidade jurídica própria, tem por objeto colaborar com a jurisdição primária do Estado signatário e substituí-la quando houver omissão nos julgamentos dos crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Destaca-se, também, a competência para o julgamento do crime de agressão.
5.2.1. Crimes de guerra
Antes de falarmos sobre crimes de guerra, teceremos algumas considerações sobre guerra. Para isso, recorremos a Luís Wanderley Torres que comenta:
A guerra é por si só o delito de todo um povo e o protagonista, o homem. O cidadão passa a obedecer, não à sua inteligência, como ser racional, mas ao pensamento e à vontade oficiais. Perde a liberdade, passando a não mais existir o homem, mas mero peão de um tabuleiro de xadrez. A ética é afrontar e obedecer. Herói é o instinto. Covarde, o que vê, sente e se aterroriza. Deram-lhe a indumentária apropriada, avulturam-lhe o peito, deram-lhe as armas para matar e ensinaram-lhe um brado de guerra. Entre os que lutam, sobreviverá de agora em diante o mais hábil e não o mais inteligente.75
E o que se faz verdadeiramente em uma guerra?
“Verdadeiramente na guerra não se faz outra coisa senão lutar, e é luta feita com armas”.76
O impacto dos crimes de guerra e a responsabilidade dos Estados agressores são relatados por Korovin:
A guerra agressiva é um crime abominável. Os atos perpetrados em violação das leis e costumes da guerra consideram-se igualmente delitos dessa índole. Nesse particular, o nosso direito internacional contemporâneo define a responsabilidade dos Estados agressores, ao mesmo tempo em que a dos indivíduos culpados de crimes contra a paz, as leis e usos da guerra e contra a humanidade.77
Os crimes de guerra têm previsão no artigo 8º do Estatuto de Roma, tendo a Corte Internacional legitimidade para julgar os referidos crimes, unicamente, quando se comete em parte de um plano ou política, ou também como parte de uma prática reiterada de tais crimes. Para esclarecer a frase descrita pelo artigo 8º do Estatuto “(...) em particular, cometidos como parte de uma estratégia ou política (...)”, vamos nos valer dos ensinamentos de Lyal Sunga:
A frase em particular, cometida como parte de uma estratégia ou política, implica que a Corte deve assumir a jurisdição apenas nos casos de cometimento de fato (não necessariamente relativa a um Estado). Por outro lado, atos que poderiam qualificar crimes de guerra de acordo com a lei humanitária internacional podem não ser inseridos na definição estatutária se cometida apenas em bases isoladas, sem a aprovação de uma alta autoridade em comando.78
Entende-se “Crimes de Guerra” as grandes rupturas às Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, notadamente demonstradas pelos atos dirigidos contra bens ou pessoas protegidas e, de acordo com os ensinamentos de Lyal Sunga, são eles:
Homicídio doloso;
Tortura ou outros crimes desumanos, incluindo as experiências biológicas;
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O ato de causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde;
Destruição ou apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária;
O ato de compelir um prisioneiro de guerra ou outra pessoa sob proteção a servir nas forças armadas de uma potência inimiga;
Privação intencional de um prisioneiro de guerra ou de outra pessoa sob proteção do seu direito a um julgamento justo e imparcial;
Deportação ou transferência ilegal, ou privação ilegal de liberdade;
Tomada de reféns.
Prevê ainda, o artigo 8º em seu inciso II, alínea “c”, que as greves violações do artigo 3º são consideradas crimes de guerra, em caso de conflito armado que não seja de caráter internacional.
Os atos que passaremos a elencar podem ser cometidos contra pessoas que não participem diretamente nas hostilidades, inclusive membros das forças armadas que tenham deposto armas e os que tenham ficado impedidos de continuar a combater devido doença, lesões, prisão ou qualquer outro motivo. Vejamos:
I) Atos de violência contra a vida e contra a pessoa, em particular o homicídio sob todas as suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura;
II) Ultrajes à dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes;
III) A tomada de reféns;
IV) As condenações proferidas e as execuções efetuadas sem julgamento prévio por um tribunal regularmente constituído e que ofereça todas as garantias judiciais geralmente reconhecidas como indispensáveis.79
As hipóteses que acabamos de elencar, previstas na alínea “c” do parágrafo 2º do artigo 8º do Estatuto de Roma, não se aplicam a situações de distúrbios e de tensão internas, tais como motins, atos de violência esporádicos ou isolados, ou outros de caráter semelhante.
Finalmente, são entendidos como crimes de guerra, também fora do âmbito internacional, outras violações graves das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados sem caráter internacional, e podem ser verificados em qualquer um dos seguintes atos, conforme elencados no artigo 8º do DECRETO Nº 4.388, DE 25 DE SETEMBRO DE 2002, que promulga o Estatuto de Roma:
I) Dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades;
II) Dirigir intencionalmente ataques a edifícios, material, unidades e veículos sanitários, bem como ao pessoal que esteja usando os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, em conformidade com o direito internacional;
III) Dirigir intencionalmente ataques ao pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção conferida pelo direito internacional dos conflitos armados aos civis e aos bens civis;
IV) Atacar intencionalmente edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares;
V) Saquear um aglomerado populacional ou um local, mesmo quando tomado de assalto;
VI) Cometer atos de agressão sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, tal como definida na alínea “f” do parágrafo 2º do artigo 7º; esterilização à força ou qualquer outra forma de violência sexual que constitua uma violação grave do artigo 3º comum às quatro Convenções de Genebra;
VII) Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou em grupos, ou utilizá-los para participar ativamente nas hostilidades;
VIII) Ordenar a deslocação da população civil por razões relacionadas com o conflito, salvo se assim o exigirem a segurança dos civis em questão ou razões militares imperiosas;
IX) Matar ou ferir à traição um combatente de uma parte beligerante;
X) Declarar que não será dado quartel;
XI) Submeter pessoas que se encontrem sob o domínio de outra parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer tipo de experiências médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento médico, dentário ou hospitalar nem sejam efetuadas no interesse dessa pessoa, e que causem a morte ou ponham seriamente a sua saúde em perigo;
XII) Destruir ou apreender bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra assim o exijam.
Em aspectos gerais, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional e sua competência são regidas pelos princípios do nullum crime, nulla poena sine lege80, contemplam crimes imprescritíveis81; não autorizam o julgamento de menores de 18 anos82; não responsabilizam quem tem deficiência mental83 ou quem praticou crime sob coação quando se defendia84; e não excluem a responsabilidade de quem cometeu crime sob cumprimento de ordem superior41, a menos que tenha sido obrigado a cumpri-la, ou não tenha tido o conhecimento de que a ordem era ilegal.