CAPÍTULO 3 - INCIDÊNCIA DO ICMS SOBRE A ENERGIA ELÉTRICA
3.1 Hipótese de incidência
Como já antes explicitado, a hipótese de incidência do ICMS tem como aspecto material fato que implique na movimentação econômica ou jurídica de bens identificados como mercadorias, da fonte de produção até o consumo.
Por outro lado, a energia elétrica foi considerada mercadoria há muito tempo. Prova disso foi sua inclusão no campo de incidência do imposto único, já pela Constituição de 1946. O posicionamento doutrinário e jurisprudencial foi caminhando nesse sentido até o advento da Constituição de 1988, quando restou sedimentado o entendimento de que o fornecimento de energia elétrica é uma operação de circulação de mercadoria e não, uma prestação de serviços.
CANTO [82] assim explicita a natureza jurídica da energia elétrica:
se caracteriza como tradicional entre nós a ficção jurídica de que a energia elétrica é bem, por ter valor econômico apreciável enquanto produzida e distribuída ao consumo, até em face da sua caracterização como coisa para efeitos de capitulação como objeto de furto.[...]
Voltando ao fato gerador do tributo, embora seja a hipótese de incidência a operação de circulação de mercadoria, a forma mais corrente de sua exteriorização é a saída de estabelecimento do contribuinte.
Porém, este fato sozinho não mais é hábil a configurar a ocorrência do fato gerador, pois não implica transmissão da propriedade das mercadorias.
Este é o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal:
Súmula 166/STJ [83] - Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.
IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS - DESLOCAMENTO DE COISAS - INCIDÊNCIA - ARTIGO 23, INCISO II DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ANTERIOR. O simples deslocamento de coisas de um estabelecimento para outro, sem transferência de propriedade, não gera direito à cobrança de ICM. O emprego da expressão "operações", bem como a designação do imposto, no que consagrado o vocábulo "mercadoria", são conducentes à premissa de que deve haver o envolvimento de ato mercantil e este não ocorre quando o produtor simplesmente movimenta frangos, de um estabelecimento a outro, para simples pesagem. [84]
No caso da energia elétrica, dadas suas peculiaridades, a eleição da saída da eletricidade de suas fontes de geração ou transmissão não se afigura a mais correta. Isto porque, tal saída ocorre sem discriminação do seu usuário, uma vez que a corrente flui pelas linhas de transmissão em condições de ser consumida por quem quer que a elas tenha acesso.
Vejamos: o consumo da energia elétrica pressupõe sua produção e distribuição. Logo, o tributo levará em consideração todas essas fases. Contudo, estas fases não são dotadas de autonomia suficiente para ensejar incidências isoladas, mas apenas uma, tendo por sujeito passivo o consumidor final da energia elétrica.
CAMPOS [85] assim esclarece:
O sistema elétrico nacional faz a conexão física de todos os geradores, transmissores, distribuidores e consumidores. Funciona, como já foi dito, analogamente a um sistema de "caixa único", em um mesmo momento, recebe a energia de todos os geradores e alimenta todos os consumidores. Portanto, produção e consumo se dão instantaneamente, não havendo possibilidade entre os estágios intermediários de várias incidências isoladas, mas, sim, de uma única, na entrega da energia, tendo como sujeito passivo o consumidor final de energia elétrica.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, CARRAZZA [86] entende que o elo existente entre usina geradora e empresa distribuidora "não tipifica, para fins fiscais, uma operação autônoma de circulação de energia elétrica. É, na verdade, o meio necessário à prestação de um único serviço público, ao consumidor final, abrindo espaço à cobrança, junto a este de um único ICMS".
Por outro lado, entende o autor que a distribuidora, a despeito de sua importância no contexto, não pode vir a ser contribuinte de imposto porque, a rigor, não pratica nenhuma operação mercantil, sua atuação limita-se a viabilizá-la. Isto não quer dizer que tal operação é intributável pelo ICMS, mas que tal tributação, em face das peculiaridades que cercam a circulação de energia elétrica, só é juridicamente possível no momento em que a energia elétrica é consumida.
Conclui o autor, afirmando que este raciocínio foi abonado pelo legislador constituinte, quando estatuiu, no §9º, do artigo 34, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias [87], que as empresas distribuidoras seriam responsáveis pelo pagamento do ICMS desde a produção até a última operação, calculado o imposto sobre o preço praticado na operação final.
Significa dizer que a distribuidora assume a condição de verdadeiro responsável pelo recolhimento do ICMS, na acepção do inciso II, do parágrafo único do artigo 121, do Código Tributário Nacional [88]. Ou seja, ela adianta o pagamento do tributo devido por outrem, este o contribuinte de direito, integrando a relação obrigacional tributária, e, ao mesmo tempo, contribuinte de fato, pois suporta a carga econômica da exação.
Desta feita, tudo indica ser mais acertado escolher como forma de exteriorização do fato gerador a distribuição, pois é quando ocorre a entrega da energia ao consumidor e, portanto, a efetiva circulação de mercadoria.
No âmbito legal, a Lei Complementar nº 87/96, seguindo o lapso do Convênio ICM nº 66/88 [89] não contemplou claramente a hipótese que seria aplicável à energia elétrica. As hipóteses de incidência específicas, que não a entrada ou saída, como fornecimento de alimentos e bebidas ou aquisição em licitações de bens apreendidos, não contemplam a eletricidade.
Nada obstante, não há dúvidas acerca da possibilidade legal de incidência do ICMS sobre a energia elétrica, eis que expressamente assegurada pelo § 3º, do artigo 155, da Constituição Federal:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
[...]
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
[...]
§ 3º À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País.
3.1.1 Controvérsia sobre a imunidade interestadual
A Constituição Federal [90], na alínea b do inciso X do parágrafo 2º do artigo 155, assim dispõe:
Art.155-[...]
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
[...]
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá o seguinte:
[...]
X – não incidirá:
[...]
b) sobre operações que destinem a outros Estados, petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica;
A Lei Complementar nº 87/96 [91], seguindo o comando constitucional, restringiu o âmbito da imunidade; no inciso II, de seu artigo 3º, previu desta forma:
Art. 3º O imposto não incide sobre:
[...]
III - operações interestaduais relativas a energia elétrica e petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, quando destinados à industrialização ou à comercialização;
Por outro lado, estabeleceu no inciso III, do parágrafo 1º, de seu artigo 2º a seguinte incidência:
Art. 2º - [...]
§ 1º O imposto incide também:
III - sobre a entrada, no território do Estado destinatário, de petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e de energia elétrica, quando não destinados à comercialização ou à industrialização, decorrentes de operações interestaduais, cabendo o imposto ao Estado onde estiver localizado o adquirente.
Destarte, na lição de Campos [92], sendo o sistema elétrico nacional interligado, os fluxos energéticos entre os entes da federação não são tributáveis por meio do ICMS. Contudo, a disposição infraconstitucional restringiu a imunidade apenas àquelas operações destinadas à industrialização e comercialização.
Ocorre, porém, que a lei complementar não pode alterar a Constituição. Sua função é explicitá-la, esclarecer o que implícito estiver na lei suprema, mas não poderá mudar, alterar, restringir o ali determinado. Entender de forma diversa, é admitir que o constituinte esteja sujeito ao legislador infraconstitucional e não, este ao legislador supremo.
Em relação a esta questão, MARTINS [93] assim se manifesta:
Nitidamente, a lei complementar mutilou o texto constitucional, reduzindo a imunidade constitucionalmente concedida de forma ampla a todas as operações -inclusive as não destinadas à comercialização e industrialização - com o que alterou o preceito constitucional, amputando o espectro da desoneração desejado pela lei suprema e tornando-a menor do que a ofertada pelo constituinte.
No mesmo sentido, Derzi e Calmon [94] afirmam que a imunidade em tela foi concedida de forma ampla, incondicionada e irrestrita, sem qualquer discriminação ou restrição. Dessa forma, concluem que qualquer distinção configurar-se-á em modificação ilegítima da Constituição.
Carrazza [95] segue a mesma linha, afirmando que a imunidade tratada no art. 155, § 2º, X, b é de tal forma clara que dispensa artifícios exegéticos ou lei complementar para ser usufruída.
Desta forma, a conclusão inafastável é a de que a lei complementar editada somente poderia regular a forma como o contribuinte deveria proceder em relação ao não pagamento, sendo-lhe vedada qualquer ampliação dos limites ali explicitados.
MELO [96], por sua vez, defende que esta diretriz afronta à norma constitucional constante na alínea b do inciso X, do parágrafo 2º, do artigo 155. Para tanto se funda no seguinte entendimento:
O legislador complementar objetivou bipartir a operação interestadual com referidas mercadorias, entendendo (implicitamente) que a imunidade constitucional estaria circunscrita unicamente à remessa do Estado de origem até a fronteira do Estado destinatário; passando a ocorrer o fato gerador do ICMS na "entrada" no território deste último Estado (art. 12, XII)
Estranhamente, cindiu uma única operação mercantil, vilipendiando o regime jurídico tributário estabelecido pela CF, que prestigiou as operações com os aludidos produtos, a fim de eliminar a carga tributária. Sutilmente, desprezou a imunidade constitucional, ao consubstanciar o entendimento de que se trataria de dois negócios jurídicos distintos.
Ainda neste aspecto, não há como olvidar que tal preceito elimina em boa parte o intuito do legislador constitucional de desoneração tributária, pois acaba impondo a tributação dos produtos apontados.
Em contradita ao entendimento acima esposado, Souza apud Melo [97] afirma que uma interpretação simplista desta imunidade negaria o princípio da capacidade contributiva, conduzindo a uma discriminação em relação ao destino das mercadorias, além de desigualar a concorrência.
O autor vai além, afirmando que não se trata da imunidade clássica, mas sim da sui generis, que não desonera, mas apenas desloca a cobrança. Salienta que a intenção constitucional não poderia ser a de eliminar a carga tributária nessas operações, uma vez que o petróleo é importante elemento definidor da geração de receitas para os Estados.
No campo jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça reflete a divergência doutrinária, possuindo entendimento descoincidente.
A imunidade ampla e irrestrita é declarada no exemplo do julgado cuja ementa resta abaixo colacionada:
CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. ICMS. PETRÓLEO E SEUS DERIVADOS. OPERAÇÕES DESTINADAS A OUTROS ESTADOS. IMUNIDADE.
I- CONSOANTE JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA NESTA CORTE, NÃO INCIDE ICMS NAS OPERAÇÕES INTERESTADUAIS, RELATIVAS A VENDA DE PETRÓLEO E SEUS DERIVADOS.
II- A PREVISÃO LEGAL SOBRE CONTRIBUINTES DO TRIBUTO ESTÁ INSCRITA NO ART. 6. E SEUS PARÁGRAFOS DO DECRETO-LEI 406, DE 31.12.68 E SOMENTE PODE SER MODIFICADA POR NORMA DE IGUAL HIERARQUIA, LEI COMPLEMENTAR, POR ISSO A ESTE NIVEL FOI ELEVADO O DECRETO-LEI PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 (CF ART. 146, INCISO III, ALINEA "A"). NÃO CABE, ASSIM, POR IMPRÓPRIO, E POR SER MANIFESTAMENTE INCONSTITUCIONAL, AO CONVÊNIO ESTABELECER OUTRAS HIPÓTESES DE SUBSTITUIÇÃO TRIBUTARIA. PRECEDENTES.
III- RECURSO A QUE SE DA PROVIMENTO, SEM DISCREPÂNCIA. [98]
Por outro lado, limitando a imunidade constitucional nos limites estabelecidos pela lei, é o julgado abaixo:
ICMS - IMUNIDADE TRIBUTARIA - AQUISIÇÃO DE PETROLEO - DERIVADOS. O ICMS SOMENTE NÃO INCIDIRA QUANDO O DESTINATARIO DO PETRÓLEO E SEUS DERIVADOS NÃO FOR O CONSUMIDOR FINAL. A IMPETRANTE ESTA SUJEITA AO RECOLHIMENTO DO ICMS. RECURSO PROVIDO PARA CONCEDER PARCIALMENTE A SEGURANÇA. [99]
Diante desta situação, ao contribuinte não resta outra alternativa senão buscar a tutela do Poder Judiciário ao seu direito, sujeitando-se à decisões conflitantes, enquanto o Superior Tribunal de Justiça não firmar um entendimento uníssono.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal, passando ao largo de toda a controvérsia doutrinária, firmou a seguinte diretriz:
TRIBUTÁRIO. ICMS. LUBRIFICANTES E COMBUSTÍVEIS LÍQUIDOS E GASOSOS, DERIVADOS DO PETRÓLEO. OPERAÇÕES INTERESTADUAIS. IMUNIDADE DO ART. 155, § 2º, X, B, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Benefício fiscal que não foi instituído em prol do consumidor, mas do Estado de destino dos produtos em causa, ao qual caberá, em sua totalidade, o ICMS sobre eles incidente, desde a remessa até o consumo. Conseqüente descabimento das teses da imunidade e da inconstitucionalidade dos textos legais, com que a empresa consumidora dos produtos em causa pretendeu obviar, no caso, a exigência tributária do Estado de São Paulo. Recurso conhecido, mas desprovido. [100]
3.2 Base de cálculo
Na mesma linha do comando legal, o Convênio ICMS nº 06/04 [101], na alínea b, de sua cláusula primeira, firma como base de cálculo do imposto o preço total contratado pela operação, ao qual está integrado o montante do próprio imposto; o destaque constitui mera indicação para fins de controle.
Em face deste comando, dois aspectos devem ser analisados: a constitucionalidade da inclusão na base de cálculo do montante do próprio imposto devido e o que estaria englobado no conceito de preço total contratado.
No que concerne à inclusão do imposto na base de cálculo, Campos [102] afirma sua inconstitucionalidade, ao aduzir para tanto, que essa metodologia resulta em um percentual majorado da alíquota, facilmente comprovado por cálculos simples. Afirma ainda que o argumento de que sempre se cobrou dessa forma não vinga, uma vez que a reiteração da inconstitucionalidade não a torna constitucional.
Vários doutrinadores já explicitaram suas posições em relação a esta determinação, bem como já se manifestou o Supremo Tribunal Federal. Todavia, ora se deixa de trazê-la a debate, uma vez que o tópico já restou tratado no item 1.4 do primeiro capítulo deste trabalho.
Em virtude do estudo de caso a ser realizado no capítulo 4, impõe-se introduzir previamente neste tópico a análise do que estaria incluído no conceito de preço total contratado no caso específico do fornecimento da energia elétrica.
Campos [103] é categórico ao afirmar que a base de cálculo do ICMS sobre a energia elétrica deve ser o preço do montante de energia entregue (absorvida) pelo consumidor. O montante será medido no ponto de entrega, onde será disponibilizada a tensão de fornecimento.
Nada obstante, as Fazendas Estaduais têm posicionamento firmado e passado aos contribuintes, inclusive via Consulta, de que a base de cálculo neste caso seria o preço total da fatura.
Soares de Melo [104] é contrário a este entendimento e salienta que valores como aqueles cobrados em razão do exercício de determinadas atividades paralelas ao fornecimento de energia, vistoria de unidade consumidora, aferição de medidor, verificação de nível de tensão, religação, emissão de segunda via de faturamento, previstas na Resolução ANEEL nº 456, de 29.11.2000 [105], não devem ser consideradas do âmbito do ICMS, porque são serviços paralelos ao fornecimento, não podendo ser caracterizados como tal.
CHIESA [106] aduz que a "eleição de uma grandeza estranha ao núcleo da hipótese de incidência implica desvirtuamento vedado pelo sistema constitucional tributário, pois o § 1º, do artigo 145 combinado com o inciso I, do artigo 154 da Constituição Federal impõe que haja correspondência entre a base de cálculo e o evento tributado".
Desta afirmação, pode-se concluir que atividades paralelas ao fornecimento de energia elétrica, mesmo que prestadas pela mesma distribuidora ao contribuinte, não podem ser incluídas no cômputo do valor a ser pago a título de ICMS.
Maiores considerações a esse respeito serão tratadas no estudo de caso a ser realizado no próximo capítulo.
3.3 Alíquotas
Questão controvertida, contudo, pouco ventilada ainda na doutrina e na jurisprudência, é a relativa à seletividade do ICMS em função da essencialidade das mercadorias e serviços.
Por este motivo, a despeito de não implicar diretamente no caso a ser estudado neste trabalho, cumpre-nos trazer algumas considerações.
A Constituição Federal, no inciso III, do § 2º, de seu artigo 155, assim dispõe:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
[...]
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
[...]
§ 2º. O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
[...]
III – poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços.
Ao incluir a seletividade na metodologia atual do ICMS, a Constituição de 1988 [107] tornou-o além de um instrumento de fiscalidade, com o fito de prover os cofres públicos para consecução de seus objetivos, ferramenta de extrafiscalidade, ou seja, meio de estimular ou inibir comportamentos havidos por convenientes ou não ao interesse público.
A seletividade pode ser alcançada com o emprego de qualquer técnica de alteração quantitativa da carga tributária como alíquotas diferenciadas, variação de base de cálculo ou até concessão de incentivos fiscais.
Por óbvio, sempre que houver tributação diferenciada, há que se ter um critério para essa discriminação, não se podendo admitir o estabelecimento aleatório das alíquotas, sob pena de violação aos princípios da isonomia, justiça fiscal e da capacidade contributiva.
No caso do ICMS, e também do Imposto sobre Produtos Industrializados -IPI, não há que se questionar acerca deste critério, uma vez que a Constituição Federal foi expressa em determinar a essencialidade das mercadorias e serviços tributados como parâmetro da seletividade para ambos.
Cumpre salientar que a essencialidade das mercadorias e serviços há que ser aferida objetivamente, não em face do consumidor ou da quantidade consumida, sob pena de gerar distorções como no exemplo dado por SEGUNDO [108]:
[...] pão, leite e ovos, se adquiridos por uma família de baixa renda apenas para consumo próprio, ou se adquiridos em larga quantidade por um magnata, para realização de um banquete, ou ainda, se comprados por um orfanato, também em grande quantidade, para suprir dezenas de menores órfãos, serão tributados exatamente pela mesma alíquota.
No campo da seletividade, a diferença entre ICMS e IPI é que na previsão do primeiro restou consignada a palavra poderá e do segundo, deverá.
De uma análise açodada do texto constitucional, poder-se-ia concluir que, diferentemente de como dispôs em relação ao IPI, onde a seletividade em função da essencialidade é obrigatória (impondo assim um dever ao legislador ordinário) a Constituição teria dado uma faculdade ao legislador, de fixar ou não alíquotas diferenciadas para o ICMS.
Utilizando-se de regra de hermenêutica que preceitua que as palavras não podem ser desprezadas e têm que apresentar um significado real para fazerem parte de um corpo jurídico, não é difícil concluir que considerar a seletividade uma mera faculdade do legislador infraconstitucional, é negar qualquer validade à previsão constitucional, até mesmo porque, poder ser seletivo é algo que poderia independentemente de estar ou não previsto no texto constitucional.
Por seguir essa linha de raciocínio, CARRAZZA [109] afirma que "este singelo ‘poderá’ equivale, na verdade, a um peremptório ‘deverá’". Segue afirmando que "não se está aí diante de uma mera faculdade do legislador, mas de uma norma cogente, de observância obrigatória".
De outro lado, divergindo do autor acima citado, SEGUNDO [110] aduz que a Constituição facultou a adoção da seletividade, mas impôs, em caso da faculdade ser exercida, que o fosse somente em função da essencialidade do objeto da tributação. Explicita o autor:
Em outros termos, a Constituição facultou aos Estados a criação de um imposto proporcional, que representaria ônus de percentual idêntico para todos os produtos e serviços por ele alcançados, ou a criação desse mesmo imposto com caráter seletivo, opção que, se adotada, deverá guiar-se obrigatoriamente pela essencialidade dos produtos e serviços tributados. A seletividade é facultativa, o critério da seletividade é obrigatório.
Alguns Estados adotaram simples seletividade, tributando com alíquotas diferentes mercadorias distintas. Já outros Estados instituíram alíquotas seletivas, mas também alíquotas também progressivas, mormente no que diz respeito à tributação da energia elétrica.
Progressivos ou regressivos são os impostos cuja alíquota é variável, podendo aumentar ou diminuir na medida em que aumenta a base de cálculo.
O Distrito Federal é um dos entes que onera o consumo de energia elétrica seletivamente, com alíquotas variáveis de acordo com o tipo de consumidor (residencial, industrial, comercial e Poder Público) e também progressivamente, utilizando-se do critério da quantidade de energia elétrica consumida (12% para até 200 KWh mensais, 21% para, na classe residencial, consumo de 301 e 500 KWh mensais e, nas classes industrial e comercial, acima de 1000 KWh mensais e 25% para classe residencial e Poder Público, acima de 500 KWh mensais).
Segundo [111] considera inconstitucional a adoção de alíquotas progressivas na tributação pelo ICMS, uma vez que fixou como critério para a distinção de alíquotas, a essencialidade do bem tributado. Dessa forma, em seu entender, restou implicitamente vedada a possibilidade de adoção da progressividade, já que o critério da essencialidade foi o escolhido pelo legislador constituinte e não, outro.
Segue afirmando que o efeito prático da adoção da progressividade é a anulação do estabelecimento da essencialidade, uma vez que a progressividade no ICMS faz com que uma mercadoria, embora essencial, possa vir a ser tributada com alíquotas superiores à de mercadorias suntuosas apenas por ter sido consumida em maior quantidade.
Tal situação impõe ainda a violação do princípio da capacidade contributiva, pois pode impor o mesmo ônus ao milionário que consome 1000 KWh de energia elétrica em sua residência, em razão dos inúmeros aparelhos que possui, à um hospital que consome a mesma quantidade de energia, todavia para manter funcionando aparelhos que, muitas vezes, garantem a vida dos pacientes.
O Distrito Federal, além de não observar o comando constitucional no que concerne à adoção da progressividade das alíquotas, também deixa de fazê-lo ao fixar as alíquotas aplicáveis ao ICMS.
Por força do art. 46, do Decreto nº 18.955/97 [112] foi estabelecida uma alíquota de 25% (vinte e cinco por cento) para bebidas alcoólicas, fumo, cigarro e perfumes, produtos indiscutivelmente supérfluos, e também para energia elétrica, petróleo e serviços de comunicação, produtos indiscutivelmente essenciais, mormente o primeiro.
Nada obstante este paradoxo, outro mais grave é determinado pelo mesmo normativo citado. Jóias, pedras preciosas e ouro são tributados por uma alíquota representativa de menos da metade daquela adotada para energia elétrica, 12% (doze por cento).
Com o fito de aferirmos o grau de inobservância do preceito constitucional pelos Estados na fixação das alíquotas, resta saber quão essencial é a energia elétrica para os que a consomem.
CAMPOS [113] traz que, já em 1923, se reconhecia a importância da energia elétrica:
Alfredo Valadão, para ressaltar a importância econômica e social desta indústria, no seu segundo projeto ao Código de Águas, Decreto nº 26.643/34: ‘Nas indústrias fundamentais – a agrícola, pastoril, extrativa e manufatureira – em todas suas ramificações, a energia elétrica é a base da produção econômica e em grande escala de riquezas; na indústria do transporte que, aproximando o produtor do consumidor, faz circular essas riquezas, a eletricidade, barateando o custo desses transportes e tornando-os mais rápidos, vem alargar mais ainda o raio de ação dos mercados e a atividade do seu comércio; na utilização dessas riquezas é sempre a energia elétrica que, transformando-se nas suas múltiplas aplicações, em eletrônica, em energia eletromecânica, térmica, química e luminosa, permite o funcionamento dos mais variados aparelhos inventados para o benefício coletivo a individual, e, finalmente é ainda a eletricidade que nas suas aplicações por assim dizer sociais, desempenha papel predominante na vida civilizada dos nossos dias, já fornecendo o movimento, a iluminação, os meios de comunicação, de transmissão de sinais eletromagnéticos a enormes distâncias, já nas suas aplicações à medicina, contribuindo para diminuir o sofrimento humano.
Posteriormente, ÁLVARES [114], em 1978, assim afirmava:
[...] ninguém duvidaria em admitir que a eletricidade representa no mundo moderno o próprio substrato de sua existência material. A sua utilização é contínua e tão variada que não há hoje em dia atividade material que dela não dependa.[...]"
Nos tempos atuais, o consenso acerca da imprescindibilidade da energia elétrica fortaleceu-se.
SEGUNDO [115] é firme: "Não há dúvida de que a energia elétrica é essencialíssima a qualquer cidadão ou empresa, sendo consumida inclusive por aqueles desprovidos de qualquer capacidade contributiva".
Segue afirmando que mesmo as famílias de baixíssima renda consomem energia elétrica em suas casas. A grande maioria da população possui uma geladeira para conservar seus alimentos, lâmpadas para iluminar a escuridão, ferro elétrico para passar suas roupas. Isto sem mencionar o setor produtivo da sociedade, onde, sem energia, não há vendas, prestação de serviços ou produção.
Por sua vez KIRCHNER [116] entende que:
A energia elétrica pode ser associada à melhoria da qualidade de vida, como fator de produção, desenvolvimento econômico e geração de empregos. A exclusão social também se dá por falto de acesso à energia. O desenvolvimento tecnológico, ao mesmo tempo em que propicia um bem para a humanidade, aumenta a distância entre os "sem energia" e os "com energia". O progresso e todos os aparatos que permitem o funcionamento de equipamentos urbanos hoje não funcionam sem energia elétrica. A internet e o acesso à informação estão intimamente ligados a ela.
Os serviços de energia elétrica são absolutamente essenciais. A garantia do funcionamento do Estado e da realização dos fins consagrados constitucionalmente para a sociedade civil pressupõe o fornecimento de energia elétrica. Aos direitos fundamentais – a vida, a liberdade, a satisfação das necessidades básicas de alimentação, saúde, educação e moradia – vem se somar o acesso à energia. O substrato ético e a predisposição moral em que há de se construir esse direito devem se apoiar na base jurídica de um bem público [...].
Por tudo isso, conclui que "não se pode retirar o direito constitucional dos cidadãos, seja do ponto de vista do atendimento de suas necessidades em sua residência, estabelecimentos comerciais e industriais, de contarem com serviço público de energia elétrica". Isto é motivo suficiente a não se poder permitir que o custo da produção e entrega da energia elétrica se torne um fardo pesado demais para os consumidores residencial e industrial carregarem.
Poder-se-ia argumentar que a energia elétrica não possui a mesma essencialidade do pão, do leite ou dos demais itens da cesta básica, não merecendo por esta razão, tributação diferenciada. Por um lado, o argumento não é totalmente absurdo, mas por outro, não há como classificar a energia elétrica como bem supérfluo ou suntuário, de forma que, assim como o fumo ou produtos de perfumaria, seja tributado com alíquotas que chegam a até 30% (trinta por cento).
O ônus representado pelo ICMS sobre a energia elétrica jamais poderá ser o mesmo que o verificado sobre a generalidade das mercadorias; e muito menos, sob pena de grave violação ao esposado no artigo 155, § 2º, III da Constituição Federal, igual ao incidente sobre mercadorias suntuárias ou supérfluas como fumo e bebidas.
A classificação de mercadoria como supérflua não deve ficar ao alvedrio do legislador. O enquadramento de qualquer mercadoria como supérflua há que ser realizado não somente à luz de critérios técnicos, mas, e sobretudo, dos aspectos sociais da Nação.
A jurisprudência não diverge da doutrina neste ponto. A declaração de essencialidade da energia elétrica é fundamento de garantia de direitos do cidadão.
O Superior Tribunal de Justiça assim se manifesta:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO COM FULCRO NO ART. 544 DO CPC. RECURSO CONHECIDO PARA NEGAR PROVIMENTO AO PRÓPRIO RECURSO ESPECIAL EM QUE SE PLEITEIA O RECONHECIMENTO DO DIREITO EM INTERROMPER O FORNECIMENTO DE ELÉTRICA
1. Consoante jurisprudência iterativa do E.STJ a energia elétrica é um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção.
2. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade, uma vez que o direito de o cidadão se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles de utiliza.
3. Como o acórdão recorrido pelo especial se encontra em perfeita sintonia com a jurisprudência do STJ, pois considerou que a interrupção no fornecimento de energia elétrica, como forma de compelir o usuário ao pagamento da tarifa extrapola os limites da legalidade, aplica-se a remansosa jurisprudência desta Casa que permite conhecer do agravo de instrumento para negar provimento ao próprio recurso especial.
4. Precedentes.
5. Aplicação do art. 557, caput, c.c. par. 3º do art. 544 todos do CPC.
[...]
AGRMC nº 3982/AC: "Consoante jurisprudência iterativa do E.STJ a energia é um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade, uma vez que o direito de o cidadão se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretados com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.";
REsp nº 278532/RO: " O corte de energia, utilizado pela Companhia para obrigar o usuário ao pagamento de tarifa, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar o adimplemento do débito.";
REsp nº 223778/RJ: "A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. (...) O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade. (...) O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.".
Ainda que não incida a súmula 83/STJ no pertinente a alínea "a" do permissivo constitucional, o art.557 permite ao relator negar seguimento a recurso que procura reformar acórdão que decidiu em sintonia com a jurisprudência do STJ.
Prestigia-se, com isso, o princípio da efetividade que norteia o direito processual moderno, a fim de que os recursos intempestivos, incabíveis, desertos e contrários a jurisprudência consolidada nos tribunais superiores não sejam julgados pelos órgãos colegiados dos tribunais, obstruindo suas pautas.(AGA 173246/SP E AG 336871/BA). [117]
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA. INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO. CORTE. IMPOSSIBILIDADE. ARTS. 22 E 42 DA LEI Nº 8.078/90 (CÓDIGO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR). ENTENDIMENTO DO RELATOR. ACOMPANHAMENTO DO POSICIONAMENTO DA 1ª SEÇÃO DO STJ. PRECEDENTES.
1. Recurso especial interposto contra acórdão que considerou ilegal o corte no fornecimento de energia elétrica como meio de coação ao pagamento de contas atrasadas ou para apurar eventual irregularidade.
2. Não resulta em se reconhecer como legítimo o ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção de seus serviços, em face de ausência de pagamento de fatura vencida. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção.
3. O art. 22 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor assevera que "os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". O seu parágrafo único expõe que, "nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados na forma prevista neste código". Já o art. 42 do mesmo diploma legal não permite, na cobrança de débitos, que o devedor seja exposto ao ridículo, nem que seja submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Tais dispositivos aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público.
4. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afrontaria, se fosse admitido, os princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. O direito de o cidadão se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.
5. Caracterização do periculum in mora e do fumus boni iuris para sustentar deferimento de liminar a fim de impedir suspensão de fornecimento de energia elétrica. Esse o entendimento deste Relator.
6. No entanto, embora tenha o posicionamento acima assinalado, rendo-me, ressalvando meu ponto de vista, à posição assumida pela ampla maioria da 1ª Seção deste Sodalício, pelo seu caráter uniformizador no trato das questões jurídicas no país, que vem decidindo que "é lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (L. 8.987/95, Art. 6º, § 3º, II) "(REsp nº 363943/MG, 1ª Seção, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 01/03/2004). No mesmo sentido: EREsp nº 337965/MG, 1ª Seção, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 08/11/2004; REsp nº 123444/SP, 2ª T., Rel. Min João Otávio de Noronha, DJ de 14/02/2005; REsp nº 600937/RS, 1ª T., Rel. p/ Acórdão, Min. Francisco Falcão, DJ de 08/11/2004; REsp nº 623322/PR, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 30/09/2004.
7. Com a ressalva de meu ponto de vista, homenageio, em nome da segurança jurídica, o novo posicionamento do STJ.
8. Recurso especial provido. [118]
CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. CORTE DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA POR ATRASO DE PAGAMENTO. ESTABELECIMENTO COMERCIAL. FALTA DE AVISO PRÉVIO. DECRETO N. 774, DE 18.03.93, LEIS NS. 8.631/93, 8.987/95 E 8.078/90. DANO MORAL.
I. Pode a empresa concessionária suspender o fornecimento de energia elétrica em face de atraso no pagamento de conta pelo usuário, porém deve fazê-lo mediante prévia comunicação do corte, nos termos do art. 6º, parágrafo 3º, da Lei n. 8.987/93, sujeitando-se, outrossim, pela irregular descontinuidade de serviço público essencial, a ressarcir o prejudicado pelos danos materiais e morais daí advindos.
II. De outro lado, o valor do dano moral deve ser fixado de modo razoável, a fim de evitar enriquecimento sem causa da parte autora, notadamente porque incontroversamente inadimplente no cumprimento de sua obrigação de pagar, atempadamente(sic), a conta decorrente dos serviços prestados.
III. Redução substancial do quantum indenizatório.
IV. Inaplicabilidade da regra do art. 21 do CPC, porquanto entende-se, segundo a orientação firmada no REsp n. 265.350/RJ (2ª Seção, rel. Min. Ari Pargendler, DJU de 27.08.2001), que o montante declinado na inicial é meramente estimativo, não servindo de base para a aferição do êxito, se o valor definitivamente fixado resultar inferior àquele.
V. Juros moratórios a partir da citação, por se cuidar de infração contratual.
VI. Recurso especial conhecido em parte e parcialmente provido. [119]
3.4 Direito a créditos relativos ao ICMS incidente sobre Energia Elétrica
Como já visto neste trabalho, a Constituição Federal de 1988 incluiu no âmbito de incidência do ICMS as operações com energia elétrica, considerando-a mercadoria para fins de incidência tributária.
Para fins de aplicação da não-cumulatividade, todas as empresas adquirentes ou consumidoras de energia elétrica, oneradas pelo imposto, passariam a ter o direito de escriturar os respectivos valores como créditos, técnica de tributação conhecida como crédito financeiro.
No entanto, o regime jurídico da não-cumulatividade no Brasil realiza-se através do crédito físico, salvo algumas exceções.
Abre-se aqui um parênteses para esclarecimentos acerca dos conceitos de créditos físico e financeiro, eis que necessários ao debate que irá seguir-se.
Machado [120] leciona que o princípio da não-cumulatividade do ICMS pode realizar-se mediante a técnica do crédito físico ou do crédito financeiro.
Como regime do crédito financeiro, entende-se aquele no qual todos os custos, em sentido amplo, que vierem a ser onerados pelo imposto, ensejam o direito ao crédito, seja ele o de um bem destinado à revenda, utilização como matéria-prima ou ao consumo e imobilização.
Já como regime do crédito físico, entende-se aquele segundo o qual somente geram direito a crédito as entradas de bens que se destinem a sair do estabelecimento, tal como entraram, ou a integrarem, fisicamente, o produto em cuja fabricação constituem insumos.
Esclarecida a distinção, cabe retornar ao tema.
Na vigência do Convênio nº 66/88, algumas Fazendas Estaduais condicionavam o direito ao crédito ao consumo direto (i) no processo de produção ou comercialização de mercadorias; (ii) na iluminação dos ambientes onde se desenvolvessem de tais processos; (iii) no funcionamento de máquinas, aparelhos ou recipientes usados para armazenagem ou conservação de estoques de mercadorias.
Com o fito de apurar seu crédito, o contribuinte deveria identificar e quantificar, no valor total de energia elétrica, consignado em documento fiscal, as parcelas que ensejariam os créditos. Para tanto, as Fazendas aconselhavam os contribuintes a munir-se de elementos como créditos em livros fiscais, tais como, planilhas de apropriação de quilowatts consumidos e laudo técnico feito por perito.
Ocorre, porém, que no caso da energia elétrica o regime do crédito físico afigura-se como negação ao princípio da não-cumulatividade, pois na verdade a energia elétrica paga pelo industrial, comerciante ou pelo prestador de serviços tributáveis, onerada pelo imposto, não integra fisicamente as mercadorias, produtos ou serviços cuja saída ou prestação enseja a incidência do imposto.
Essa posição já restou rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal ao decidir que somente as indústrias poderiam utilizar-se de crédito de ICMS, não, o comércio, pois neste a energia elétrica é utilizada para o consumo, não como insumo:
TRIBUTÁRIO. PRETENDIDO CRÉDITO RELATIVO AO ICMS INCIDENTE SOBRE A ENERGIA ELÉTRICA CONSUMIDA EM ESTABELECIMENTO COMERCIAL. Descabimento. "Não implicará crédito para compensação com o montante do imposto devido nas operações ou prestações seguintes, a entrada de bens destinados a consumo ou à integração no ativo fixo do estabelecimento" (art. 31, II, do Convênio ICMS 66/88). Se não há saída do bem, ainda que na qualidade de componente de produto industrializado, não há falar-se em cumulatividade tributária. Recurso não conhecido. [121]
Machado [122] e Melo [123] afirmam ser equivocado este posicionamento, porque, a rigor, a energia elétrica não se integra fisicamente nos produtos industrializados com sua utilização. A solução correta, a seu ver, seria admitir-se nesse caso o crédito financeiro, seja na indústria, comércio ou na prestação de serviços.
Essa questão ficou superada com o advento da Lei Complementar nº 87/96 [124], que, no inciso II, de seu artigo 33, assegurou o direito a crédito relativo a energia elétrica usada ou consumida no estabelecimento, sem qualquer restrição, a partir de sua entrada em vigor.
No entanto, a Lei Complementar nº 102/00 [125] alterou o dispositivo citado, impondo significativa restrição ao direito a crédito, concedendo-o somente para as hipóteses em que a entrada de energia elétrica (i) for objeto de operação de saída de energia elétrica; (ii) quando for consumida no processo de industrialização; (iii) quando seu consumo resultar em operação de saída ou prestação para o exterior, na proporção das entradas sobre as saídas ou prestações locais.
Posteriormente, a Lei Complementar nº 114 [126], de 16 de dezembro de 2002, alterou o dispositivo da Lei Complementar nº 102/00 postergando o direito a crédito nas demais hipóteses, então garantido para período posterior a 01.08.2003, somente para 01.01.2007.
Na lição de Melo [127] essa vinculação do crédito de modo injustificado prejudica todas as outras categorias profissionais sujeitas ao ICMS, à exceção da indústria, porque não poderão utilizar de crédito relativo a custo bastante significativo.
Machado [128], por sua vez, afirma que a constitucionalidade dessas restrições é discutível, já que implica anulação total do princípio da não-cumulatividade, em relação à energia elétrica, para os estabelecimentos comerciais e prestadores de serviço tributados pelo ICMS.
O Superior Tribunal de Justiça segue esta linha, já se tendo posicionado no sentido de afastar a restrição ao direito de crédito:
TRIBUTÁRIO - ICMS - CREDITAMENTO - ENERGIA ELÉTRICA USADA NO PROCESSO PRODUTIVO.
1. Supermercado que, conforme perícia, ao lado da atividade comercial desenvolve processo industrial de alimentos (panificação e congelados) e produz mercadoria (art. 46. parágrafo único, do CTN).
2. Legislação do ICMS que, à época (Convênio 66/88 e Lei 1.423/89), permitia o creditamento do ICMS da energia elétrica utilizada como mercadoria na composição da produção.
3. Recurso especial improvido. [129]
Em razão da garantia constitucional da não-cumulatividade, há que se dar maior amplitude ao espectro dos créditos concedidos. Ao contribuinte, contudo, em razão do posicionamento explicitado acima, resta suscitar os tribunais a fim de se obter o crédito, com argumentos hábeis a ensejar novo debate no Superior Tribunal de Justiça.